Sam Allardyce durou 67 dias e um jogo como selecionador de Inglaterra. Ganhou esse jogo, por sinal, na Eslováquia e com um golo de Lallana no último sopro, a abrir a corrida ao Mundial 2018. Portanto, entra para a história como o homem que menos tempo durou no banco da Inglaterra e como o único com um registo 100 por cento vitorioso. Passe a piada, da autoria aliás do ex-internacional inglês Gary Lineker, que o assunto é sério. Tão sério que do rebentar do caso à rescisão com a Federação inglesa (FA) não chegaram a passar 24 horas.

Big Sam, como chamam em Inglaterra ao homem de 61 anos que passou por vários clubes mas nunca tinha chegado a um grande palco até agora, foi apanhado numa reportagem com câmara escondida do jornal «Daily Telegraph» a falar com aqueles que pensava serem investidores asiáticos sobre as formas como poderiam ser contornadas as regras da FA que proibem a propriedade de passes de jogadores por terceiros que não clubes (Third Party Ownership, TPO). «Ainda se pode contornar», diz Allardyce no vídeo.  

Também é visto a debater valores na ordem das 400 mil libras por uma viagem a Singapura e Hong Kong para se encontrar com os responsáveis da alegada firma. Além de criticar o seu antecessor no cargo, Roy Hodgson, dizendo que foi «muito indeciso» no Euro 2016, ou a considerar «muito estúpido» o facto de se terem gasto mil milhões de euros para reconstruir o estádio de Wembley.

Os ditos investidores eram afinal repórteres do «Telegraph» e o jornal enquadra esta «armadilha» montada a Allardyce numa investigação mais alargada, garantindo que nos últimos dez meses pesquisou e reuniu informação sobre alegados casos de subornos e corrupção no futebol britânico, depois de ter recebido a denúncia de que existem «treinadores, dirigentes e agentes específicos a receber pagamentos em dinheiro para garantirem transferências de jogadores». O «Telegraph» anuncia para breve mais revelações que envolvem treinadores da Premier League.

O «melhor emprego possível» que também é impossível

Allardyce, que foi anunciado a 22 de julho como selecionador e naquele dia não escondia a felicidade por ter finalmente chegado ao topo, por ter chegado àquele que ele próprio definiu como «o melhor emprego possível em Inglaterra», cai por algo que tem contornos graves, um selecionador admitir contornar regras da Federação e haver ainda para mais dinheiro pelo meio, um caso que levanta questões éticas sérias. Foi o que considerou a FA. 

«A conduta de Allardyce, como relatada hoje, foi inapropriada para o cargo de selecionador da Inglaterra. Ele reconheceu que cometeu um erro relevante de avaliação e pediu desculpa. No entanto, devido à gravidade das suas ações, a FA e Allardyce concordaram em terminar mutuamente o contrato com efeito imediato», diz o comunicado do organismo, frisando que se trata de defender uma questão de princípio. «A prioridade da FA é proteger os interesses mais alargados do jogo», segue o comunicado, concluindo que o selecionador de Inglaterra deve «mostrar respeito pela integridade do jogo em todas as circunstâncias».

O próprio Allardyce admitiu, também num comunicado, que «causou embaraço» à Federação e pediu desculpas, embora frise que deixou sempre bem claro no encontro com os falsos investidores que «qualquer ação que viesse a ter teria de ter aprovação da FA».

Mas Big Sam está longe de ser o primeiro selecionador de Inglaterra vítima de algo para lá do que acontece no relvado e precipita a sua saída do cargo.

Se o emprego de selecionador inglês é gigante, e igualmente principescamente pago (algo como três milhões de libras por ano), também é provavelmente um dos mais escrutinados do planeta. Sven-Goran Eriksson, que levou a Inglaterra a três fases finais de grandes competições, caindo nos quartos de final no Mundial 2002, Euro 2004 e e Euro 2006, contou na sua autobiografia uma conversa de aeroporto com Tony Blair, na qual o antigo primeiro-ministro britânico teria dito que ser selecionador de Inglaterra era o cargo «impossível».

A paixão por futebol e pela seleção, uma opinião pública atenta e crítica, uma imprensa tablóide agressiva que passa muitas vezes os limites do futebol e a crónica incapacidade de a Inglaterra conseguir resultados à altura das expectativas combinam-se para criar um ambiente de enorme pressão e complicar a vida ao selecionador. Mas também há treinadores que se põem mais a jeito do que outros, para lá dos resultados em campo.

Eriksson e o «sheik», Hoddle e os deficientes

O próprio Sven-Goran Eriksson, antes de mais. Depois de vários escândalos em torno da sua vida privada, em janeiro de 2006 o sueco foi apanhado numa armadilha do jornal «News of the World» numa reunião num hotel de sete estrelas no Dubai, a combinar com aquele que o treinador pensava ser um «sheik» árabe mudar-se para o Aston Villa depois do Mundial, clube que seria comprado pelo seu interlocutor. A Federação inglesa anunciaria semanas mais tarde que o treinador não ia continuar na seleção depois do Mundial 2006. Nunca foi assumido que foi esse o motivo, mas foi sempre visto como a gota de água numa relação já muito desgastada.

Mais direto foi o fim de Glenn Hoddle. Em janeiro de 1999, o então selecionador deu uma entrevista ao «Times» em que, ao falar sobre as suas convicções religiosas, disse acreditar que os deficientes estavam a pagar por algo que fizeram noutras encarnações. «Eu e você temos duas pernas e cérebros normais. Algumas pessoas não nasceram assim por uma razão. O que semeias, tens de colher.» Depois garantiu que foi mal interpretado, mas foi destituído do cargo de selecionador inglês três dias após a entrevista,

Mas há mais. 1977, Don Revie. O então selecionador negociou um contrato milionário para deixar a Inglaterra e assumir a seleção dos Emiratos Árabes Unidos. E de caminho vendeu a história ao «Daily Mail» por 20 mil libras. Só notificou a Federação da decisão depois de sair o artigo. A FA suspendeu-o por 10 anos, numa decisão que foi mais tarde anulada em tribunal.

Em 1996, também Terry Venables anunciou ainda em janeiro que deixaria a seleção depois do Europeu que a Inglaterra organizava, ao fim de dois anos marcados por muitas polémicas em torno dos seus negócios e de vários casos em tribunal.