Cantona foi o último convidado da página The Players Tribune, tendo escrito uma crónica em que revela alguns factos desconhecidos da sua vida, sobretudo relacionados com a família.

O francês começou por recuar a 1939, e à Guerra Civil Espanhola.

«É uma história que moldou tudo o que sou», refere.

«O meu avô materno era de Barcelona ​​e lutou contra o ditador Franco até ao amargo fim dos dias. No final da guerra, era procurado e teve apenas alguns minutos para escapar antes que os soldados nacionalistas entrassem na cidade. Teve que atravessar as montanhas dos Pirinéus a pé para chegar à França e não teve tempo de se despedir. Então, antes de partir, foi ter com a namorada e perguntou-lhe: "Estás pronta para me seguir?" Ele tinha 28 anos. Ela tinha 18. Ela teve que deixar para trás família, amigos, tudo. Mas disse: "Sim, claro". Esta foi minha avó.»

Os dois fugiram para o campo de refugiados em Argelès-sur-Mer, na costa francesa. Onde viviam cerca cem mil refugiados espanhóis, que tinham sido aceites pelo governo de França.

«Os meus avós chegaram sem nada. Tiveram que começar a vida de novo. Após algum tempo os refugiados tiveram a oportunidade de ir trabalhar na construção, numa uma represa em Saint-Étienne Cantalès. Esta é a vida dos imigrantes. Vai-se onde tem se que ir. Faz-se o que se tem que fazer. Então eles foram. Fizeram uma vida por si mesmos. A minha mãe nasceu lá alguns anos depois e, em seguida, a família acabou por se mudar para Marselha.»

Cantona acrescenta que esta história lhe está no sangue e no que ele é enquanto ser humano. Mas dela só tinha memórias. Não havia uma fotografia, uma imagem, nada que pudesse tocar. Até que a Mala Mexicana, de Robert Capa, foi encontrada numa casa na Cidade do México, e dentro dessa mala havia 4500 negativos de fotografias da Guerra Civil Espanhola.

«Fiquei muito curioso, por isso quando fizeram uma exposição das fotos em Nova Iorque fui visitá-la com minha esposa. A maioria das fotos eram apenas pequenos negativos. Mas algumas das fotos no centro da exposição eram enormes. Quase três metros de altura. As pessoas nas fotos eram em tamanho real. Parecia que você poderia alcançá-los e tocá-los. Foi aí que vi meu avô.»

Cantona viu a fotografia e não teve a certeza que era o avô. Afinal de contas era uma imagem dele em novo e o antigo jogador só o conheceu muito mais velho.

«Quando a exposição se mudou para a França, alguns meses depois, levei minha mãe para ver. Perguntei: "É realmente ele?" E minha mãe disse: "Sim, é ele. É no momento em que estava a fugir para as montanhas.” Foi incrível. Imaginem se o meu avô não tivesse fugido. Imaginem se minha avó não tivesse ido com ele. Talvez a minha mãe não existisse. Talvez eu não existisse.»

No entanto há outra fotografia que Cantona diz ter-lhe moldado o carácter.

«Os meus bisavós paternos também eram imigrantes. Vieram da Sardenha para França para fugir à pobreza em 1911. Três anos depois o meu bisavô foi chamado a servir na I Guerra Mundial, e foi atacado com gás tão severamente que passou os últimos anos da vida a fumar eucalipto para respirar melhor. O filho dele, meu avô, lutou pela França na II Guerra Mundial. Quando voltou da guerra, economizou dinheiro para comprar o seu próprio pedaço de terra num bairro num morro de Marselha, quando o meu pai ainda era adolescente», contou.

«A terra tinha uma pequena caverna. Como precisavam de um lugar para morar enquanto o meu avô construía a casa, moraram naquela caverna durante dois anos. A única coisa que eles tiveram para aquecer a caverna foi um fogão de cozinha. Parece um mito que a família conta sobre os velhos tempos, mas na verdade há uma fotografia, do inverno de 1956, dos meus avós e do meu pai na caverna, cobertos com cobertores para se aquecerem.»

O avô demorou anos a construir a casa. Primeiro fez um quarto. Depois fez um terraço. E por cima do terraço construiu enfim uma casa, que os pais dele herdaram mais tarde.

«Foi nesta casa que eu cresci. Foi isto que herdei. Este é meu sangue. Uma das minhas primeiras memórias é levar 10 sacos de areia até a casa que eles estavam ainda a construir. Só depois disso fui autorizado a jogar futebol. Esta é minha família. Esta é minha história. Esta é minha alma.»

Cantona diz que não gosta de contar esta história e que só o faz publicamente por uma razão: porque o futebol dá sentido à vida, mas a vida também dá sentido ao futebol.

«Estamos a viver tempos de pobreza generalizada, guerra e imigração. Há mais pessoas no mundo que não podem comprar uma bola de futebol do que pessoas que podem pagar 200 euros para assistir a um jogo da Premier League ou 400 euros por ano para assistir ao futebol na TV. Os bairros pobres precisam tanto do futebol quanto o futebol precisa dos bairros pobres. Precisamos apoiar um futebol mais sustentável, positivo e inclusivo.»

Por isso Cantona revela que se tornou mentor do movimento Common Goal: um projeto que procura que 1 por cento do dinheiro no futebol mundial reverta para instituições de caridade.

«Mais de 60 jogadores de futebol já prometeram doar 1 por cento dos seus salários. O mais bonito é que são jogadores de grandes clubes e de pequenos clubes, são homens e mulheres, de ligas de todo o mundo. O futebol deve ser para o povo. Isso não precisa ser uma ideia utópica.»