A vida de Richarlison tem acontecido a correr. Na última madrugada, por exemplo, ao segundo jogo pela seleção brasileira, estreou-se a marcar: e logo com um bis.

Antes disso já tinha subido a profissional do América Mineiro 15 jogos depois de chegar e já tinha garantido a transferência para o Fluminense 29 jogos depois de estrear-se pela equipa principal.

Em quatro anos, portanto, passou dos juniores do América para o Everton, numa escalada feita passo a passado: equipa principal do América, Fluminense, Watford e por fim um dos grandes de Inglaterra. O último degrau, portanto, foi a estreia pela seleção brasileira aos 21 anos.

Ora por isso quem olha de fora não imagina as dificuldades que Richarlison passou até aqui chegar.

Nascido em Nova Venécia, no interior de Espírito Santo, em 1997, viajou com a família para Todos os Santos, na zona rural de Vila Pavão. Foi aí que deu os primeiros pontapés na bola.

«Morávamos na roça onde eu trabalhava. Eu jogava na equipa de Vila Pavão e o clube tinha uma equipa de crianças, que eu mesmo o treinava. Eu treinava-o», contou o pai Antônio Carlos.

Mais tarde, já jovem, os pais separaram-se. O pai ficou e ele regressou com a mãe e o irmão a Nova Venécia, onde se cruzou com o crime e ficou muito perto de deitar a vida a perder. Felizmente para ele, conseguiu manter-se sempre do lado certo.

Richarlison vivia com a família num bairro pobre, onde grande parte dos moradores era traficante ou criminoso. Muitos amigos dele de infância já consumiam e traficavam drogas, aliás.

«Lembro-me que uma vez um homem apontou-me uma arma à cabeça porque pensava que eu era um traficante e estava a tentar roubar-lhe o ponto de distribuição. Esta era minha vida», contou.

«Eram coisas naturais na minha vida, por isso não ficava nem um bocadinho assustado. Era uma zona muito difícil. Via drogas à minha frente todos os dias, ouvia tiros, enfim. Tinha tudo para me tornar um traficante, mas os meus treinadores eram da polícia. Como eles sabiam da onde eu era, aconselhavam-me constantemente para me afastar dos maus caminhos.»

Nesta altura Richarlison já jogava no Gazetinha, uma escolinha de futebol local. Chegou a fazer testes no Avaí e no Figueirense, mas foi reprovado.

«O Figueirense disse-me que não me queria no meu dia de anos», recorda.

Insistiu, insistiu e conseguiu convencer o Real Noroeste, onde foi integrado com 17 anos na equipa sub-20, até ser visto por um olheiro do América Mineiro.

Mas foram tempo difíceis. A mãe, por exemplo, ganhava 52 euros a cada quinze dias e era com esse dinheiro que a família tinha que viver. Por isso nos últimos dias antes do pagamento, quando já não havia mais moedas em casa, Richarlison mudava-se para casa dos tios para ter o que comer.

«Nessa altura eu lavava carros, vendia gelados de água e bolos caseiros, para fazer dinheiro para ajudar a família. Eu tinha tudo para entrar no caminho das drogas. Lembro-me que andava na rua e chamavam-me de vagabundo e bandido. Graças a Deus não me tornei bandido», contou.

«Tínhamos casa pequenas, mas havia um quintal no fundo onde as pessoas costumavam esconder as drogas antes de vendê-las. Eles eram meus amigos, então não podia fazer nada contra eles. A maioria deles estava envolvida em vender haxixe e outras coisas, mas eu nunca toquei naquilo. Ofereceram-me várias vezes para fumar, mas felizmente consegui resistir sempre.»

O futebol era tudo o que queria na altura. Um dia um vizinho cortou a relva e deixou-a na estrada, ele e o irmão foram buscá-la e espalharam-na num terreno para simular um relvado.

Por isso quando assinou pelo Real Noroeste, era com prazer que todos os dias fazia nove quilómetros para ir treinar, estivesse a chover ou a fazer sol. O empenho trouxe frutos e conseguiu um período de testes na equipa sub-20 do América, de Minas Gerais.

«O clube deu-me dinheiro para comprar bilhete de ia e de regresso, mas estava com fome, gastei o dinheiro do bilhete de regresso em comida e fui só com bilhete de ida. Tinha de ter sucesso.»

Saiu de casa, de estado e foi atrás do sonho.15 jogos na equipa sub-20 bastaram para convencer o treinador da equipa principal, mas pouco depios contraiu uma lesão grave e parou três meses.

«Acordava todos os dias às 5 da manhã e trabalhava na recuperação até à noite, só regressava a casa às 20 horas. Esse tempo fez-me voltar mais forte aos treinos.»

Ainda foi a tempo de fazer nove golos e quatro assistências em 24 jogos, ajudando o América a subir à Série A e convencendo o Fluminense a avançar para a contratação. Em 77 jogos fez 20 golos no clube paulista, 15 dos quais na segunda época: a temporada da explosão.

Em janeiro de 2017 foi chamado a jogar o Sul-Americano sub-20, no Equador, pelo Brasil, e ficou na retina de vários olheiros. O Ajax foi o primeiro a avançar para a contratação.

«O Watford surgiu de lado nenhum. Tinha tudo certo com o Ajax quando recebi um telefonema de Marco Silva. Ele acabou por mudar as minhas ideias, porque jogar na Liga Inglesa sempre foi um sonho. Por isso nem pensei duas vezes», contou à Fourfourtwo.

O início não foi fácil, porém. O brasileiro chegou a Inglaterra sem falar uma palavra de inglês, sem carta de condução e sem os necessários arroz e feijão preto por perto.

«No início não gostava da comida e perdi cinco quilos. Estava hospedado num hotel e só comia hamburgers, que era o mais parecido que havia com os pratos brasileiros. Mas depois arranjei uma casa, o meu empresário e a mulher vieram viver comigo e comecei a comer mais arroz e feijão.»

Aos poucos Richarlison foi readquirindo a boa forma e nada o distraía do sucesso no futebol.

«Um dia o Neymar veio jogar a Londres com a seleção brasileira e no final do jogo telefonou-me a perguntar se queria ir com e com uns amigos a uma festa. O Neymar é o meu ídolo, quando era mais novo imitava-o em tudo, até no corte de cabeço. Por isso aquele convite era uma grande oportunidade. Mas no dia seguinte tinha treino, por isso fiquei em casa a descansar. Os treinos em Inglaterra são muito exigentes e preciso de estar bem fisicamente para treinar.»

A boa impressão causada em Watford levou-o para o Everton, a troco de cerca de 50 milhões de euros. Mais uma vez Marco Silva atravessou-se no caminho do brasileiro para ser fundamental.

«O Marco Silva ajudou-me muito. É um treinador muito organizado, que exige muito dos jogadores. Está sempre no campo de treinos a mostrar-nos como devemos fazer e a dizer-nos que podemos vencer qualquer equipa», conta.

«É um grande treinador. Quando preciso de alguma explicação, vou ao escritório dele, falamos e isso ajuda-me em campo. Sempre joguei bem com Marco Silva e pretendo continuar a fazê-lo.»

Para já Richarlison fez três golos em três jogos pelo Everton e abriu as portas da seleção brasileira. Parece lançado, portanto: e pensar que um dia passou tão perto do mundo crime...

Veja como foi a estreia a marcar de Richarlison frente a El Salvador: