O que mudou num ano para o Leicester. O conto de fadas não resistiu ao choque com a realidade, mais doloroso ainda do que seria de imaginar. O campeão inglês entrará para a 25ª jornada da Premier League um ponto acima da linha de água. O risco de descida de divisão é bem real. Incrível, mas não inédito. O Leicester não está sozinho no pesadelo.

Ninguém esperava que o Leicester repetisse este ano a façanha de 2015/16, quando foi embalando semana após semana na Premier League e resistiu até ao fim no topo, para conquistar um título de campeão que fica para sempre como uma das grandes surpresas da história. Mas uma queda tão abrupta e tão rápida também não passaria pela cabeça dos adeptos, mesmo dos mais pessimistas. Já se chegou ao ponto de questionar o futuro de Claudio Ranieri que, já agora, foi eleito melhor treinador do ano pela FIFA. Mas nesta quarta-feira a direção do clube veio garantir «confiança inabalável» no italiano.

O Leicester perdeu um jogador importante, o médio NGolo Kante, que rumou ao Chelsea no defeso. Mas manteve os outros protagonistas da época passada, incluindo o criativo Ryad Mahrez e o goleador Jamie Vardy. A época não começou bem na Premier League, mas a estreia na Liga dos Campeões correu tranquila e quando chegou à última ronda da fase de grupos, a derrota por 0-5 com o FC Porto no Dragão, o Leicester já tinha o apuramento para os oitavos e o primeiro lugar garantidos.

Mas na Premier League as coisas foram piorando. Apenas duas vitórias desde outubro, numa equipa onde Vardy, que terminou a época passada com 24 golos apontados, tem apenas cinco marcados até agora. Tantos como o ex-sportinguista Islam Slimani, reforço de peso mas que ainda não jogou este ano, depois de ter representado a Argélia no CAN e de ter voltado lesionado.

É muito uma questão de confiança, admitem os jogadores. «As linhas são ténues no desporto. Se estamos confiantes e ganhamos um jogo avançamos semana a semana. Quanto mais ganhamos mais confiança temos», diz o defesa Robert Huth à BBC, numa entrevista em que admitiu também a falta que faz Kanté.

Neste terço final de época em que tem de concentrar-se na luta pela permanência, Claudio Ranieri e companhia ainda terão outras batalhas para disputar. Já nesta quarta-feira o jogo de Taça de Inglaterra com o Derby County, repetição depois do empate a dois golos na primeira partida. E nas semanas seguintes a eliminatória de Liga dos Campeões com o Sevilha.

Vai ser duro, admitem o treinador e os jogadores. «Nesta altura estamos a lutar contra a descida», diz Huth, uma ideia assumida também pelo guarda-redes Kasper Schmeichel depois da derrota de domingo frente ao Manchester United, num alerta sério: «É embaraçoso. Somos os campeões em título mas francamente tem sido horrível. É altura de toda a gente se levantar e focar, se não vamos acabar despromovidos.»

Se descer o Leicester junta-se a um grupo restrito, se falarmos dos principais campeonatos do mundo. Sim, porque já aconteceu um campeão descer logo na época seguinte, mesmo nas grandes Ligas europeias. Em campo na Alemanha e Inglaterra, na secretaria em Itália e França. Em Portugal nunca tal aconteceu, tal como em Espanha.

O campeão inglês que acabou despromovido na época seguinte foi o Manchester City. Já lá vão 80 anos desde que os azuis de Manchester conquistaram a então First Division, o primeiro título de campeões da sua história. Com sabor especial, porque nessa temporada de 1936/37 o Manchester United foi despromovido.

Mas durou pouco. Na época seguinte o City acabou no penúltimo lugar e desceu mesmo de divisão. Apesar de, graças a uma série de goleadas na reta final da época, ainda ter terminado com o melhor ataque de todo o campeonato, 80 golos marcados em 42 jornadas.

Demorou muito até os «Citizens» voltarem a celebrar um campeonato, o que só aconteceria em 1968. E muito mais até chegarem os milhões que fizeram o City subir uma série de degraus na hierarquia do futebol, até às duas Premier Leagues ganhas nas épocas mais recente, 2011/12 e 2013/14.

Também aconteceu na Alemanha, onde o campeão despromovido foi o Nuremberga. Uma equipa que chegou ao topo em 1967/68, pouco depois da criação da Bundesliga. A competição nacional do futebol alemão como a conhecemos só surgiu em 1963, até aí passou por vários formatos, com campeonatos regionais de onde saía depois um campeão.

Então, esse Nuremberga conquistou aí o seu primeiro e único título da era Bundesliga. Mas na época seguinte a equipa perdeu muitos dos seus melhores jogadores. E não evitou a despromoção, numa temporada em que o título foi para um tal Bayern de Munique. Era novidade na altura, foi o primeiro campeonato do Bayern, que aliás não fez parte dos clubes que integraram originalmente a Bundesliga: só se estreou na competição em 1965. Quanto ao Nuremberga, passaria nove anos no segundo escalão antes de voltar.

Os outros campeões despromovidos nas grandes Ligas foram-no por causa de casos extra-futebol. O primeiro deles o Milan em 1980. Depois de conquistarem o «Scudetto» em 1979, os «rossoneri» viram-se no meio do escândalo conhecido como «Totonero», o primeiro grande caso de apostas ilegais. Terminaram esse campeonato, ganho pelo Inter, na terceira posição, mas foi castigado com perda de pontos e descida de divisão. Na época seguinte ganhou a Serie B e regressou. A outra consequência famosa desse caso foi a suspensão por três anos do avançado Paolo Rossi, envolvido no «Totonero» enquanto jogador do Perugia. O castigo foi reduzido para dois anos, a tempo de Rossi ser campeão do mundo com a Itália em 1982, como melhor marcador do Mundial.

Aconteceu de novo em Itália. Em 2006 a Juventus foi campeã, mas o seu envolvimento noutro escândalo de manipulação de resultados retirou-lhe o título. Não apenas esse, também o da época anterior, 2004/05, que aliás ficou sem dono até hoje – seria para o Milan, mas os «rossoneri» também foram implicado no «Calciopoli». Em 2006 o título foi atribuído ao Inter. A Juve, além de perder o «scudetto», foi colocada no último lugar do campeonato e despromovida. Também ganhou a Serie B logo na temporada seguinte.

Em França foi o Marselha. O clube que era então de Bernard Tapie chegou ao céu em 1993. Campeão francês, vencedor da Liga dos Campeões. Até que rebentou o escândalo. Em causa um jogo com o Valenciennes, que teve vários jogadores a acusar o marselhês Jean-Jacques Eydelie de lhes oferecer dinheiro para perderem. O Marselha perdeu o título de campeão de França, também nunca atribuído porque o PSG, segundo, não o quis. E não perdeu o título europeu, mas foi impedido pela UEFA de participar na edição seguinte da Liga dos Campeões.

São três campeões despromovidos na secretaria, e do lado de lá do Atlântico há uma história inversa. O Fluminense foi campeão em 2012 mas fez uma época para esquecer no ano seguinte e acabou no 17º lugar, o primeiro de descida. Mas salvou-se na secretaria, à custa da Portuguesa, penalizada com perda de pontos por utilização irregular de um jogador. A mesma sorte não teve outro histórico, o Vasco da Gama.