Campanhas difamatórias nos jornais, pagamentos secretos em malas negras, trafulhices sonegadas em transferências, insultos da Constituição para as Amoreiras e das Amoreiras para a Constituição. 300 quilómetros de impropérios.

Calma senhores, isto é em 1933.

A atmosfera trovejava antes da primeira-mão dos quartos de final do Campeonato de Portugal. Briosos dragões e águias altivas, representantes populares do recém-promovido regionalismo.

Problemas? Mais do que esperados. É neste dia quente, a 28 de maio, que FC Porto e Benfica cortam relações pela primeira vez. De doidos!

Cenário montado para o escândalo, eis os artistas da bola.

De um lado, os homens de Joseph Szabo, inefável treinador, lançado ele próprio para o caldeirão do pelado. Castro lesiona-se à última da hora, Szabo – 37 anos - larga a cadeirinha, o chapéu de côco e os charutos cubanos. Vai a jogo.

O Benfica chega à Invicta urbe motivado pelo título regional de Lisboa. Há, porém, problemas inesperados. A FPF muda a hora do jogo e não informa atempadamente as águias, clamam as almas encarnadas.

Sob protesto, lá avançam as armas do treinador Ribeiro dos Reis. Na frente de ataque está o veloz e imprevisível Eugénio Salvador. Ele mesmo, um dos mais famosos atores da revista portuguesa, mais de 100 peças no currículo. Voltaremos a Salvador mais à frente.

A equipa do Benfica em 1933 com Eugénio Salvador destacado

Eis as equipas oficiais desse histórico jogo:

FC PORTO-BENFICA, 8-0 (1.ª mão)
28-5-1933, Porto (Campo da Constituição)
Árbitro: Pedro Escartin (Espanhol)

FC PORTO: Miguel Siska; Avelino Martins e Jerónimo Faria; Zeferino, Álvaro Pereira e Joseph Szabo; Lopes Carneiro, Waldemar Mota, Acácio Mesquita, Artur de Sousa «Pinga» e Carlos Nunes.

BENFICA: Pedro Conceição; Francisco Gatinho e João Oliveira; João Correia, Francisco Albino e Gustavo Teixeira; Pedro Silva, Luís Xavier, Vítor Silva, Rogério Sousa e Eugénio Salvador.

MARCADORES:

1-0 Waldemar Mota (7’)
2-0 Acácio Mesquita (20’)
3-0 Waldemar Mota (29’)
4-0 Lopes Carneiro (57’)
5-0 Acácio Mesquita (65’)
6-0 Carlos Nunes (80’)
7-0 Acácio Mesquita (82’)
8-0 Waldemar Mota (85’)

A equipa do FC Porto em 1933

«Três diabos do meio dia» - Waldemar, Acácio e Pinga – flagelam o Benfica sem piedade. À meia hora, tudo resolvido, a turba da Constituição derrama gargalhadas e serve piadas sobre o visitante da capital.

Quando Lopes Carneiro, já no segundo tempo, faz o melhor golo da tarde – um remate de fora da área -, um ciclone apocalíptico abate-se sobre os rapazes do Benfica. A partir daí já não há motivação, energia, ponta de sangue. Entregam-se.

Explicações para tamanha tareia? Inspiração, superioridade, fator casa…?

Nada disso. Um diário portuense encontra o código para decifrar o enigma: a testosterona de um dos avançados do FC Porto.

Conta o jornal que o moço, cujo nome não é revelado, se enamora dias antes por uma «bela e linda artista do [teatro] Politeama». O rapaz «desempenado e vigoroso» entra em campo assoberbado. «Deu-lhe tamanha alma, que foi aquilo que se viu.»

8-0 no apito final do senhor Pedro Escartin, um espanhol escolhido salomonicamente e à pressa numa mesa de negociações. Trabalho impecável, juram os jornais da época. O problema nunca foi ele, é verdade.

Acaba o jogo, o peão esvazia-se, as equipas rumam aos esconsos balneários, aparentemente tudo na mais serena das coexistências. O pior vem já a seguir.

Quem seria a atriz do Politeama?

Presidente da federação agredido no balneário do Benfica

No vestiário do Benfica, o ambiente é, como se pode depreender, terrível. Cabeças caídas, algumas lágrimas, atmosfera fúnebre.

Noc, noc, batem à porta.

Surge a cara do presidente da FPF e delegado ao jogo, Laurindo Grijó. «Tudo bem meus senhores, precisam de alguma coisa?»

Os benfiquistas não reagem bem. Aliás, reagem mal. Muito mal, pessimamente. Se bem se lembram, as águias diziam não ter sido informadas da mudança da hora do jogo e da falta de auxílio federativo durante a permanência no Porto.

Cai o Carmo, a Trindade e Laurindo Grijó.

Guedes Gonçalves, avançado do Benfica, agride o dirigente no balneário e Grijó foge para o campo. É perseguido e sovado, deitado e encolhido no pelado da Constituição.

