Racheal Kundananji começou por jogar futebol às escondidas da família. Agora, é aos 23 anos a protagonista da maior transferência de sempre no futebol feminino. O percurso da avançada que trocou a Liga espanhola pela NWSL é uma boa metáfora da velocidade a que tem crescido o futebol jogado por mulheres. Em campo mas também fora dele, a ganhar dimensão e agora embalado por um mercado de transferências a crescer em modo acelerado, de recorde em recorde.

Em janeiro, as transferências internacionais de jogadoras pulverizaram o anterior máximo de investimento, um aumento de 150 por cento do valor gasto em relação ao ano anterior. Foram 1.96 milhões de euros, segundo os dados revelados pela FIFA. Nesse período, o Chelsea contratou a colombiana Mayra Ramirez ao Levante por um valor estimado de 450 mil euros, então fixado como novo recorde. Durou menos de três semanas, batido agora pela transferência de Racheal Kundananji do Madrid CFF para os norte-americanos do Bay FC, por um valor estimado a rondar os 800 mil euros, quase o dobro.

«A tendência é haver cada vez mais transferências pagas e os recordes serem batidos. Numa só janela de mercado foi quebrado duas vezes o recorde e eu acredito que no verão muito provavelmente vai voltar a ser quebrado.» A opinião é de Raquel Sampaio, antiga jogadora e dirigente e atualmente agente de jogadoras, que constata em conversa com o Maisfutebol a tendência óbvia. E também necessária, defende: «Mal seria se não houvesse evolução.»

Kundananji, a recordista que jogava futebol em segredo

Para já, a protagonista deste momento histórico é Kundananji, a avançada que esteve no Campeonato do Mundo do ano passado com a camisola da Zâmbia, o país onde nasceu. E onde cresceu a jogar futebol com rapazes, a chutar bolas improvisadas a partir de plástico e algodão de sacos de farinha, enquanto a mãe trabalhava numa mina de cobre.

Meninas a jogar à bola não era muito bem visto, contou Racheal à BBC. «Em criança, não contei à minha família que jogava futebol. Eles pensavam que estava em casa de uma amiga», diz. Os pais acabaram por saber e, com o tempo, perceberam que não era apenas um passatempo.

Começou a jogar no Indeni Roses, onde revelou desde logo a capacidade goleadora que a distingue, com 21 golos em 18 jogos. Tinha 18 anos quando deixou a para jogar no Cazaquistão, onde representou durante três épocas o BIIK Kazygurt.

Em paralelo iniciou um percurso na seleção que a levou aos Jogos Olímpicos de Tóquio, no verão em que rumaria a Espanha, para jogar no Eibar. Na primeira época na Liga espanhola marcou oito golos em 21 jogos, antes de assinar pelo Madrid CFF.

Nem tudo foram rosas. Em 2022, viu-se envolvida numa decisão polémica da Federação da Zâmbia, que a impediu de participar na CAN, alegando que não passou nos «critérios de género». Não foi a única e o caso mais mediático envolveu aliás a capitã da Zâmbia, Barbra Banda. Chegou a ser-lhes proposto submeterem-se a tratamento hormonal para regularem os níveis de testosterona, o que elas recusaram. O caso alimentou a discussão sobre os testes de género, com a FIFA a admitir rever critérios e a liberar a presença das jogadoras no Mundial. Ao lado de Banda, Kundananji apontou o golo que selou a vitória sobre a Costa Rica na despedida da fase de grupos, a primeira de sempre da Zâmbia em Mundiais.

Com a camisola do Madrid CFF, marcou 25 golos em 29 jogos na Liga. Na corrente época, levava oito golos em quinze jogos, antes de receber o convite milionário do Bay FC.

O «all in» do Bay FC, com donos que têm uma ponte para… o FC Porto

Chega a um clube novo, que vai estrear-se nesta temporada na Liga norte-americana. E que está a investir de forma massiva. Antes dela, o Bay FC já tinha contratado a nigeriana Asisat Oshoala ao Barcelona, a venezuelana Deyna Castellanos ao Manchester City ou a escocesa Jen Beattie ao Arsenal. «Contrataram grandes nomes, estão a fazer um all in, a entrar para ganhar. Pode correr muito bem ou muito mal, porque isso nem sempre é suficiente», constata Raquel Sampaio.

Fundado pelas antigas internacionais norte-americanas Brandi Chastain, Leslie Osborne, Danielle Slaton e Aly Wagner, o Bay FC tem como principal investidor o fundo de investimento Sixth Street, que tem várias ligações a clubes também na Europa, do Barcelona ao Real Madrid, e que também está por detrás do contrato de exploração comercial do Estádio do Dragão anunciado pelo FC Porto.

