Gabriel Pinto, natural de Brotas, pequena mas fantástica aldeia alentejana do concelho de Mora. Tem 25 anos e há seis que decidiu treinar. Não, tenha calma. Não faltam palavras na frase anterior: há seis anos que decidiu ir para o banco, tinha apenas 19. Surpreendente. E há dois meses apenas decidiu emigrar, respondendo ao chamamento de um clube indiano, o Sporting Goa, para formar jovens futebolistas. Duas vezes surpreendente.

«Por um lado, tenho consciência de que foi um mergulho de cabeça e talvez dado um pouco cedo. Por outro, tinha a ambição de atingir o profissionalismo e percebi que, pelo menos em Portugal, isso não seria uma realidade num futuro próximo, por diversos motivos. Gostaria de ter continuado por Portugal, precisamente para continuar o meu crescimento porque é um país riquíssimo em qualidade por parte dos treinadores, mas também senti que as oportunidades não seriam as melhores para continuar o meu crescimento e arrisquei.»

Licenciado em Psicologia do Desporto pela Escola Superior de Desporto de Rio Maior e pós-graduado em Desporto com especialização em treino desportivo de Futebol, falta a Gabriel apenas a elaboração da tese para a obtenção do grau de mestre, pela mesma faculdade. Começou como treinador no Luso Morense aos 19 anos, no escalão de sub-10, clube que na altura representava como jogador. Com 21, foi convidado por João Prates a integrar a equipa técnica do União de Montemor, equipa que na altura disputava a série F da III Divisão.

«Ainda hoje acredito que a maior formação e aprendizagem que tive como treinador, foi cair naquele balneário composto por jogador com muitos anos de experiência, em tão tenra idade», lembra Gabriel.


Época 2014/15 no União Montemor: terceiro na segunda fila, a contar da direita

Adeus futebol-jogado, olá futebol-treinado

O que se passa na cabeça de um jovem para pendurar as chuteiras e orientar colegas a partir do banco? O técnico tem a palavra: «Joguei a nível amador, na 1ª divisão distrital de Évora, mas desde cedo comecei a ter paixão pelo treino. Quando tinha 16 ou 17, costumava treinar com a equipa sénior da minha aldeia, embora não pudesse jogar. E os treinos eram sempre iguais: uma longa corrida de aquecimento, uma peladinha e uns remates à baliza no final. A determinada altura, o João Prates, que tinha sido jogador do clube em épocas anteriores, passou a treinador. Ele já frequentava os cursos mais recentes e apresentou uma metodologia completamente diferente, com a bola sempre presente e, psicologicamente, muito estimulantes. Na altura, foi uma lufada de ar fresco e mudou completamente a minha visão sobre o jogo e, sobretudo, sobre o treino.»

Quando Prates saiu, Gabriel Pinto foi convidado a continuar como responsável pelos escalões jovens e como coordenador técnico do União Montemor. Passaram-se três anos, dois anos em escalões jovens e, no ano passado, como adjunto na equipa principal, que disputou o Campeonato Nacional de Seniores e que terminou com «o momento mais negro da carreira» de Gabriel, como o próprio reconhece. A descida de divisão.

Paralelamente, manteve a ligação ao departamento de prospeção e recrutamento de jovens talentos de um dos grandes de Portugal, cujo nome prefere não revelar. «Durante junho recebi uma abordagem por parte do Sporting Clube de Goa, através do seu CEO, Victor Fernandes [ndr: indiano, quase todos os habitantes da cidade têm nomes portugueses, existe ainda hoje uma forte influência lusa], para ser o treinador da equipa sub-18. O acordo ficou fechado no mês seguinte. Ao chegar à Índia, percebi que o interesse não era apenas esse. O clube pretendia, e pretende, a reorganização de toda a estrutura do futebol jovem e a implementação de uma abordagem metodológica diferente ao nível do processo de treino, inclusive na equipa principal, mais contextualizada com aquilo que é o Jogo e não tão focada na individualização dos fatores de rendimento, como ainda é prática comum na generalidade dos treinadores que trabalham na Índia.»


