Um dia destes indignei meia dúzia de espectadores da TVI24 ao afirmar, durante um resumo da Liga dos Campeões, que a maior parte dos adeptos de futebol sabe muito pouco sobre o jogo. Talvez o meu cérebro tenha feito, nesse preciso momento, uma ligação entre os assobios na bancada e o pós-título do livro «The numbers game: why everything you know about football is wrong».

Claro que o pós-título é um exagero destinado a levar à compra ou pelo menos à distinção do livro, entre dezenas de outros títulos de desporto que se publicam, todos os anos, em inglês. Ao longo de quase 400 páginas, Chris Anderson e David Sally tentam explicar-nos de que maneira a análise dos números que resultam de um jogo de futebol está a mudar o próprio jogo. Ou nem por isso, em alguns casos.

(podem saber mais sobre os autores aqui) e ler diversas opiniões sobre «The numbers game», aqui.

O livro é um herdeiro óbvio de «Moneyball» (sobre o personagem principal, aqui, mais o trailler do filme, aqui). Trata, no essencial, da chegada de novos protagonistas ao futebol, na linha do que já sucede em outros desportos (basquetebol e basebol são bons exemplos): os analistas.

Na verdade, eles já andam por cá há algumas décadas. Na segunda passagem de Eriksson pelo Benfica, por exemplo, o sueco integrou na equipa técnica Jorge Castelo. Doutorado em futebol, parte relevante das suas tarefas passava por observar adversários, jogadores a contratar, mas também recolher informação sobre a própria equipa. No fundo, recolher e trabalhar dados objetivos. Informação, aquilo que não se deteta a olho nu. Tendências.

Hoje a tarefa está muito facilitada. Todos os jogos que interessam passam na televisão, é fácil gravá-los, escolher sequências. Muitos estádios possuem já câmaras próprias, ligados a softwares em constante aperfeiçoamento, que permitem aos clubes recolher dados a que apenas eles acedem.

Contam os autores, no livro, que no início as pessoas que faziam este tipo de trabalho nas equipas de futebol estavam em salas pequenas, ao fundo do corredor. Tipos exóticos, sem aspeto de desportista e sem ligação evidente com o jogo. Nem todos os treinadores lhe ofereceram a atenção desejável, algo que o tempo e a qualidade dos dados tem permitido alterar.

Algumas passagens do livro tendem a exagerar a relevância da informação recolhida num desporto como o futebol. Ou talvez eu seja um tipo que ainda exagera a importância do inesperado. Mas
a obra vale (muito) a pena nem que fosse apenas pelas histórias que conta e pelas reflexões que provoca.

Por exemplo os pontapés de canto. Em Inglaterra são festejados como se do início da Primavera se tratasse. No entanto, a análise dos números permitiria arrefecer o entusiamo: a probabilidade de ver um golo nascer de um lance desse género é escassa. Os autores olharam para dez anos de dados nas duas ligas profissionais inglesas e concluíram que apenas um em cinco cantos resulta em remate à baliza. Mais: 89 por cento destes remates resultam em nada. O resto dá golo. Dito em outras palavras, em média, cada equipa da Premier Leage faz um golo de canto de dez em dez jogos. Não há razões para tão grande entusiasmo, mas os adeptos ainda não o perceberam. Se pensarmos no Barcelona de Guardiola, provavelmente não nos lembraremos de um pontapé de canto perigoso. E no entanto foi o que foi.

A análise de grande volume de dados permite extrair tendências. Por exemplo, qual o resultado mais comum no futebol inglês? O livro responde: 1-1, seguido de perto por 1-0, 2-1 e 2-0. Os golos são eventos raros. Cerca de 30 por cento dos jogos termina com um golo ou nenhum.

Um dos aspetos mais interessantes do livro, do meu ponto de vista, tem a ver com a posse de bola e as bolas longas. Os autores começam o capítulo com uma citação de Sepp Herberger, antigo selecionador alemão, para quem a bola era sempre «o jogador mais rápido em campo» e aquele que se encontra «em melhor forma». 

Quanta bola há num jogador?  

