O Palmeiras campeão depois de ter chegado a estar a 14 pontos da frente. O descalabro épico do Botafogo. Cinco clubes na luta pelo título a duas jornadas do fim. Históricos em apuros até ao último suspiro e a descida do Santos, pela primeira vez em 111 anos de vida. O Brasileirão 2023 é uma história incrível.

Foi um campeonato ultra-competitivo, mesmo para os padrões da Série A brasileira, historicamente aberta. O que reforça o mérito de Abel Ferreira na conquista daquele que foi o seu nono título no Palmeiras e reforça o estatuto do treinador português entre os mais bem sucedidos de sempre no Brasil.

Abel teve a companhia de muitos compatriotas. No total, passaram nove treinadores portugueses por este Brasileirão. Sem contar com Vítor Pereira, que nem começou o campeonato. Também eles escreveram a história da competição, que foi particularmente agitada nos bancos. Houve quase três dezenas de mudanças de treinador, que incluíram o regresso de vários senadores do futebol brasileiro, de Scolari, saído da reforma para terminar a lutar pelo título, a Paulo Autuori ou Tite, que assumiu o Flamengo dez meses depois de deixar a seleção do Brasil.

Houve grandes momentos, muito drama e protagonistas memoráveis, do menino Endrick ao veterano Luis Suárez. Este é, numa sequência cronológica, um filme dos momentos que marcaram um campeonato para a história.

Vítor Pereira, adeus ainda antes do pontapé de saída

Vítor Pereira nem começou o campeonato. Faltava uma semana para o arranque do Brasileirão quando foi despedido do Flamengo, ao fim de quatro meses desastrosos. Menos de um mês depois de ter deixado o Corinthians, invocando motivos pessoais e a doença da sogra, o treinador chegou ao clube que era campeão em título da Libertadores em meados de dezembro, com uma série de troféus para disputar. Perdeu-os todos: a Supertaça do Brasil e a Supertaça Sul-Americana, o Mundial de clubes e por fim a final do Campeonato Carioca, além de ter entrado na Libertadores com uma derrota. Isto em apenas 16 jogos.

Bancos mais portugueses que nunca

Ainda assim, começaram o Brasileirão sete treinadores portugueses, um recorde. Além de Abel Ferreira, havia Luís Castro (Botafogo), Pedro Caixinha (RB Bragantino), Renato Paiva (Bahia), Pepa (Cruzeiro), Ivo Vieira (Cuiabá) e António Oliveira, que chegou apenas à primeira jornada do Brasileirão no banco do Coritiba. Saiu após a derrota com o Flamengo na ronda inaugural. Mas voltou pouco depois, a substituir outro português. Ivo Vieira deixou o Cuiabá à quinta jornada e Oliveira regressou ao clube que já tinha orientado em 2022. Ainda chegariam mais dois técnicos portugueses, Bruno Lage e Armando Evangelista. Dos nove, apenas três terminaram a época: Abel, Caixinha e António Oliveira.

Cuca, condenado pelo passado

O Brasileirão 2023 teve muitas polémicas, mas uma das mais marcantes envolveu uma mudança de treinador. A escolha de Cuca para treinar o Corinthians, um clube que se orgulha da sua história em nome de causas sociais e políticas, desencadeou um movimento de contestação. Em causa estava uma condenação do técnico por violação nos anos 80. A 27 de abril, uma semana depois de ser apresentado, Cuca saiu mesmo. O Timão virou-se para um senador, mas Vanderlei Luxemburgo também não acabou a época. Ao fim de quatro meses foi substituído por Mano Menezes, que tinha começado a época no Inter, e que acabou por conduzir o Corinthians a um 13º lugar, apenas sete pontos acima da linha de água.

Scolari, da reforma à luta pelo título

O Brasileirão também voltou a ter como protagonista Luiz Felipe Scolari. O treinador que correu mundo, que foi selecionador de Portugal e do Brasil por duas vezes o longo de quatro décadas de carreira, tinha anunciado a reforma meses antes. Em dezembro, depois de uma época em que foi treinador e diretor-técnico do Athletico Paranaense e levou o clube à Libertadores, Felipão assumiu uma despedida emocionada. «Fui muito feliz», dizia. Mas não resistiu ao apelo dos bancos e a 16 de junho confirmou o regresso, aos 75 anos, agora para orientar o Atlético Mineiro. Nem começou bem, mas foi recuperando, até chegar à reta final na luta pelo título. O Atlético Mineiro foi a equipa que fez a melhor segunda volta, embora tenha acabado por terminar no terceiro lugar.