Igreja de Nossa Senhora da Imaculada Conceição. À semelhança de muitas outras na região, foi herança arquitetónica deixada pelos portugueses

A Índia. Porquê a Índia? Essa é outra das perguntas que se impõem. O que faz um rapaz de 25 anos mudar-se para o outro lado do mundo? «Foi o país que me deu a oportunidade de atingir a minha primeira meta: o profissionalismo. Sonhava ser profissional e esta oportunidade permitiu-me alcançar esse objetivo com apenas 25 anos, o que nunca pensei possível. Obviamente que o sonho passava principalmente pelo futebol português, mas tenho a consciência das dificuldades atuais que existem e sei que dei um grande passo ao vir para a Índia. Também sei que vou voltar ao meu país, mais tarde ou mais cedo.»

Mas, para poder partir, foi preciso que alguém o descobrisse no meio do Alentejo. Como chegou o Sporting Goa a Gabriel, a tantos quilómetros de distância e sem o mediatismo de um clube de primeira linha? «Disseram-me que o presidente tem conhecimentos em Portugal, assim como o manager, filho de portugueses. Ainda hoje não sei como o meu nome chegou até eles, assim como o meu currículo, um dos primeiros que elaborei e que até tinha informações desatualizadas…»

Além de treinar os sub-18, o jovem técnico tem um trabalho ainda mais duro: «O clube tem como responsável máximo de toda a formação um ex-internacional indiano [ndr: Mahesh Lotlikar], que jogou pelo clube nos anos 90. É ele o responsável máximo, na prática o que me foi pedido foi reestruturar todo o processo de formação. Sou eu quem está a «desenhar», neste momento, esse mesmo processo e a iniciar a aplicação de um plano de desenvolvimento do futebol juvenil, que introduz os escalões de futebol de base, dos seis aos 12 anos, que não existiam aqui. Não me importo de ser eu a delinear o plano formativo do clube, mas quero ser visto apenas como treinador, porque é o que realmente gosto de fazer. Sinto, contudo, que posso dar um contributo diferente nesse aspecto, uma vez que também é objetivo do clube ter uma estrutura formativa semelhante à aplicado na Europa.»

A adaptação a um país picante

«Quando cheguei à India, aterrei em Mumbai e, como é normal, as autoridades encarregam-se de fazer a verificação e o controlo das entradas. O responsável veio ter comigo e encontrou diversos problemas. Teoricamente, teria de levar comigo uma declaração onde indicasse onde iria ser a minha residência e eu tinha apenas o contrato de trabalho e o pedido de visto. Também não era fácil explicar-lhe alguma coisa, porque o seu inglês era péssimo. Passado algum tempo e depois de ter repetido diversas vezes palavras como Portugal, treinador e futebol, o policia lá começou a entender e a dizer Cristiano Ronaldo, Cristiano Ronaldo. Nessa altura pude sorrir, confirmei que toda aquela conversa estava a ir no caminho certo. A partir daí, tudo foi mais fácil e em cinco minutos estava livre para seguir caminho.»

Obviamente que o isolamento, a nível pessoal, é algo com que Gabriel tem de conviver diariamente a tantos quilómetros de casa, mas não só. «Para além de estar sozinho aqui, o clima e a alimentação são complicados. Os valores relativos à humidade situam-se sempre perto dos 90 por cento. E, na comida, tudo tem demasiado picante. Mesmo os alimentos que se vendem nos supermercados têm algum, o que limita a alimentação e torna-a num desafio diário. Quando cheguei, o CEO fazia questão de me vir buscar a casa às horas das refeições. Na primeira vez, tudo aquilo que aos meus olhos parecia ter bom aspeto, era inevitavelmente picante. Pensei que a partir daí não iria ser enganado e comecei a utilizar regularmente a expressão non spicy ou without anything spicy, e de facto vinha menos picante, mas continuava a ser picante porque todo e qualquer alimento tem um toque de alguma coisa spicy. Tive mesmo de deixar de comer em locais de comida indiana e passar a frequentar apenas restaurantes única e exclusivamente de comida ocidental. Felizmente, existe um restaurante italiano ao virar da esquina!»