O investimento do Bay FC é só parte de uma abordagem forte da Liga norte-americana. Que pode ser lido no quadro da perda da hegemonia da sua seleção, depois do evidente fim de ciclo que foi o último Mundial, onde as bicampeãs em título caíram nos oitavos de final.

A Liga americana a reagir à perda e a inflacionar o mercado

«Não perderam tempo. Logo que esta caminhada no Mundial não lhes correu bem, perceberam que têm a parte física, mas tecnicamente estão a perder muito na sua seleção. E portanto, como têm dinheiro, vêm buscar as melhores. E as melhores são por exemplo as jogadoras da Liga espanhola, porque é onde existe a técnica que falta ao mercado americano», nota Raquel Sampaio: «Estão a investir muito em jogadoras da Liga espanhola e também em treinadores espanhóis.»

Será a Liga norte-americana, junto com a Liga inglesa, a acelerar uma evolução crescente no investimento no mercado de transferências, acredita Raquel Sampaio. «Têm muito mais dinheiro. São os dois principais mercados onde realmente se compram jogadoras. O que é normal, porque são se calhar os dois mercados onde existe maior retorno financeiro. Há mais transferências, há mais patrocínios, há mais tudo», afirma a empresária, acreditando que essa dinâmica entre os principais campeonatos vai levar a que os valores das transferências cresçam rapidamente: «É uma bola de neve, não há volta a dar. Acho muito difícil que isso se possa passar no mercado português ou talvez até num mercado que é mais evoluído do que o nosso como o espanhol, mas acredito que tanto o mercado inglês como o americano vão continuar a puxar para cima estes valores.»

A maioria dos outros países, incluindo Portugal, ainda está muito longe desta realidade. A regra continua a ser que as transferências não envolvam o pagamento de verbas entre clubes. Segundo os dados da FIFA, das 357 transferências de janeiro no futebol feminino, apenas 42 tiveram um valor envolvido. Mas as coisas também estão a mudar na relação entre as jogadoras e os clubes, diz Raquel Sampaio.

«No ano passado, por exemplo, o Sporting comprou a Maiara ao Inter do Brasil. A tendência também é se calhar os clubes começarem a despender dinheiro, porque as jogadoras também começam a fazer contratos cada vez mais longos e portanto os clubes já não esperam para que elas estejam livres», observa: «As jogadoras também já se sentem mais confortáveis a fazer contratos de longa duração, porque já sabem que os clubes estão a começar a investir em transferências. É uma win win situation, que também acaba por atrair mais a jogadora em caso de haver alguma lesão, algum percalço. Ter um contrato mais longo dá mais estabilidade.»

No entanto, com o mercado a mudar tanto em tão pouco tempo, Raquel Sampaio diz que também aconselha prudência às jogadoras: «Como agente, como isto está a evoluir tão rápido, eu aconselho sempre as jogadoras a não fazerem ainda contratos muito longos. Negociar hoje um contrato a cinco anos é completamente diferente do que será daqui a dois anos. Porque os valores estão a disparar muito rápido.»

Portugal «cada vez mais exportador, como nos homens»

Para Portugal, um mercado mais dinâmico vai trazer necessariamente mudanças. Raquel Sampaio acredita que o futebol feminino português será tendencialmente sobretudo exportador, como acontece com o masculino: «Temos o caso de um grande talento que é a Olivia Smith, que acabou de vir neste verão para o Sporting, e que com certeza com o que está a fazer está a captar a atenção dos grandes clubes. Isto poderá querer dizer acima de tudo que vamos ser cada vez mais um país exportador, tal como já somos nos homens, a gerar receitas a nível de vendas.»

Dificilmente, por outro lado, os clubes portugueses podem compensar eventuais saídas de peso, continua Raquel Sampaio, dando outro exemplo, o da também canadiana Cloé Lacasse, que no verão passado trocou o Benfica pelo Arsenal: «Ainda não existe muita qualidade em quantidade, portanto é muito difícil, imaginemos, saindo uma Olivia Smith, ou outra jogadora, como saiu a Cloe Lacasse, colmatar estas saídas. Uma coisa é as verbas serem altas e os clubes terem poder para ir comprar outras jogadoras da mesma qualidade. Agora, não sendo verbas muito altas é difícil depois ir buscar uma jogadora que renda logo.»

«Acima de tudo acho que provavelmente vamos ter de nos readaptar, continuar a fazer o bom trabalho que estamos a fazer a nível de scouting, trazendo jogadoras novas com qualidade», conclui Raquel Sampaio: «E depois sermos um país exportador de talento e com isso gerar receitas para os clubes e começar a tornar a modalidade mais sustentável, que neste momento ainda não é. Entre receitas e investimento ainda existe uma discrepância grande. E eu acredito que com isto vamos talvez começar a tornar a modalidade mais sustentável.»