Escolhemos um dos encontros do fim de semana e partimos em busca de histórias. Desta vez, a História de Um Jogo viaja pelo dérbi de Munique, uma rivalidade com 120 anos

A expectativa antes daquele jogo dos quartos de final da Taça da Alemanha de 27 de fevereiro de 2008 pareceu estranha para quem era de fora. O italiano Luca Toni, por exemplo, reconheceu que nunca antes tinha ouvido falar do adversário. Mas Philipp Lahm, nascido e criado em Munique, sabia bem o que estava em causa quando disse que nunca mais podia ir à padaria do costume se perdesse. Estiveram mais de 60 mil no Allianz Arena para assistir a um duelo que já era raro nesse tempo: Bayern Munique-TSV 1860, o dérbi entre dois vizinhos separados por umas centenas de metros de distância, que partilharam casa durante décadas e têm uma rivalidade e uma história comum de 120 anos. No próximo domingo haverá um jogo de lendas das duas equipas a assinalar os 50 anos do Estádio Olímpico de Munique, uma boa oportunidade para voltar às memórias de um dérbi que conta também a história do futebol alemão.

Em campo, aquele jogo de Taça foi quentinho. Teve três expulsões e dois penáltis, foi a prolongamento e só ficou decidido já para lá dos 120 minutos, numa grande penalidade que deixou dúvidas se foi dentro ou fora da área, convertida à segunda tentativa por Franck Ribéry. Esse foi o último encontro em competições oficiais entre as duas equipas.

Hoje, o dérbi de Munique ficou para trás no imaginário do futebol. «Se perguntarmos a adeptos alemães sobre grandes rivalidades no futebol alemão, este não é o jogo em que a maioria das pessoas pensarão. A maioria falará no Dortmund-Schalke, ou Hamburgo-St. Pauli. Na verdade, este é um dos dérbis mais antigos e costumava ser dos mais intensos. Mas perdeu o glamour, sobretudo por causa do declínio do 1860», observa Uli Hesse, jornalista e escritor, autor do livro «Tor! Uma história do futebol alemão», entre vários outros. Também escreveu sobre a história do Bayern Munique e publicará em breve uma biografia de Franz Beckenbauer.

O TSV foi fundado em 1860, data na origem de uma das suas alcunhas: Sechzig (Sessenta). Também lhes chamam Leões. Só passaria a ter futebol no final do século XIX, pouco antes da criação do Bayern Munique. São clubes com origens diferentes, diz Uli Hesse ao Maisfutebol. «O 1860 vem de uma zona da classe trabalhadora de Munique, Giesing. E o Bayern vem tecnicamente de uma zona, Shwabing, que tem artistas, teatros, cafés. De certa forma as origens dos clubes são essas. O 1860 da classe trabalhadora e o Bayern não classe alta, mas, digamos, liberal, intelectual ou artística.» Hoje em dia isso diluiu-se, acrescenta: «Agora o Bayern é um clube tão gigante que já não se pode caracterizar a base de adeptos.»

O primeiro confronto entre as duas equipas aconteceu em 1902 e desde então há mais de duas centenas de jogos para contar, onde cabem recordes – houve um 8-0 para o 1860 em 1916 –, histórias e também mitos, mas sobretudo uma mistura de animosidade e familiaridade que só os vizinhos têm.

Houve um tempo em que o dérbi era um jogo entre iguais. O 1860 chegou a ter ascendente, ainda que não necessariamente desde o início, considera Uli Hesse. «A maioria dos adeptos tem a ideia de que o 1860 é o verdadeiro clube tradicional de que toda a gente em Munique gosta e que o Bayern é um bocado um novato, que nem estava na Bundesliga quando a Bundesliga começou e só começou a ganhar troféus mais tarde. Mas não foi bem assim. Se olharmos para os resultados na história do dérbi, o Bayern era muito bom nos primeiros anos. Ganharam um campeonato nacional antes do 1860, foram campeões nacionais nos anos 30. Depois, o Bayern teve muitos problemas com os nazis, por várias razões, e isso prejudicou o clube. Demorou muito tempo a reconstruir-se.»

O TSV foi aliás o clube de Munique que participou na primeira edição da Bundesliga em 1963/64, deixando o Bayern para trás. Esses foram os anos de ouro dos «Leões», que venceram a Taça da Alemanha em 1964 e foram na época seguinte à final da Taça das Taças, num percurso em que eliminaram o FC Porto e perderam a decisão com o West Ham.

