«Teu passado é uma bandeira, teu presente é uma lição».

Um dos trechos mais marcantes do hino do Corinthians tornou-se, quem diria, uma verdadeira afronta diante da chegada do novo técnico que durou apenas dois jogos no comando da equipa paulista. Uma contestada escolha que feriu um clube historicamente preocupado com causas sociais e políticas, tendo marcado o Brasil ao criar, na década de 80, um movimento de jogadores que contestou e bateu de frente com a ditadura.

O passado de Cuca, contratado à pressa na semana passada e que na madrugada da última quarta-feira resolveu demitir-se, tem uma condenação por violação sexual - coincidentemente, na mesma década da famosa Democracia Corinthiana.

O caso aconteceu na Suíça, em 1987, mas acabou por ser julgado somente em 1989, numa decisão que puniu o então jogador do Grémio, e agora antigo treinador do Corinthians, em 15 meses de prisão e multa de oito mil dólares.

Alexi Stival, o Cuca, tinha na altura 24 anos e estava em Berna com a equipa gaúcha para um estágio de pré-época.

Juntamente com outros dois companheiros de plantel, Eduardo e Henrique - que tiveram uma punição igual -, o antigo médio e agora treinador levou uma menor de 13 anos para dentro do Hotel Metrópole.

No quarto fechado, o trio violou a adolescente, que, no mesmo dia, apresentou queixa na polícia local, dando início ao caso conhecido na imprensa brasileira e suíça como O Escândalo de Berna.

«O relatório médico forense mais tarde encontrou vestígios de sémen dos dois jogadores Alexi [Cuca] e Eduardo no corpo da garota», escreveu o jornal suíço Der Bund, na altura.

Cuca diz que não se lembra bem do episódio e garante que não tocou na menor

Cuca, Eduardo e Henrique chegaram a ficar detidos 30 dias na cidade suíça. Foram libertados com a ajuda do departamento jurídico do Grémio e julgados apenas dois anos depois. Nunca cumpriram pena, mas apenas pelo facto de o Brasil não extraditar os seus cidadãos.

A 7 de agosto de 1987, o jornal brasileiro Estadão publicou que Eduardo e Henrique admitiram que tinham tido uma relação sexual com a jovem, mas afirmavam que tinha sido consensual. Cuca, por outro lado, negava qualquer participação no ocorrido.

O crime ficou esquecido no Brasil até 2021, quando o técnico nascido em Curitiba, no Paraná, acertou o regresso ao Atlético Mineiro, onde tinha sido campeão inédito da Taça Libertadores em 2013.

Nessa ocasião, houve uma enorme revolta dos adeptos nas redes sociais. A cobrança virtual de nada adiantou, porém, e a contratação de Cuca acabou por ser oficializada poucos dias depois.

Como a Justiça na Suíça trata qualquer procedimento criminal como altamente pessoal, não há acesso ao conteúdo detalhado nos autos do processo sem a permissão da vítima. Sendo assim, todos os detalhes oficiais do julgamento, assim como os argumentos da parte acusatória e da defesa dos acusados, são confidenciais pela lei de proteção de dados.

Agora, em 2023, a condenação de Cuca por violação sexual voltou à tona com toda a força. De forma mais impactante, até.

Ainda antes de fechar contrato com o Corinthians, o treinador paranaense, hoje com 59 anos, passou a ser perseguido e contestado pela esmagadora maioria dos adeptos corintianos e, inclusivamente, por funcionários do clube. Desta vez, resolveu se pronunciar, durante a conferência de apresentação oficial.

«Eu vou tentar ser o mais aberto possível quanto a isso. É um tema que aconteceu há 30 anos. Tenho vaga lembrança de tudo o que aconteceu, porque foi há muito tempo. Nessa vaga lembrança que tenho, eu tinha 20 e poucos anos na época. Nós íamos jogar uma partida, subiu uma miúda ao quarto, onde eu estava junto com outros jogadores. Era um quarto duplo. Essa foi a minha participação nesse caso. Eu sou totalmente inocente, eu não fiz nada», começou por explicar.

«As pessoas falam que houve uma violação, houve acho que um ato sexual a vulnerável. Essa foi a pena que foi dada. A gente vê e ouve um monte de coisas que são inverdades, chegam a ofender. Respeitei e respeito todas as mulheres. Nunca encostei o dedo indevidamente numa mulher. Nunca!», completou.