Palmeiras-Botafogo, o Round 1 antes do adeus de Luís Castro

25 junho, 12ª jornada. O Botafogo arrancou o Brasileirão com cinco vitórias seguidas e andava nas nuvens por essa altura, tal como Tiquinho Soares. O ex-portista marcou o golo da vitória do Fogão, que liderava o campeonato com sete pontos de vantagem sobre o Grêmio, segundo classificado. O Palmeiras sofria a primeira derrota em casa ao fim de quase um ano e ficava a oito pontos de distância. As coisas não estavam boas para o Verdão e para Abel, que por essa altura chegou a admitir que o título estava perdido. Mas começava aí a instabilidade do Botafogo, que já vivia a incerteza quanto ao futuro de Luís Castro, com uma proposta milionária para treinar o Al Nassr de Cristiano Ronaldo. A 30 de junho, no meio de crescente contestação dos adeptos, consumou-se mesmo a saída do treinador português. O Botafogo recorreu a Cláudio Caçapa, que estava no Lyon – também detido por John Textor – e o treinador interino manteve o clube na rota das vitórias, até à chegada de Bruno Lage, a 8 julho.

Fogão, a melhor primeira volta de sempre

A 13 de agosto, o Brasileirão chegava a meio caminho. Com Bruno Lage, o Botafogo vinha perdendo gás, mas mesmo com dois empates em quatro jogos dobrou o campeonato com 47 pontos, que representaram a melhor primeira volta de sempre. E com 13 pontos de vantagem para a dupla de perseguidores, Palmeiras e Grêmio. Mas aos sinais de alguma instabilidade juntava-se outro problema. Tiquinho Soares, grande figura do arranque da temporada, lesionou-se e ficou fora dos relvados um mês. Mesmo com a chegada do veterano Diego Costa por essa altura, o Botafogo não mais conseguiria voltar àquela forma da primeira volta.

A afirmação do menino Endrick

Entre o campeonato e a Libertadores, o calendário do Palmeiras era intenso e os resultados irregulares. E crescia a pressão sobre Abel em relação à pouca utilização do menino-prodígio Endrick. No jogo com o Bragantino de 1 de outubro, entre os dois encontros da meia-final da Libertadores com o Boca Juniors, o miúdo de 17 anos que sairá no verão para o Real Madrid falou em campo. Titular, fez uma grande exibição, com um belo golo que inaugurou o marcador. O Palmeiras perdeu esse jogo e ainda havia de piorar antes de começar a recuperar, mas Endrick reclamava mais tempo e viria mesmo a ganhá-lo, assumindo um protagonismo que haveria de confirmar em muitas ocasiões na caminhada até ao título. Símbolo da recuperação do Palmeiras, termina o campeonato com 11 golos, o mais jovem de sempre a atingir essa marca numa edição do Brasileirão.

Botafogo em queda e fim da linha para Bruno Lage

A eliminação da Taça Sul-Americana deu início a um setembro negro para o Botafogo, com três derrotas consecutivas no Brasileirão. Seguiu-se o empate com o Goiás, que marcou o fim da linha para Bruno Lage, contestado pelos adeptos mas também dentro do balneário, onde os jogadores nunca interiorizaram as suas ideias. Queriam aquilo que já conheciam, queriam «arroz com feijão», assumia o avançado Marçal, depois da promoção do adjunto Lúcio Flávio e da vitória sobre o Fluminense no primeiro jogo pós-Lage. O português fez 15 jogos no banco, somando apenas quatro vitórias, mais sete empates e quatro derrotas. Ainda assim, quando Lage saiu, a 4 de outubro, o Botafogo continuava líder, com sete pontos de vantagem sobre o segundo, então o Bragantino de Caixinha.

