Antes da noite histórica do Camp Nou, o milagre do Campo de Santana, hoje um parque de estacionamento descampado no centro de Matosinhos.

Nas seis décadas de competições europeias, só por quatro vezes uma equipa conseguiu recuperar uma desvantagem de quatro golos numa eliminatória. Em duas dessas ocasiões, a reviravolta foi tão impressionante que nem sequer foi necessário recorrer ao desempate por golos fora.

Ao vencer por 6-1 o Paris Saint-Germain, nos oitavos-de-final da Liga dos Campeões, depois de um 4-0 na primeira mão, o Barcelona só não conseguiu um feito inédito na Europa do futebol porque há 56 anos o Leixões já havia conseguido proeza semelhante.

A conquista da Taça de Portugal ao FC Porto em pleno Estádio das Antas valeu à magnífica geração dos «Bebés» a vaga na Taça das Taças de 1961/62. Na estreia nas competições europeias, a goleada por 6-2 na primeira mão da ronda de qualificação na Suíça deixava os matosinhenses com uma quase sentenciada eliminação diante da equipa do FC Chaux-de-Fonds.

Porém, o que sucedeu na segunda mão, no dia 5 de outubro de 1961, entraria para a história das competições europeias. Raúl Machado, defesa-central e capitão dessa equipa do Leixões, recorda ao Maisfutebol como foi possível passar a eliminatória depois do descalabro na Suíça.

Imagem da receção do Leixões ao Chaux-de-Fonds no velho Campo de Santana, em Matosinhos

«Aquilo era uma novidade para nós. Tirando os jogadores que vieram do FC Porto do tempo do Dorival Yustrich, éramos muito meninos, uma equipa de jogadores da terra. Não nos demos bem naquele primeiro jogo na Suíça: um tempo esquisito, muito nevoeiro, um campo muito mal iluminado. O Rosas, nosso guarda-redes, diz que nos dois golos que sofreu nem viu a bola. Os suíços tinham uma equipa razoável e aproveitaram.»

6-2 na primeira mão. Impossível de recuperar? Pois, é aí que o Leixões se supera e faz história. E seguimos com o testemunho de Raul Machado para perceber como na segunda mão, em Matosinhos, foi possível uma reviravolta épica diante de quase dez mil adeptos, que aproveitaram o feriado para encherem o velho campo de jogos no centro da cidade.

«O jogo era à tarde, os suíços apareceram para treinar da parte da manhã e estranharam o pelado. O Filpo Núñez, nosso treinador, um argentino que era um psicólogo do carago, ao vê-los desconfortáveis com aquilo ele virou-se para nós e disse-nos “vamos eliminá-los”.» E assim aconteceu: 5-0! Osvaldo, brasileiro que «era o maestro da equipa – quando lhe dava para brincar era um caso sério», bisou, tal como Oliveirinha, o homem-golo, que havia igualmente marcado dois na primeira mão; Mário Ventura também marcou.

Campo de Santana, nos dias de hoje

«Foi uma festa enorme em Matosinhos», lembra o antigo capitão.

Partizan e Real Madrid conseguiram na Taça UEFA recuperar de quatro golos de desvantagem na década de 1980 (embora nesses casos tenham beneficiado da regra de desempate por golos fora), ainda mais impressionante é o feito conseguido agora pelo Barcelona na Liga dos Campeões.

Raúl Machado assistiu à proeza blaugrana e reconhece as diferenças para o seu tempo: «Antigamente não era comparável. Era um futebol inglesado, de bolas longas, sem táticas esquisitas, atacávamos quando tínhamos bola, defendíamos quando não a tínhamos. Tu cá, tu lá.»

Do pelado a Alvalade, após boicote nas Antas  

A verdade é que na sequência da remontada histórica os suíços protestaram por terem jogado num campo pelado. Porém, o Leixões só seria afetado na ronda seguinte, com a UEFA a obrigar a equipa matosinhense a ter de jogar noutro estádio.

Vitória do Leixões sobre o FC Porto nas Antas: 

O Leixões teve de receber os romenos do Progresul… em Alvalade. Não havia sítio mais próximo para jogar a eliminatória? Havia, mas a rivalidade falou mais alto, recorda Raul Machado:

«Pedimos para jogar nas Antas, mas o FC Porto não cedeu. Tínhamos acabado de vencer lá a Taça de Portugal e o torneio de início de época também. A rivalidade estava mais acesa. Fomos bem recebidos em Alvalade, era um dia de inverno, mas apoio não nos faltou. Empatámos 1-1; em Bucareste vencemos por 1-0. No final desse jogo, recebemos uma salva de palmas naquele estádio monumental.»

Raul Machado, antigo capitão do Leixões, com a Taça de Portugal nas Antas

O Leixões seria eliminado nos quartos-de-final pelo Carl Zeiss Jena, da antiga RDA. Devido às dificuldades financeiras agravadas pela época europeia, o clube viu-se obrigado a vender jogadores: Raúl saiu para o Benfica, Osvaldo para o Sporting.

Uma saída ainda assim com uma história para contar, recordada ao Maisfutebol pelo próprio: «O Sporting e o FC Porto também estavam interessados em mim, mas o Béla Guttmann disse que eu tinha de ir para o Benfica fosse qual fosse o preço. O problema é que eu poderia ter tido direito a metade do valor da transferência, caso já fosse internacional.»

Raul não tinha esse estatuto e explica porquê, num episódio inusitado para os dias de hoje: «O Peyroteo, que era selecionador nacional, convocou-me para um jogo fora, frente ao Luxemburgo (4-2), que foi o da estreia do Eusébio pela Seleção Nacional. No entanto, um dirigente do Leixões andou com o telegrama no bolso durante quatro dias e eu acabei por não embarcar a tempo. Pelo que não era internacional quando fui contratado pelo Benfica e não tive direito a receber a minha parte pela transferência, cujo valor foi assim na totalidade para o clube.»