Um dos mais exaltados é… Eugénio Salvador. Ele mesmo, um metro e 60 de gente, mestre da comédia e dos palcos nacionais. Mas só mais tarde, poucos anos depois.

Ali, na Constituição, Eugénio Salvador é, para o pobre Laurindo, apenas mais um dos agressores.

Eugénio Salvador, futebolista do Benfica e ator de revista

Dias depois, a FPF suspende seis jogadores pelas sevícias aplicadas a Laurindo Grijó. Eugénio - lá está -, Ralf Bailão, Rogério de Sousa, Francisco Albino, Francisco Gatinho e Manuel de Oliveira (não, não tem nada a ver com o saudoso realizador).

E o principal prevaricador, Guedes Gonçalves? Salva-se?

Não é bem assim. A FPF ameaça o Benfica com mais penas e as águias decidem denunciar Gonçalves. A 12 de agosto surge a decisão final e definitiva, por unanimidade: um mês de suspensão para Eugénio Salvador, seis meses para Guedes Gonçalves e uma censura pública a Conceição Afonso, presidente do Benfica.

Eugénio Salvador joga mais uma época e aos 26 anos entrega-se por completo à representação. A lista de revistas e filmes é longa e marcante. Despede-se da vida de ator em 1987, ao lado de Simone Oliveira em ‘Toma Lá Revista’.

No Cinema protagoniza ‘Pupilas do Senhor Reitor’ e ‘Fado, a História de Uma Cantadeira’, este com Amália Rodrigues.

Eugénio morre em 1992, aos 83 anos. Pouco tempo antes, o Governo outorga-lhe a Medalha de Mérito Cultural, uma das mais elevadas condecorações nacionais para a vida cultural.

Eugénio Salvador com Eusébio, Amália e João Santos (ex-presidente do Benfica)

Vingança encarnada nas Amoreiras

Entre uma e outra decisão da FPF, Benfica e FC Porto têm a segunda-mão dos quartos de final do Campeonato de Portugal para fazer.

Nas Amoreiras, as águias vencem por 4-2, mas não revertem o impensável 8-0 da Constituição. O jogo serve para a equipa de Ribeiro dos Reis reclamar de volta o amor-próprio e deixar umas nódoas negras nos nortenhos.

Vítor Silva, um dos mais influentes do Benfica, chega a ser expulso pelo árbitro Ramon Melcón, outro espanhol. A crónica de Júlio d’Almeida, na revista ‘Stadium’, recupera o ocorrido.

«Melcón, que desde o início vinha fazendo reparos ao jogo de Vitor, resolveu expulsá-lo, quando este carregou Siska. Gasolina nas labaredas! Os adeptos benfiquistas protestaram a decisão de Melcón, o capitão recusou abandonar o campo, o árbitro pediu ajuda policial, nervos sentiam-se à flor da pele, valeu, na circunstância, o poder magnético e o fair play de António Ribeiro dos Reis que, com Vítor Silva insistindo em não acatar a decisão de árbitro, se abeirou do jogador exigindo-lhe que saísse. Pegou-lhe no braço e acompanhou-o na caminhada dando-lhe azeda lição de moral.»

Para os portistas, o jornalista só encontra loas.

«O FC Porto é uma equipa digna de se ver jogar. Mais uma vez a sua classe se afirmou de maneira insofismável. Viu-se privada quase de início do seu capitão, Waldemar Mota, que teve de sair do campo depois de carregado deslealmente por Pedro Silva. Censurável o procedimento deste jogador, que levou todo o primeiro tempo na preocupação do jogo violento e caça ao homem.»

Os acontecimentos da Constituição, a guerra burocrática na FPF e a agressividade benfiquista nas Amoreiras levam o FC Porto a tomar a decisão que ninguém queria: corte de relações formal. A primeira na longa rivalidade entre dragões e águias.

Em Lisboa a separação é lamentada. Está quebrado, dizem, «o óptimo relacionamento de longos anos».

O reatar da relação ocorre a 29 de dezembro de 1935. Organiza-se um particular na Constituição, apertam-se as mãos, tudo resolvido. Até quando?

Bem, até 1938. O Benfica conquista o título nacional, valendo-se do confronto direto com o FC Porto (3-1 nas Amoreiras, 2-2 no Lima) e os portistas não gostam. Queixam-se de que o poder está em Lisboa.

Georg Hegel, filósofo alemão dos séculos XVIII e XIX, defendia que a História se repete sempre duas vezes. Karl Marx – contemporâneo de Hegel – acrescentou que na primeira em forma de tragédia e a segunda em forma de farsa.

Na análise à realidade Benfica-FC Porto, ambos pecariam por defeito.

BIBLIOGRAFIA:

«Bola ao Ar», de Rui Miguel Tovar, editora Clube do Autor
«Clássicos do Futebol Português», do Record
«Livros de Ouro do Futebol Português», do Diário de Notícias