Palmeiras: dos 14 pontos para o Botafogo à recuperação

Seis jogos sem vencer entre final de setembro e meados de outubro, entre eles a presença falhada na final da Libertadores, pareciam ter deitado tudo a perder para o Palmeiras, com Abel e a sua equipa técnica a assumirem que atravessavam a pior fase em três anos no Brasil. A 19 de outubro, depois da derrota com o Atlético Mineiro à 27ª jornada, o Palmeiras estava a 14 pontos do líder Botafogo. Mas virou. A recuperação, contou Abel, passou por uma conversa com o plantel, a apelar ao orgulho de campeões, mas sobretudo por uma mudança tática, com o treinador a voltar a recorrer ao sistema de três centrais que já tinha utilizado noutros momentos e a conseguir integrar o talento de Endrick na frente, e a equipa engatou numa série de cinco vitórias consecutivas, que incluiu uma goleada ao São Paulo (5-0) e a reviravolta frente ao Botafogo. E de repente o campeão estava de novo na luta.

O Peixe em queda

A 22 de outubro, o Santos saía de Porto Alegre vergado a uma derrota por 7-1 frente ao Internacional. Faltavam dez jornadas para terminar o Brasileirão e o Peixe estava em zona de despromoção, depois de uma primeira volta medíocre, com apenas 18 pontos somados, e quatro treinadores no banco. O primeiro foi Odair Hellmann, depois veio Paulo Turra, que ficou pouco mais de um mês, a seguir Diego Aguirre, que só durou cinco jogos. Foi um homem da casa, Marcelo Fernandes, quem pegou na equipa na reta final do Brasileirão. O Santos, que vinha já em perda nas últimas épocas, com uma equipa descaracterizada entre muitas entradas e saídas, chegou a dar alguns sinais de recuperação, mas não chegou. Acabou mesmo despromovido, pela primeira vez nos seus 111 anos de história, logo no primeiro ano depois da morte de Pelé.

A reviravolta no jogo do título

2 novembro. Se há um jogo que define o campeonato, é o Botafogo-Palmeiras da 31ª jornada. Aos 36 minutos, o Fogão vencia por 3-0. E na segunda parte o Palmeiras virou, iluminado pelo menino Endrick. Foi ele quem marcou o golo que lançou a reviravolta e foi ele que apontou o segundo aos 84m, ante de Flaco Lopez e Murillo fixarem o 4-3 final. O Palmeiras chegou ao Engenhão a sete pontos de distância e saiu a quatro, deixando um Botafogo devastado, em queda livre a partir daí.

Não um, mas dois portugueses na corrida ao título

A 12 de novembro, o RB Bragantino arrancou um empate ao Botafogo. Era mais um passo na descida ao inferno do Fogão, que perdia pela primeira vez a liderança para o Palmeiras, mas mantinha o Bragantino na luta pelo título, objetivo que poucos antecipariam. Nessa altura ficava a três pontos da liderança e com menos um jogo, a quatro jornadas do fim. Mas a equipa quebrou na reta final e nos últimos cinco jogos apenas venceu um. Ainda assim, o treinador português garantiu uma classificação histórica para o clube, um sexto lugar que vale a presença nas pré-eliminatórias da Libertadores na próxima época. E prepara-se para continuar o trabalho na próxima temporada.

Três chicotadas de uma vez para fechar

Foi outra das tendências deste Brasileirão. Não é recorde, mas anda lá perto. Foram quase 30 mudanças de treinador, quase meia centena de técnicos nos bancos. Só cinco clubes não mudaram. Além de Palmeiras e Bragantino, com Abel e Caixinha, também Fluminense, Grêmio e Fortaleza terminaram a época com o mesmo treinador. De resto, foi um corrupio, liderado pelos cinco técnicos no banco do Botafogo, que a cinco jornadas do fim ainda trocou Lúcio Flávio por Tiago Nunes. Em meados de novembro, também Armando Evangelista, que tinha assumido o Goiás em junho, deixou o clube, que não evitou a despromoção. E ainda houve uma terceira mudança por essa altura. O Cruzeiro, em risco de descida, chamou Paulo Autuori, que era o diretor técnico do clube, para a reta final do Brasileirão. Mais um senador, num campeonato que acabou com vários dos pesos pesados do futebol brasileiro nos bancos, todos eles chegados no decorrer da época: de Scolari a Rogério Ceni, sucessor de Renato Paiva no Bahia, passando por Mano Menezes e Tite, que em outubro substituiu Jorge Sampaol no Flamengo, então em risco não apenas de falhar o título mas também um lugar na Libertadores.