O TSV conquistou logo a seguir o seu único título de campeão alemão: em 1965/66, precisamente no ano de estreia do Bayern Munique na Bundesliga. Aliás, apadrinhou o rival. As duas equipas defrontaram-se logo na primeira jornada, com vitória do TSV por 1-0.

A história dos clubes de Munique na criação da Bundesliga tem muito que se lhe diga, observa Uli Hesse: «Na altura havia várias ligas regionais e quase 80 clubes que tecnicamente jogavam futebol de primeira divisão. Desse grupo, era preciso encontrar os 16 que iriam formar a Bundesliga. O sistema escolhido pela Federação (DFB) nunca foi realmente explicado. A DFB usou uma combinação de resultados históricos e momento atual. Até escolherem, nunca disseram a ninguém que um dos critérios era que não queriam dois clubes da mesma cidade.» O 1860 era o campeão em título da sua liga, a Oberliga Sul, e foi escolhido.

O que, claro, não deixou nada contentes os adeptos do Bayern e contribuiu para alimentar a rivalidade. «Não havia dúvidas de que o 1860 iria estar dentro. Mas o Bayern também devia estar. Os fãs também sentiram isso», nota Hesse.

Por sinal, foi a partir daí que o Bayern cresceu, até se tornar a potência que em poucos anos dominaria o futebol alemão e europeu, com uma equipa assente no talento de vários craques que vinham da formação do clube. Desde logo Franz Beckenbauer, mas também o guarda-redes Sepp Maier, a que se juntou o avançado Gerd Muller. «Há quem diga que não ter participado na fundação da Bundesliga foi um golpe de sorte para o Bayern Munique, porque eles estavam no processo de construir uma equipa fantástica e a Bundesliga teria chegado um bocado cedo de mais para os Beckenbauer e Maier. Se o Bayern tivesse sido admitido na Bundesliga em 1963 poderia ter sido forçado a contratar jogadores mais velhos e não avançar com os mais jovens», diz Uli Hesse.

Beckenbauer, uma chapada feita lenda e como a história podia ser outra

Passa por Beckenbauer uma parte significativa desta história. Não só do dérbi de Munique, mas do próprio futebol alemão. Em mais do que um momento. Natural de Munique, o Kaiser sempre disse que era adepto do 1860 em criança, e que esse era o clube onde estava destinado a jogar. Mas contava que mudou de ideias quando um dia, num torneio de formação, um jogador do 1860 lhe deu uma chapada. O menino Franz, então com 13 anos, teria decidido aí que não jogaria num clube com gente daquela, e foi para o Bayern. Mas talvez não tenha sido bem assim.

«Isso é um bocado mito», sorri Uli Hesse. «Foi o que ele contou mais tarde. A história é um pouco estranha, porque durante décadas ninguém sabia quem era o jogador do 1860. Agora temos três jogadores que disseram que bateram no Beckenbauer. O próprio Beckenbauer não se lembra do nome. Também há a teoria de que o Beckenbauer e os amigos queriam ir para o Bayern, e só precisavam de uma desculpa para não ir para o 1860. Portanto, talvez tenha havido uma chapada na cara, mas… É lenda.»

Mas essa não foi a única oportunidade de mudar a história. Anos mais tarde, conta Hesse, o 1860 tentou contratar Beckenbauer, aliciando-o precisamente com a estreia na Bundesliga: «Na altura ele já era o melhor jogador de Munique, talvez de toda a Baviera. Ele recusou a proposta e mais tarde disse que uma das razões foi porque sentiu que no Bayern teria tempo para evoluir. No 1860 Munique seria apenas um suplente.»

Vizinhos com casa partilhada, até à queda do 1860 no quarto escalão

Só podemos imaginar como teria evoluído o futebol alemão se Beckenbauer tivesse dito sim ao 1860. Não disse, e a partir daí o crescimento do Bayern Munique ofuscou toda a concorrência, num crescimento que o vizinho de Munique acompanhou de muito perto. O fosso desportivo entre os dois clubes aumentou mas, e essa é outra das singularidades do dérbi de Munique, eles sempre viveram lado a lado. Não só as sedes dos dois clubes são muito próximas, como sempre partilharam casa. Até há cinco anos.

Durante muito tempo, ambas as equipas jogaram no Grünwalder, o campo original do TSV Munique, que passou a ser municipal nos anos 30, foi destruído em parte durante a II Guerra Mundial e sujeito ao longo do tempo a várias alterações de lotação. Quando o Estádio Olímpico foi construído, para os Jogos Olímpicos de 1972, as duas equipas passaram a jogar lá. O 1860 deixava o seu estádio de sempre, já sem condições para receber jogos ao mais alto nível. Muitos anos mais tarde, os dois clubes construíram em conjunto a Allianz Arena.

