Nos minutos finais do Manchester United-Newcastle, Loris Karius esperou pela conclusão de uma arrancada de Bruno Fernandes, saiu e evitou aquele que seria o terceiro golo dos «red devils». Depois do apito final, antes de se juntar à festa da sua equipa, o português foi abraçar o guarda-redes que não jogava há dois anos, que esteve naquela final de Wembley por causa de uma combinação improvável de circunstâncias e vive há cinco anos assombrado pelos erros que cometeu em plena final da Liga dos Campeões.

A incrível história de Karius não acabou.

Ele não foi herói na final da Taça da Liga – o Manchester United venceu, o Newcastle não conseguiu quebrar um longo jejum de mais de meio século sem qualquer título. Mas desta vez o alemão, acarinhado pelos adeptos do Newcastle, fez um jogo competente, tranquilo, um vislumbre da normalidade que não tem há tanto tempo. 

Karius chegou ao Newcastle em setembro como jogador livre, depois de ter terminado uma longa ligação ao Liverpool. Originalmente tinha contrato apenas até janeiro, mas o vínculo foi prolongado até final da época. Ainda não tinha jogado um minuto e era até aqui quarta ou quinta opção. Mas quando o titular Nick Pope viu um cartão vermelho frente ao Liverpool que o impediu de estar naquela que era a primeira final da história do Newcastle em 24 anos, de repente abriu-se uma oportunidade.

Martin Dubravka, o segundo guarda-redes, não podia jogar na Taça da Liga, por ter alinhado na prova pelo Manchester United na primeira metade da época. Karl Darlow saiu em janeiro, cedido ao Hull City. Restavam Karius e o inglês Mark Gillespie, que tem tido algumas aparições nas reservas mas não faz um jogo a nível sénior desde 2020. Então, avançou Karius.

O pesadelo de Kiev

Mais uma vez, o alemão viu-se sob os holofotes por causa de uma final, ele que ficou para sempre marcado por uma outra decisão, no maior palco. Foi a 26 de maio de 2018, em Kiev. Nessa época, Karius tinha ganho o lugar na baliza dos «Reds» a meio da época. Mas era desde o início o guarda-redes de eleição de Jurgen Klopp na Liga dos Campeões. Foi ele quem esteve na baliza em todos os jogos da campanha até à final com o Real Madrid.

Aos 51 minutos da final de Kiev, com o marcador ainda a zeros, Karius cometeu um erro horrível, permitindo a Benzema intercetar uma reposição de bola para marcar o primeiro golo do Real. Mané empatou pouco depois, mas o pesadelo continuou. Depois do fantástico golo de bicicleta que se tornou um clássico instantâneo, Gareth Bale viu Karius deixar fugir a bola entre as mãos num remate de longe. 3-1 era o resultado final e as imagens do alemão a ser consolado pelos jogadores do Real Madrid e a pedir desculpa em lágrimas aos adeptos do Liverpool ficaram para sempre. 

A concussão que «explica»

Havia mais naquela história. Minutos antes do primeiro golo, Karius tinha sofrido um choque num lance com Sérgio Ramos. Recuperou, voltou ao campo. Mas talvez não devesse ter voltado. Dois meses depois da final, Jurgen Klopp revelou que o guarda-redes tinha sido observado nos Estados Unidos, por suspeitas de concussão. Foi Franz Beckenbauer quem alertou Klopp, dias depois da final, para essa possibilidade.

«Fui ver as imagens das diferentes perspetivas e pensei: ‘Um rapaz que não mostrou nenhuma fraqueza nesse jogo até cometer esses erros enormes num jogo tão importante e ninguém pensa que pode ter sido por causa desse choque?’», disse então Klopp: «Pensei: ‘Temos que analisar isto.’ E agora sei que uma concussão não desaparece no mesmo dia. Pode ser detetada dias depois. E cinco dias passados da final, o Loris continuava a ter 26 dos 30 marcadores de uma concussão.» Na altura, o treinador do Liverpool não tinha dúvidas: «Para mim, é a 100 por cento a explicação da prestação dele.»

Mas por essa altura Karius já tinha ficado marcado para sempre por aquela final. Virou meme e as piadas não foram o pior. Foi alvo de ameaças de morte.

Também houve quem saísse em sua defesa. Iker Casillas, então no FC Porto, publicou um vídeo com alguns dos seus próprios erros, em solidariedade com Karius, com a hashtag Eutambémfalho.

A promessa que o Benfica tentou contratar

Aos 24 anos, o mundo caía em cima do guarda-redes que tinha tido até aí um percurso em ascensão. Karius começou a jogar no Estugarda e aos 16 anos foi seduzido pelo Manchester City. Terminou o percurso de formação em Inglaterra, onde viu uma oportunidade de evoluir mais rapidamente. Mas não chegou a estrear-se pelos Citizens e foi cedido ao Mainz, que viria depois a adquirir o seu passe em definitivo.

