O Montalegre ia jogar com o Abambres para a 5.ª jornada da 1.ª Divisão Distrital. A caminho daquela freguesia do concelho de Mirandela, o velhinho autocarro da equipa do Montalegre deixou de colaborar.

«O pessoal ficou um bocado assustado, principalmente os jogadores estrangeiros que tinham acabado de chegar a Portugal. Começaram a questionar a que clube tinham ido parar por acontecer uma coisa daquelas a caminho de um jogo», conta ao Maisfutebol José Manuel Viage, treinador da equipa da região do Barroso.

O problema do autocarro não foi imediatamente solucionado. De improviso, dividiram-se os jogadores por carros particulares e o jogo lá se realizou naquele dia, apesar do atraso de uma hora.

Nos 90 minutos que se seguiram ao apito inicial, o Montalegre não deu hipóteses: 4-0, três pontos. Aí, nos quatro jogos anteriores e nos 13 que se seguiram para a 1.ª Divisão Distrital da AF de Vila Real.

Limpinho! Equipa oleada, fiável e a funcionar na perfeição. A antítese do velho autocarro.​

Até ao último fim de semana, o Montalegre era uma de duas equipas, da I Liga à 1.ª Divisão Distrital, só com vitórias no campeonato, a par do Mosteirense, da AF Portalegre.

Contas feitas, o clube transmontano soma 18 vitórias e um empate no campeonato.

«Há pessoas que nem conheço a darem-me os parabéns. O que estamos a fazer não é fácil, seja em que divisão for! É preciso muito trabalho», sublinha José Manuel Viage, treinador do clube há vários anos e antigo jogador do Desportivo de Chaves na I Liga na década de 90.

Quando o Maisfutebol falou com treinador, presidente e jogadores do Montalegre, a equipa transmontana não conhecia outro sabor que não o da vitória em jogos para o campeonato e outras competições a nível distrital. «A ver se não é este fim de semana que perdemos. Já pensei tanto nisso antes de falar consigo... a ver se não é esta semana», disse o presidente do clube, Paulo Viage.

Ainda não foi desta, mas o conjunto da região do Barroso foi travado pela primeira vez. O autor da proeza? O Cerva, que conseguiu impor um nulo na receção ao Montalegre. «Perdemos os primeiros pontos mas sem haver jogo. Foi uma autêntica palhaçada. Era porrada, canela até ao pescoço», desabafou o dirigente ao microfone da Rádio Montalegre logo após o final do jogo, num discurso no qual também não poupou nas críticas à equipa de arbitragem e à AF Vila Real.

Morrer na praia, renascer com plantel multicultural e ligação a «Cha Cha Cha»

Nas últimas três temporadas, o Montalegre ficou às portas de um regresso aos campeonatos nacionais, acabando sempre no segundo lugar, primeiro atrás do Pedras Salgadas; depois do Mondinense.

José Manuel Viage tem isso atravessado na garganta até hoje. Principalmente as épocas de 2012/13 e a anterior, quando falhou a subida por um ponto. «Em 2013 empatámos em casa na penúltima jornada e acabámos por perder o campeonato. Nem vale a pena explicar porquê», explica deixando o final da frase em suspenso. «E no ano passado ficámos atrás do Mondim [n.d.r.: Mondinense], mas éramos a melhor equipa: marcámos 101 golos», acrescenta.

«Agora algumas equipas jogam connosco como se estivessem a fazer o jogo da vida delas. Toda a gente nos quer ganhar e não consegue», conta o técnico José Manuel Viage

Esta época, só algo semelhante a uma catástrofe poderá evitar que o clube da região do Barroso regresse aos campeonatos nacionais, onde passou a maior parte da sua existência mas de onde caiu há sete temporadas. A vantagem sobre o mais direto perseguidor – o Vilar de Perdizes – foi encurtada no último fim de semana, mas continua a ser confortável. São 11 pontos, mas o Montalegre tem um jogo a menos, adiado devido à queda de neve que obrigou ao adiamento do jogo com o Abambres, no final de fevereiro.

O longo período do clube nos distritais está prestes a chegar ao fim.

Para isso, têm contribuído (e muito) os vários jogadores estrangeiros que chegaram no verão a Montalegre. Às ordens de José Manuel Viage há um guineense, dois senegaleses, um sueco, dois brasileiros, um hondurenho e quatro colombianos, entretanto reduzidos para três.

Jogadores que foi possível contratar graças a parcerias celebradas com empresários e, também, a uma fundação ligada a Jackson Martínez. A instituição, administrada pela irmã do ex-futebolista do FC Porto, presta auxílio a jovens futebolistas colombianos provenientes de contextos sociais desfavorecidos ou que estejam a passar por dificuldades nas carreiras.

«Sem estas ajudas não seria possível termos este plantel. Temos um orçamento de 70 mil euros e estamos a prever que no próximo ano, se subirmos de divisão, não seja menos de 100 mil. Mas o clube está bem e recomenda-se», sublinha Paulo Viage, que antes de ser presidente chegou a ser diretor desportivo e jogador do Montalegre.

Montalegre recebeu quatro colombianos nesta época. Chegaram através de uma parceria com a fundação de Jackson Martínez: «Sem estas ajudas não seria possível termos este plantel», reconhece Paulo Viage

Primeira escolha à frente de Jackson

Um dos reforços colombianos que chegou nesta temporada é Yeisson Rentería. Avançado, de 26 anos, apontou seis golos nos últimos cinco jogos. O reforço goleador (não é o único) chegou a Trás-os-Montes no verão passado. Antes, passou por clubes como o Atlético Huila e Independiente Medellín, clube onde chegou a jogar ao lado de Jackson Martínez.

Quem o conhece diz que é uma máquina.