O futebol de rua em Goa

A estranheza por Sunil Chhetri

Gabriel já foi confrontado com perguntas sobre Chhetri, que chegou ao Sporting há três épocas, e na altura era considerado o melhor jogador indiano. Não vingou. Somou 43 minutos em três jogos pela equipa B dos leões, algo que no país de onde é natural não foi bem entendido. O avançado é ainda uma das estrelas do futebol indiano, e joga no Mumbai City, da Superliga. «Perguntam-me como foi o período dele em Portugal e o que aconteceu para nunca se ter conseguido impor no clube e no campeonato, mesmo tendo estado integrado na equipa B.»

Uma potencialidade enorme no meio da desorganização

Para os portugueses, a Índia surgiu como destino recente de alguns jogadores, sobretudo em final de carreira. Simão Sabrosa, Miguel Garcia, Silas e Hélder Postiga são talvez os mais sonantes do contingente luso, mas outros têm incendiado o interesse por parte dos indianos, que costumam esgotar os lugares nas bancadas da Superliga, agora na segunda edição: os brasileiros Elano, Lúcio e Roberto Carlos (sim, aos 42 anos), o cabo-verdiano Valdo, o norueguês Riise, o costa-marfinense Zokora, o romeno Mutu, o tunisino Benachour, antigo jogador do Vitória Guimarães, o espanhol Marchena, que representou o Benfica, e o francês Anelka. Bons indicadores para o crescimento da modalidade, que apenas ocupa o segundo lugar no ranking de popularidade.

«O número de praticantes e a perspetiva de evolução da modalidade são os aspetos positivos do futebol indiano. Segundo a All India Football Federation, estima-se que existam neste momento perto de 20 milhões de praticantes. A modalidade é a segunda mais popular, atrás do cricket. No entanto, as estimativas apontam para que o futebol chegue ao topo da popularidade antes de 2022, também segundo a AIFF», justifica Gabriel, que coloca um grande obstáculo no caminho do progresso rápido: «A desorganização existe em praticamente tudo e influencia o desenvolvimento do futebol. No que diz respeito ao jovem, a competição é marcada fortemente pelo calendário escolar, muito extenso e exaustivo, com vários períodos de exames. Isso limita o calendário competitivo a dois, três meses de prática. Na Índia, ser jogador de futebol não é visto como uma profissão de futuro, que dê estabilidade a longo prazo. Os pais não autorizam os filhos a colocar os estudos em segundo plano por mais talento que o jogador tenha, e isso é obviamente um entrave no desenvolvimento da modalidade.»

No entanto, as dificuldades não terminam aqui. «Não existe um planeamento anual, o que faz com que tudo seja feito com pouco tempo de preparação. Recordo, por exemplo, que chegaram a ligar-me às 23 horas, a dizer que iríamos ter uma captação às 8 da manhã do dia seguinte, com um volume aproximado de 100 atletas, sem qualquer tipo de organização prévia. A princípio, pensei que estavam a brincar comigo, só depois percebi que, para além de ser verdade, era prática comum. E não é apenas uma questão clubística, a própria organização federativa e associativa funciona de forma semelhante. Por exemplo, foi indicado ao clube que o campeonato nacional sub-16 começaria em meados de outubro, mas uma semana antes do início do mês a própria federação não sabia quando começava ou sequer se iria mesmo existir devido a compromissos de seleções jovens…»

Uma situação inconcebível na Europa é a de selecionar jogadores para equipas nacionais através de testes, e não com o conhecimento do que os mesmos valem enquadrados nas respetivas equipas. «São realizadas captações abertas para algumas das seleções jovens, o que para nós é algo bastante estranho, mas é a consequência de um sistema desportivo muito pouco organizado. São o tipo de questões que a nós não nos passa sequer pela cabeça, mas que aqui são uma realidade a que nos temos de adaptar.»