Tinha 19 anos quando foi lançado por Thomas Tuchel, em dezembro de 2012, tornando-se então o guarda-redes mais jovem de sempre a representar o Mainz. Ao fim de uma primeira temporada a jogar com regularidade era um dos nomes para o futuro entre os guardiões europeus e no verão de 2014 foi alvo do Benfica.

Na altura, confirmou a proposta das águias e disse que decidiu continuar no Mainz. Acabaria por renovar com o clube e anos mais tarde voltou a falar sobre o assunto, dizendo que na altura achou que era cedo para sair.

Ao longo de três temporadas foi um dos destaques do Mainz, que conseguiu um sexto e um sétimo lugares na Bundesliga. Em 2016, Jurgen Klopp foi ao seu antigo clube buscar aquela que era uma das promessas do futebol alemão, com presenças em vários escalões das seleções jovens.

Do Besiktas ao Union Berlim e dois anos no deserto

Depois de uma primeira temporada de adaptação, Karius ganhou vantagem sobre Simon Mignolet como primeira opção para a baliza dos «Reds». Até à final de Kiev.

No início de agosto, quando voltou pela primeira vez a jogar em Anfield depois da final da Liga dos Campeões, Karius foi recebido com uma ovação pelos adeptos do Liverpool. Mas nessa altura ele já tinha perdido o lugar. Os «Reds» tinham feito uma aposta de alto nível para a baliza, contratando Alisson, um investimento de 62,5 milhões que fizeram do brasileiro o guarda-redes mais caro de sempre. Klopp continuava a apoiar publicamente Karius, mas o futuro do alemão em Inglaterra estava comprometido e Karius decidiu sair, para tentar relançar a carreira.

Rumou ao Besiktas, num empréstimo de duas temporadas. Mesmo na Turquia, as suas exibições – e os seus erros – eram sujeitas a enorme escrutínio. Karius jogou com regularidade, mas entrou em rutura com o clube turco, por causa de vários meses de salários em atraso. Rescindiu em maio de 2020, em plena pandemia, antes do final do contrato.

Voltou a Liverpool, mas não seria para ficar. Na época 2020/21, em novo empréstimo, regressou à Alemanha, para representar o Union Berlim. Nessa altura garantia que já tinha deixado para trás o pesadelo de Kiev. «Foi há dois anos. Já joguei 60 jogos depois disso. Há muito que ultrapassei isso. As únicas pessoas que querem falar sobre isso são os jornalistas», disse à chegada a Berlim: «Ganhei a experiência que poucos têm na minha idade, absorvi tudo, o positivo e o negativo, e saí mais forte.»

Tinha esperança de jogar com regularidade no Union Berlim, mas acabou a ser segunda opção, atrás do titular Andreas Luthe. Ao todo, fez cinco jogos pelo clube alemão, o último deles a 28 de fevereiro de 2021. Não voltou a jogar desde então.

No final da época voltou a Liverpool. Mas foi uma temporada no deserto. Sem ter sido sequer inscrito, embora treinasse com os restantes guarda-redes, o tempo passou até terminar o contrato, no verão de 2022. Em setembro, apareceu então a oportunidade de representar o Newcastle. Em dezembro, falava sobre os anos difíceis que passou, mas dizia que tinha confiança nas suas qualidades.

«Não tem sido fácil. Estive longe da ribalta na Turquia e fiz alguns jogos na Alemanha, mas já joguei mais de 200 jogos no escalão principal e nas seleções, por isso sei das minhas qualidades», afirmou, citado pela ESPN.

Mas continuava afastado dos relvados. Sem qualquer protagonismo em campos nos últimos meses, as aparições públicas de Karius resumiam-se à imprensa cor de rosa, por causa da sua relação com a celebridade italiana Diletta Leotta.

«Fantástico sentir o ambiente outra vez»

Até que os astros se alinharam para este regresso. Antes da final com o Manchester United, o treinador Eddie Howe aludiu ao passado de Karius, dizendo que «seria magnífico para ele reescrever a história da sua carreira». «É a beleza do futebol. Esta imprevisibilidade é o que o torna uma coisa tão fantástica de ver.»

Karius, agora com 29 anos, voltou a jogar uma partida oficial, 728 dias depois. Sofreu dois golos, um marcado por Casemiro na sequência de um livre e outro depois de a bola ter desviado em Botman, num remate de Rashford. E fez um punhado de defesas, uma delas a remate de Weghorst, a fechar a primeira parte, a outra naquela bola de Bruno Fernandes nos minutos finais. Não foi ele a salvar o dia, mas não cometeu erros gritantes, foi aliás um dos melhores em campo do Newcastle e lidou com serenidade com a enorme pressão sobre o seu regresso aos relvados.

Foi, disse no final, um dia bom. «Para mim foi ótimo participar de novo noutro grande momento como este. Acho que fiz o melhor que pude, preparei-me bem nesta semana, fui para o jogo com uma boa sensação», afirmou na zona mista de Wembley: «É uma desilusão, porque gostava de ter trazido o troféu para casa com os meus companheiros, mas foi fantástico sentir o ambiente outra vez, os adeptos a apoiarem-nos. Foi uma boa sensação.»