Advogado contraria Cuca e garante que foi encontrado sémen dele na vítima

As declarações de Cuca tiveram pouco peso entre os adeptos corintianos. No último fim de semana, o maior manifesto contrário surgiu da equipa de futebol feminino do próprio Corinthians. Todas as jogadoras e o técnico Arthur Elias publicaram uma nota conjunta de repúdio.

«Estar em um clube democrático significa que podemos usar a nossa voz, por vezes de forma pública, por vezes nos bastidores. Respeita as Minas não é uma frase qualquer. É, acima de tudo, um estado de espírito e um compromisso partilhado. Ser Corinthians significa viver e lutar por direitos todos os dias», diz a nota divulgada por Tamires, Gabi Zanotti, entre outras jogadoras.

O movimento Respeita as Minas foi lançado pelo Corinthians em 2018, no Dia Internacional da Mulher, com o objetivo de sensibilizar a sociedade para o combate ao assédio sexual e à violência contra as mulheres.

«Como mulher e corintiana, eu não apoio [a contratação de Cuca]. Estou totalmente ofendida. O Corinthians nunca devia permitir que pessoas com o passado do Cuca ocupem cargos de tamanha importância, de tão grande idolatria», desabafou Leonor Macedo, uma das adeptas mais reconhecidas do Timão nas redes sociais, ao Maisfutebol.

«Não muda o curso da história do Corinthians, mas mancha a história do Corinthians. Dentro destas manchas, entretanto, surgem novos movimentos que são importantes dentro do futebol e da sociedade. Faz com que mulheres e pessoas contrárias se mobilizem, chamem atenção e levantem debates fundamentais. O Corinthians sempre permitiu essa discussão, está no nosso ADN. É um clube que foi formado por operários, para ser democrático, das minorias», completou.

Ídolo do Corinthians e um dos principais rostos da Democracia Corinthiana, Casagrande é outro que tem sido uma das vozes mais ativas contra a contratação do treinador. O hoje comentador desportivo levou a peito a opção pelo agora desempregado Cuca.

«Eu estou muito dececionado. Não condiz com a história política e social do Corinthians. O Corinthians é o clube do povo, da periferia, que em 1979 ergueu uma faixa pela amnistia dos presos e exilados políticos, contrariando assim as ordens da ditadura. Nos anos 80, então, criámos a Democracia Corinthiana, que foi abraçada pela sociedade revolucionária do país. Isso sem falar no recente lema Respeita as Minas. Que tipo de respeito é esse quando se contrata um profissional condenado por violação? Isso fere a alma do corintiano», criticou duramente o antigo avançado, que teve até uma passagem pelo FC Porto, em declarações ao Maisfutebol

«O presidente Duilio Monteiro Alves, que vai ficar marcado como o pior presidente de sempre do clube, manchou e sujou a história democrática do Corinthians.»

Se não bastasse tamanha pressão nas redes sociais e na comunicação social, Cuca viu na última terça-feira toda a sua versão ser desmentida por nada mais nada menos do que o advogado suíço da vítima. Um duro golpe que viria a ser decisivo.

«A minha cliente reconheceu-o como um dos violadores. Ele foi condenado por ter tido relações sexuais com uma menor. É correto que o sémen de Alexi Stival [Cuca] foi encontrado no corpo da menina», revelou Willi Egloff, em entrevista ao UOL Esporte.

A revelação do advogado foi mesmo a gota de água que faltava para o copo transbordar.

Apesar de ter contrato até dezembro deste ano, Cuca não aguentou tamanha cobrança e, depois de apenas dois jogos (perdeu o primeiro contra o Goiás, no Brasileirão), pediu para sair. Optou pelo adeus mesmo depois de ter vencido o Remo e apurado o Corinthians para os oitavos de final da Taça do Brasil.

«Eu saio neste momento, não é pelo o que eu queria. Espera-se uma vida inteira para estar aqui. É um pedido da minha família», comunicou o treinador, logo após o triunfo por 2 a 0.

«O Sport Club Corinthians Paulista confirma que o técnico Cuca deixou o comando da equipa depois de um pedido da família para resolver assuntos particulares. Desejamos a Cuca e sua comissão técnica sucesso na sequência da carreira», confirmou o clube, em seguida, nas redes sociais.

Demorou, mas a condenação de Cuca por violação sexual falou mais alto, assim como todas as vozes ferozes de milhões de corintianos revoltados. Fizeram jus ao passado de luta e causas do clube, da bandeira levantada contra todo e qualquer tipo de injustiça.