Gabriel Pinto em ação

A Liga e a Superliga, o Sporting Goa e o FC Goa

«O Sporting Goa está na primeira liga, a I-League, embora agora exista esta nova Superliga, criada sobretudo para a promoção da modalidade e que tem os homens mais ricos do país a investir forte, mas é mais uma estratégia de marketing porque o campeonato não é oficial. É uma liga diferente, que tem muitas antigas estrelas, tudo jogadores já em fase final de carreira... O campeonato dura três meses (outubro a dezembro), há praticamente jogos todos os dias durante esse período. Há um campeão, claro, mas é apenas o título. Da liga onde está o Sporting Goa sai o campeão e a equipa que vai disputar a Liga dos Campeões Asiática, é a liga oficial regulada pela federação. Tem havido diversas reuniões entre os clubes de ambas as ligas para se tentar formar apenas uma liga, mas pelo que sei não tem existido consenso entre as partes. Os nossos responsáveis pretendem que a equipa lute pelo título de campeão, embora, na minha opinião, ainda talvez seja um pouco cedo. Na época passada, andou a lutar pela manutenção, por isso o objetivo do título ainda é um pouco irrealista. Aqui não existem os crónicos candidatos. No início da época não conseguimos identificar quais serão os candidatos ao título e quais os primeiros clubes candidatos à despromoção. Vive-se muito de momentos e períodos.»

E como são as condições de trabalho na Índia? «O clube tem dois campos relvados. Chamam-lhes «academia», mas estão situados dentro de um recinto escolar. Existe depois o «escritório», onde estão os responsáveis administrativos e onde existe um local para reuniões técnicas e meetings. No fundo, é onde os treinadores podem reunir e fazer todo o trabalho de planeamento e reflexão. Os jogos são num estádio em Margao [ndr: distrito de Goa], o Fatorda Stadium. É um estádio do Município, não do clube. O Sporting Goa vive à conta do estatuto social e financeiro do presidente, que é dono de uma das maiores empresas de construção em Goa.»

No clube encontrou Miguel Garcia, capitão de equipa e que agora aceitou jogar na Superliga, no NorthEast United, por quatro meses, enquanto o nosso campeonato está parado. Deverá voltar no final da mesma. «A nossa liga é curta, só tem duração de cinco meses, de janeiro a maio. A época oficial começa em agosto, porque nessa altura disputa-se algo semelhante aos campeonatos estaduais, só com equipas da região. Há várias ligas a decorrer: a de Goa, a de Calcutá, e por aí fora. Os melhores jogadores dos clubes da liga oficial aceitam jogar os quatro meses na Superliga porque recebem muito dinheiro.»

Os clubes, tanto os da Superliga com os da I-League não têm infraestruturas próprias. Jogam e treinam em locais públicos, que pertencem aos municípios. «As novas equipas têm uma dimensão muito superior às das equipas da liga oficial, por causa dos grandes craques que vêm para cá. Mesmo que o ritmo de jogo seja obviamente baixo porque a média de idades é alta. Nas ruas, só se veem camisolas das equipas da Superliga, aqui principalmente do FC Goa. A primeira edição foi muito positiva, pelo que me contam. A procura aos bilhetes foi muita, os estádios estavam praticamente cheios e o campeonato ficou resolvido mesmo nos últimos jogos.»



A marca de Postiga

A segunda edição arrancou precisamente no passado fim-de-semana, com forte marca portuguesa no triunfo do Atletico de Kolkata. «Ao contrário do que seria expectável, principalmente devido à idade dos jogadores-referência de cada clube, é possível verificar que existe uma boa dinâmica e o ritmo de jogo não é tão baixo como se poderia prever. Disputada apenas uma jornada não é possível dizer quais são os favoritos, todos os jogos foram bastantes equilibrados até ao momento. Todas as equipas têm como objectivo a luta pelo título, o que não é algo a que estejamos habituados a ver. Até ao momento, a grande referência foi mesmo Postiga, a bisar no primeiro jogo. Acho que esta competição ainda é curta para o Hélder porque acredito que ainda tem valor e capacidade para estar num campeonato europeu e a prova disso mesmo foi este jogo, onde fez claramente diferença. Acredito que continuará a fazê-lo, isto claro se as lesões não forem impeditivas, como também sucedeu no primeiro jogo», conclui Gabriel Pinto.