António Oliveira, o outro português de Série A

Abel é a grande figura da época, Caixinha fez uma temporada memorável no RB Bragantino, mas houve outro treinador português a assinar um percurso sólido no Brasileirão, com bem menores recursos e expectativas. António Oliveira manteve o Cuiabá entre a elite, conseguindo garantir a permanência a duas jornadas do fim, a salvo da loucura das últimas rondas. Aos 41 anos, um trabalho digno de registo do técnico que já leva boa bagagem de experiência no Brasil, nas passagens por Athletico Paranaense, pelo próprio Cuiabá e pelo Coritiba

Suarez, ídolo instantâneo

A 3 de dezembro, a Arena Grêmio encheu para saudar um grande. Era o último jogo de Luis Suárez em casa, na reta final de uma época em que ele se tornou ídolo instantâneo do clube. O Brasileirão tem sido nos últimos anos destino de muitos craques em fim de carreira, mas talvez nenhum tenha tido o impacto de Suárez. Aos 36 anos, o uruguaio foi uma das figuras do campeonato, segundo melhor marcador com 17 golos, líder nas assistências. Marcou o golo da vitória sobre o Vasco nesse jogo de homenagem e despediu-se com dois golos, entre eles um penálti à Panenka, na vitória sobre o Fluminense que garantiu na última jornada o segundo lugar para o Grêmio.

Botafogo consuma a maior «pipocada» da história

O nulo frente ao Cruzeiro na penúltima jornada formalizou o fim do sonho do Botafogo. O clube que foi de Garrincha nem era favorito à partida, mas depois daquela primeira volta de luxo já havia muita gente a encomendar as faixas e a antecipar aquele que seria apenas o terceiro campeonato do Fogão, o primeiro desde 1995. Depois, aconteceu um descalabro de proporções épicas. Apenas três vitórias na segunda volta, sem conseguir ganhar um único dos últimos 11 jogos, o Botafogo não só não foi campeão como acabou mesmo fora dos quatro primeiros e dos lugares de classificação direta para a fase de grupos da Taça Libertadores. Uma situação, como disse Tiquinho Soares num sentido pedido de desculpa aos adeptos, que «nunca ninguém viu».

A consagração do Verdão e Abel no Olimpo

A vitória sobre o Fluminense na penúltima jornada deixou o Palmeiras com uma mão e meia no título. A última ronda era apenas uma formalidade, com três pontos de vantagem sobre Atlético Mineiro e Flamengo e uma almofada muito confortável na diferença de golos. E o Verdão confirmou o bicampeonato com o empate frente ao Cruzeiro, selado com um golo de Endrick. O guião perfeito. O Palmeiras reforça o estatuto de maior vencedor do Brasileirão, com 12 campeonatos, e Abel ganha lugar em definitivo na história, com nove troféus em três anos e meio, entre eles duas Libertadores e dois campeonatos brasileiros. Agora, segue-se a festa e os dias que definirão se o futuro de Abel continua a passar pelo Palestra Itália. Pouco antes do fim do campeonato, o treinador assumiu o desgaste com as idiossincrasias do Brasileirão, do calendário louco à logística – como o relvado do Allianz Parque «cheio de coisinhas do concerto de Taylor Swift» -, e manteve em aberto o futuro, quando tem uma proposta milionária do Qatar no bolso. Mas na ressaca da festa já admitiu que pondera mesmo ficar.

A louca fuga à descida e o inferno do Santos

Houve vários históricos em apuros até ao fim, alguns deles até à última jornada. O Cruzeiro já estava a salvo, mas Santos, Vasco e Bahia tentavam fugir ao último lugar de despromoção. E foi de loucos. Naquelas menos de duas horas, estiveram os três despromovidos em momentos diferentes e estiveram os três a salvo. No fim caiu o Santos, que era quem partia para a ronda em melhor posição, derrotado em casa por um golo do Fortaleza já com os descontos adiantados. A noite terminou em festa para o Vasco e para o Bahia e em desespero para o Santos, uma desilusão que redundou em violência na Vila Belmiro e por toda a cidade. Uma comoção a que se associaram antigos símbolos do clube, como Neymar, Rodrygo, o ex-benfiquista Léo ou ainda Pepe, ídolo do Santos e companheiro de Pelé nos tempos de glória do clube. Aos 88 anos, o «Canhão da Vila» deixou uma mensagem nas redes sociais. «Como se os Deuses do futebol nos protegessem...»