Não era só mais um dérbi, não para os adeptos do Austria Salzburgo, que lançaram o jogo com esta coreografia. Mozart a empunhar um violino perante um touro vermelho, sem subtilezas.

 

Foi especial a noite em que o Austria Salzburgo recebeu o clube cujo nome se recusa a pronunciar. Um encontro com a história em 90 minutos, entre dois clubes que eram apenas um há 18 anos. De um lado o RB Salzburgo, o gigante que domina o futebol austríaco, do outro os adeptos que viraram costas ao novo projeto e reclamam a herança histórica do Austria Salzburgo original. Em campo, o RB Salzburgo dominou, como era de esperar, frente a um adversário que joga no terceiro escalão.

O jogo foi marcado para o estádio de Grödig, com maior capacidade do que o Max Aicher, a casa do Austria Salzburgo. E a lotação de 4000 espectadores esgotou rapidamente. A maior parte a torcer pela equipa da casa, enquanto num canto de uma bancada estavam 400 adeptos do RB Salzburgo.

A expectativa estava lançada desde que o sorteio da segunda eliminatória da Taça ditou o primeiro confronto de sempre entre os dois clubes. Logo nesse dia, o Austria Salzburgo assinalava o resultado do sorteio sem referir o nome e sem reproduzir o logotipo do adversário.

Violeta só... as meias dos guarda-redes

É preciso recuar 18 anos para perceber a história. Mas antes de mais é preciso perceber que ela começou muito antes. O Austria Salzburgo foi fundado em 1933, há 90 anos, e tem um longo percurso no futebol austríaco. Adotou vários nomes pelo caminho, em função da mudança de patrocinadores. Era Casino Salzburgo, por exemplo, quando conquistou o primeiro título de campeão austríaco em 1993/94, na época aliás em que deixou o Sporting em choque na Taça UEFA na caminhada para a final, perdida frente ao Inter. Mas o que aconteceu em 2005 foi diferente.

Nessa altura entrou em campo a Red Bull, que tem sede em Salzburgo. A empresa comprou o clube e não lhe mudou apenas o nome. Decidiu mudar também o símbolo e as cores, do violeta e branco para o vermelho e branco da marca. A decisão foi mal recebida por muitos adeptos e ainda houve uma fase de negociações. Mas a única cedência que a empresa admitiu fazer foi deixar uns toques de violeta no logotipo das camisolas, na braçadeira do capitão e… nas meias dos guarda-redes. E então, um grupo de adeptos decidiu virar costas e criar um clube, recuperando o nome e as cores originais.

«A empresa tinha acabado de destruir uma grande parte das nossas vidas. Deixou cair as cores. Apagou a história. Andámos a negociar com eles e no fim o que propuseram foi manter as meias dos guarda-redes violeta», contou à BBC um dos adeptos que deram corpo ao novo Austria Salzburgo, Stefan Schubert. Atualmente membro da direção, ele descreve assim esse processo: «Honestamente, não tínhamos a mais pequena ideia de onde nos íamos meter. Era, e ainda é, muito trabalhoso. Mas também é muito divertido.»

O Austria Salzburgo começou por competir no sétimo escalão do futebol austríaco. Subiu rapidamente a pirâmide e em 2015/16 chegou à II Liga, mas o passo foi demasiado grande, o esforço financeiro também. O clube viu-se em risco de acabar e voltou a descer aos escalões secundários.

Enquanto isso, o RB Salzburgo prosperava. O clube que para efeitos formais representou a continuidade do original cresceu assente no poder financeiro da empresa-mãe, com capacidade para criar uma estrutura forte e com vários ramos, que tem no Leipzig se tornaria o maior expoente. O trabalho de formação e a capacidade de potenciar talento, aliados a uma filosofia de jogo clara, assente no trabalho de treinadores como o agora benfiquista Roger Schmidt, transformou o RB Salzburgo na grande potência do futebol austríaco, presença regular nas competições europeias. Foi campeão austríaco nas últimas dez épocas, 14 vezes desde 2006. Até então, o Austria Salzburgo original contava três títulos de campeão.

Os dois clubes seguiram caminhos paralelos, em mundos diferentes. Até esta noite.

Era um jogo especial, não apenas para o futebol austríaco. Para muitos adeptos, o clube violeta que renasceu em Salzburgo tornou-se um símbolo de resistência à lógica capitalista do futebol moderno. Tal como o FC United, criado por adeptos descontentes do Manchester United quando a família Glazer adquiriu o clube. Os dois clubes defrontaram-se em 2017 em dois encontros solidários e o FC United fez questão de deixar uma mensagem de apoio ao Austria Salzburgo antes do jogo desta noite.

Na Alemanha, onde a questão é particularmente sensível também por causa do RB Leipzig, adeptos de diferentes clubes mostraram em várias ocasiões faixas com o lema do Austria Salzburgo: In Sazlburg nur die Austria. Em Salzburgo só o Austria.

«A nossa existência é o maior protesto»

Para os adeptos do clube violeta de Salzburgo, este seria sempre um jogo especial. Prepararam-no para tornar o momento memorável, mas de forma pacífica. Como disse Stefan Schubert à BBC: «A nossa existência já é o maior protesto possível. Os adeptos vão sobretudo focar-se em criar um grande ambiente.»

E assim foi. A festa começou cedo. Nas redes sociais, o Austria mostrava o ambiente que rodeava a preparação do jogo «com a equipa de Fuschl», local da sede da Red Bull. Estas são imagens do último treino.

Do lado do Salzburgo, encarava-se a partida como sempre. «Estamos a abordar o jogo com uma atitude muito profissional e a preparar-nos como para qualquer outro jogo», disse o treinador Gerhard Struber, garantindo que a equipa iria estar «totalmente focada no aspeto desportivo».

Meia hora de atraso e um grande ambiente

No estádio, os adeptos violeta chegaram cedo para fazer a festa. Era o ambiente de um grande jogo, a despertar interesse Europa fora – estavam 50 jornalistas nas bancadas, vindos de vários países. O aparato de segurança era grande, para precaver problemas. E essa foi uma das vitórias da noite. Apesar de alguma tensão, o jogo decorreu sem incidentes.

Ainda houve um contratempo antes do pontapé de saída. À chegada ao estádio, o autocarro do RB Salzburgo viu-se bloqueado por um carro mal estacionado. O início do jogo foi atrasado em meia hora, quando estavam também ainda muitos adeptos à espera para passar as barreiras de segurança e entrar no estádio.

Lá dentro, um grande ambiente.

E o simbolismo do momento reforçado em pormenores como este, a camisola do guarda-redes do Austria Salzburgo.

Em campo, Dedic traduziu a superioridade do Salzburgo em golo logo aos oito minutos. Mas o Austria conseguiu resistir até ao intervalo sem sofrer mais golos, o que deu ainda mais ânimo ao espetáculo pirotécnico que os adeptos prepararam e que adiou por alguns minutos o arranque da segunda parte.

Na meia hora final, o Salzburgo quebrou a resistência dos adversários, com Forson a bisar e Pavlovic a fixar o 4-0 final. Não aconteceu uma surpresa, mas aconteceu história.