«O Jackson até foi suplente dele!», atira José Manuel Viage. «Temos aqui jogadores com muita qualidade e não tenho problemas em dizer-lhe que podiam jogar em qualquer divisão. O Rentería tem muita categoria, não é daqueles avançados fixos: é móvel, rápido, muito inteligente e finaliza bem», elogia.

Yeisson Rentería com Jackson Martínez. Foram companheiros de equipa no Independiente Medellín, na Colômbia. «Deu-me esta oportunidade de vir para cá. Ainda falo muito com ele», diz

Rentería confirma na primeira pessoa que entre 2007 e 2008 chegou mesmo a relegar «Cha Cha Cha» para o banco de suplentes no clube da segunda cidade mais populosa da Colômbia.

«Eu jogava mais naquele tempo. Se era melhor do que ele? Não, não! O treinador colocava-me a mim», recorda bem disposto. «Foi uma altura muito bonita. Joguei ao lado de grandes jogadores lá. Com o [Juan] Cuadrado, o Felipe Pardo e o Jackson. Foram tempos únicos», atesta Rentería, antes de confessar ter uma espécie de dívida de gratidão para com o agora avançado dos chineses do Guangzhou Evergrande.

O avançado cafetero chegou a Portugal através da fundação do ex-FC Porto, depois de quase um ano no desemprego. Diz que o futebol colombiano atravessa um momento delicado. «O Jackson deu-me esta oportunidade de vir para cá. Ainda falo muito com ele! Fui visitá-lo quatro vezes a Madrid quando ele estava no Atlético e assisti ao jogo com o Barcelona.»

Yeisson Rentería faz um balanço positivo dos primeiros meses em Portugal. Só se queixa do frio que tem fustigado particularmente aquela zona do país nas últimas semanas. Vive numa casa em Montalegre, juntamente com três colegas: dois colombianos e um hondurenho. Entendem-se. Fora e dentro das quatro linhas, como comprovam os resultados.

«A nossa união é muito forte. Esta é a melhor época desde que eu aqui estou», afirma sem hesitar Chiquinho, capitão do Montalegre. Se há alguém, para além de presidente e treinador, que pode comparar temporadas é ele. Tirando um ou outro desvio por outros clubes da região, fez a formação e praticamente toda a carreira de senior no Montalegre.

Ainda assim, Chiquinho não consegue disfarçar alguma surpresa pela campanha quase imaculada do Montalegre. «A equipa foi construída de novo. Saiu e entrou muita gente e é normal que seja necessário algum tempo para nos conhecermos e para que as coisas comecem a funcionar.»

Apesar do fosso cavado para o segundo classificado, ninguém no Montalegre arrisca projetar o clube, pelo menos para já, no Campeonato de Portugal. «Ainda não ganhámos nada! Não somos campeões», alerta o responsável máximo do clube.

Mas há sonhos que não têm problemas em assumir. «Já consegui fazer um campeonato sem derrotas, mas tivemos sete empates: 23 vitórias e sete empates, na nossa última subida de divisão. O objetivo? Para já é garantir a subida. Depois, voltar a acabar o campeonato sem derrotas e, se possível, só com vitórias e ainda ganhar a taça da associação. Mas isso são sub-objetivos», aponta o treinador.

Desses sub-objetivos caiu o do pleno de triunfos. Os outros continuam, para já, intactos.

A pensar no futuro

A única derrota da equipa nesta época aconteceu em setembro. Na 2.ª eliminatória da Taça de Portugal. O Montalegre saiu da à ilha Terceira (Açores) derrotado por 4-0 pelo Praiense, clube que está a disputar a fase de subida à II Liga. Apesar do resultado contundente, José Manuel Viage puxa a cassete atrás: garante que a equipa fez um «grande jogo».

«Não foi massacre nenhum. Eles até ficaram surpreendidos pela forma como nós, uma equipa do regional, se apresentou. Jogámos com dez a partir dos 56 minutos, assinalaram-nos uma grande penalidade inexistente aos oito minutos. Houve uma arbitragem tendenciosa. Mas fizemos um bom jogo. Na altura a nossa equipa ainda não estava muito entrosada. Hoje seria um pouco diferente», atira.

Cerca de metade dos jogadores têm outros empregos para além do futebol. O capitão de equipa, Chiquinho, trabalha numa serralharia

Se o Montalegre subir aos nacionais, a ideia dos responsáveis passa por estabilizá-lo no Campeonato de Portugal durante algumas épocas. O projeto desenhado é ambicioso: colocar o clube na II Liga, o que seria inédito nos 52 anos da sua história.

Para isso será necessário acrescentar qualidade à equipa e resistir, na medida do possível, ao assédio de clubes a jogadores, o que já está a fazer-se sentir.

Consequências do sucesso, admite o presidente. «Olhe, temos seguramente quatro ou cinco jogadores que estão debaixo de olho de clubes e empresários. Se os nossos jogadores tiverem propostas de um campeonato profissionais, ou pelo menos de uma II Liga, é lógico que tentarão a sorte. E nós ficaremos satisfeitos. Não estamos aqui para cortar as pernas a jogadores de 20 ou 21 anos.»

José Manuel Viage alinha pelo mesmo discurso. «Nem todos vão conseguir atingir os objetivos, o futebol é mesmo assim. Gostava que alguns deles tivessem sucesso. Abandonaram os países deles e as famílias à procura de um sonho», diz.

Rentería conta ao Maisfutebol os dele. O de antes e o de agora: «Quando eu era novo tinha o sonho de jogar no Arsenal. Agora tenho 26 anos. Quero fazer as coisas bem e, no futuro, ir para um clube melhor. Jogar na primeira divisão e ter dinheiro para ajudar a minha família.»