Foi um enorme investimento para o 1860, agravado pela descida de divisão em 2004, quando se despediu pela última vez da Bundesliga, onde não voltou até hoje. Em 2006, o clube onde cresceu o ainda benfiquista Julian Weigl viu-se forçado a vender a sua parte do estádio ao Bayern Munique, num negócio de 11 milhões de euros. Continuou a jogar no Allianz, mas agora como inquilino, pagando uma renda ao Bayern.

Mas viriam ainda tempos mais difíceis para o 1860, que acabou por ser despromovido da 2. Bundesliga em 2016/17, numa época em que teve o treinador português Vítor Pereira no banco. Mas não ficou por aí. Nesse verão caiu para a Regionalliga, o quarto escalão, por não ter conseguido cumprir os compromissos financeiros para jogar a 3. Liga. Em julho de 2017, o Bayern rescindiu o contrato com o 1860 para a utilização do Allianz Arena. Pela primeira vez, os vermelhos de Munique passavam a ter um estádio só para si. E os azuis voltaram às origens, ao Grünwalder.

«Mais adeptos agora do que há 10 ou 15 anos»

O que, embora pareça contraditório, acabou por devolver alguma identidade ao clube, diz Uli Hesse. «A construção do Allianz Arena com o Bayern prejudicou muito o 1860. Não apenas financeiramente. Uma vez falei sobre isso com o antigo manager do St. Pauli e ele disse que quando temos dois clubes na mesma cidade um é sempre maior. Isso quer dizer que o outro clube tem de procurar alguma forma de identidade. O 1860 durante muito tempo não tinha isso. Eram quase como uma versão muito pequena do Bayern», observa: «Muitos dos adeptos odiavam isso. Havia muitos adeptos do 1860 que já não iam ao estádio, porque não queriam ir ao Estádio Olímpico, ou ao Allianz Arena. Em vez disso apoiavam a equipa de reservas.»

De volta a casa, mesmo nos escalões inferiores, o 1860 recuperou muitos adeptos. «O estádio da Grunwalder Strasse é dentro da cidade e está a cair aos bocados, é muito antigo. Mas ainda tem muito charme, muita personalidade. Quando eles voltaram ao velho estádio, muitos adeptos antigos voltaram», diz Hesse. O clube também ganhou novos fãs: «Tornou-se um bocado cool apoiar o 1860. Se vivemos em Munique e não somos de uma família tradicionalmente vermelha ou azul, não vamos escolher o Bayern Munique. Não pagamos 60 euros para nos sentarmos na Allianz Arena e ver o Bayern ganhar por 6-0 a qualquer equipa. É aborrecido. Claro que o futebol é ótimo, vão ver grandes estrelas, mas não é por isso que as pessoas vão a jogos de futebol. Por isso, sim, o 1860 ainda tem muito apoio. E talvez tenha mais adeptos agora do que há 10 ou 15 anos.»

Os dérbis entre as equipas principais dos dois clubes são hoje coisa do passado, enquanto o 1860 continua a competir na 3. Liga. Este ano não está a correr mal, por esta altura está na segunda posição. A rivalidade, essa, continuou viva nos escalões secundários. Nos últimos anos, o 1860 chegou a coincidir na 3. Liga com o Bayern Munique B, que entretanto caiu para o quarto escalão. E que aliás usa o estádio Grünwalder como casa. Além disso, houve sempre os jogos entre as equipas de reservas a alimentar esta história.

Uli Hesse esteve num desses jogos, em 2013, e descreve o ambiente no Grünwalder, a fazer lembrar outros tempos. Estavam mais de 12 mil adeptos, uma enchente que atrasou o apito inicial, havia mais aparato policial do que num jogo do Bayern no Allianz, em campo o 1860 venceu com reviravolta e nas bancadas houve muita agitação. «Foi uma experiência fantástica. Eram as equipas de reservas, mas foi um dérbi a sério, na quarta divisão. O jogo foi suspenso por 15 minutos na primeira parte, por causa de pirotecnia coisas atiradas. Depois as coisas acalmaram e jogaram futebol como deve ser. Quando as equipas voltaram para a segunda parte e o jogo foi suspenso por mais dez minutos, porque agora eram os adeptos do outro lado a atirar os seus foguetes e tochas.»