Um dia destes Jorge Jesus perguntou aos jornalistas se sabiam quanto tempo um jogador tem, em média, a bola durante uma partida de futebol. Sem análise, a resposta terá de ser algo deste género: pouco. Tratando os dados é possível ser objetivo: 53,4 segundos. Em média, durante 90 minutos um jogador corre com a bola apenas 191 metros. Tudo o resto é ocupação do espaço. Nuno Markl, humorista, costuma dizer que se safa de conversas sobre futebol atirando, por sugestão de Pedro Ribeiro, algo do género « o futebol já foi mais técnico». Se alterar ligeiramente a frase para «O futebol nunca foi tão tático» talvez esteja a dizer quase tudo. Grande parte do que os treinadores procuram num futebolista é capacidade de compreender o jogo. Na verdade, durante 90 minutos é quase tudo o que eles fazem.

Nas últimas semanas temos discutido um bom bocado o FC Porto de Lopetegui, uma equipa de posse de bola, antes de outra coisa qualquer. Um pouco como no tempo de Vítor Pereira. Os autores analisaram três anos de futebol inglês (1140 jogos) e concluíram que quem tem mais a bola de facto marca mais golos e sofre menos. Logo, ganha mais vezes.

Ter a bola é fantástico, mas importante mesmo, confirmaram, é não a perder estupidamente. Aquilo que em inglês se designa por turnover. Os títulos, dizem os autores, não se decidem apenas com vitórias. É preciso também não perder.

O Stoke City foi durante alguns anos a exceção que confirmava a regra de ouro da posse de bola. Talvez por isso os autores de «The Numbers game» não escondam algum fascínio quando tratam o Stoke City de Toni Puils, que desprezava a posse como a conhecemos e fazia das bolas longas e dos lançamentos laterais a principal arma ofensiva.

Os dados eram claros: nenhuma equipa tinha tão pouca posse no meio campo adversário como o Stoke. Menos era mais, para Pulis. O Stoke levava o conceito de posse de bola ao limite. Demorava muito a recolocar a bola em jogo. Eram as partidas com menos tempo útil (de 62,39 minutos na Premier League para 58,52 nas partidas do Stoke). Quando a bola está fora, esse é o tempo em que realmente o jogo está controlado. Tudo o resto é incerto. Por isso a maior parte das jogadas da equipa não envolvia mais do que três toques seguidos de jogadores diferentes. Os lançamentos de Delap para a área, a partir da linha lateral, eram a principal (única?) arma. E foi suficiente. Eles tinham percebido que quanto mais tentassem ter a bola, mais vezes a perderiam, expondo-se aos adversários. Enviá-la para longe era a melhor solução.

O caso do Stoke é muito interessante do ponto de vista de quem junta números. De resto, os autores lembram várias vezes que recolher dados é bom, mas de nada vale se não houver quem dedique o tempo necessário a tratá-los. E se essa informação não for depois completada com experiência e outros olhares sobre o jogo. Alex Ferguson, por exemplo, confessou na autobiografia que uma das decisões de que se arrepende foi ter deixado sair o Jaap Stam. Segundo conta o antigo manager do Manchester United, os números indicavam que o central fazia cada vez menos tackles, época após época. Para os responsáveis do clube, esse dado foi lido como sinal de menor frescura, menos capacidade. Só um tempo mais tarde o antigo manager compreendeu a exata dimensão dos números: mais experiente, Stam melhorara a sua colocação em campo, o que lhe permitia antecipar alguns movimentos dos adversários e por isso não precisar de recorrer tantas vezes aos tackles. O que os números queriam realmente dizer é que estava melhor jogador e não a perder qualidades.

Os tipos dos números chegaram ao futebol para ficar. Não duvide. No livro, os autores sustentam que o papel do treinador conta apenas 15 por cento para o sucesso. É um número baixo, sobretudo quando nos lembramos do que muitos dizem nas conferências, antes e depois dos jogos. O livro não especifica qual a influência destes departamentos de análise, por enquanto compostos por desconhecidos. Não custa arriscar que já é alguma e está a crescer. Quanto a «The numbers game», fica o conselho: leia-o, passará a olhar para o jogo de outra forma.