Imagine, por exemplo, que o Benfica ia mudar-se para Bragança. O Sporting para a Madeira ou o FC Porto para o Algarve.

Na América isto é tão exequível quanto comum. Os San Diego Chargers são a última equipa profissional a sair de uma cidade para ir jogar noutra, quase a 200 quilómetros de distância, e os Oakland Raiders ponderam fazer o mesmo: o plano é ir para Las Vegas.

No futebol europeu também já sucedeu, como lhe daremos conta.

Mas quais as razões para isso suceder? E o que acontece depois?

O fenómeno americano tem anos e anos de existência, e por base o sistema das ligas profissionais de lá: seja a NBA, NFL, MLB ou a MLS.

E na Europa, há perigo de contágio?

Um pouco de História e pretexto

Em 1958, Walter O’Malley tomou uma decisão que mudou o desporto norte-americano. Dono dos Brooklyn Dodgers, de NY, resolveu mudar a equipa para Los Angeles. Não havia um único clube profissional de baseball na Costa Oeste. Já havia equipas noutras modalidades na Califórnia, mas tinham nascido lá. Os Dodgers não. Pegaram nas malas, arranjaram casa e até hoje estão em LA.

É para ali que vão também os Chargers, ao fim de 55 anos em San Diego. Os adeptos revoltaram-se, como fizeram os dos St. Louis Rams, quando no ano passado o dono Stan Kroenke anunciou o regresso a LA.

O que está por detrás de todas estas mudanças de equipas no desporto americano tem nome: estádios.

Esse é, pelo menos, o pretexto usado pelos donos.

As Ligas têm regras, inclusive para juntar Messi e Ronaldo numa equipa

Para entender o desporto norte-americano é necessário perceber um conceito sem o qual ele não seria como é.

Em 1988, John Beisner publicou um artigo na Yale Law & Policy Review, jornal da faculdade de Direito daquela universidade, sobre a possível intervenção do Congresso na deslocalização das equipas. E nele explicou:

«As Ligas vendem competição no campo e esta tem de ser entendida [pelo público] como honesta. A força das equipas tem de ser relativamente equilibrada de modo a obter apoio dos adeptos. No entanto, ironicamente, para produzir uma competição equilibrada as ligas não podem, modo geral, permitir que as equipas, individualmente, possam competir umas contra as outras no mundo empresarial. À luz da natureza do produto desportivo, as ligas procuraram e receberam o direito a controlar a localização geográfica das equipas-membro, regular a contratação de jogadores, aglomerar as receitas televisivas e as de bilheteira e estabelecer regras e sanções para garantir a equidade das forças das equipas em campo.»

Por outras palavras, nos EUA a equipa A vender os direitos televisivos a uma operadora e o clube B vender isoladamente a outra, ou à mesma operadora por valor diferente, é, simplesmente, uma impossibilidade.

Certo, isso acontece em algum do futebol europeu. Mas nos EUA aquele conceito não se reflete apenas na TV: existem tetos salariais e se alguém quiser oferecer um contrato de cem milhões por 5 anos a um jogador tem de libertar outros para o fazer e, assim, garantir o equilíbrio.

Num exercício de imaginação simples, para ir buscar Cristiano Ronaldo ao Real Madrid e juntá-lo a Lionel Messi, o Barcelona teria de deixar de contar com Suárez, Neymar e Iniesta.

É por causa desse equilíbrio competitivo que as ligas têm também regras para a deslocalização. Se uma equipa muda de cidade, as restantes têm de ganhar com isso. Inclusive, têm voto na matéria.

Uma questão de mercado: nos EUA, em Londres ou México

Em todas as ligas profissionais é necessário que os donos votem a favor da deslocalização de um franchise. Depois, a equipa em questão tem de pagar uma taxa: no caso dos Chargers, uns incríveis 650 milhões de dólares.

Porque estar em Los Angeles ou St. Louis não é, obviamente, a mesma coisa.

Se nunca refletiu a sério por que razão Nova Iorque e Los Angeles têm quase sempre duas equipas da mesma modalidade é por isto: são os maiores mercados do país.

Se a MLB tem Dodgers e Angels of Anaheim, a NBA tem Lakers e Clippers, a NFL não tinha ninguém até agora. Passará a ter Rams e Chargers.

Los Angeles é demasiado apetecível, tal como é Londres, onde a liga de futebol americano faz jogos regularmente, ou o México, que tanto a NFL como a NBA andam a namorar.

Wembley tem recebido todos os anos jogos da liga profissional norte-americana e já recebeu da NBA

A «chantagem» dos donos de equipas

Cumprido o processo de votação interno pelos donos das equipas, os Chargers vão pagar a tal taxa de deslocalização. Para quem vai o dinheiro? Para pagar à cidade que fica sem clube e com um estádio ao abandono? Não, para as outras equipas da liga.

Quem se muda vai aumentar ativos e por isso compensa as outras com dólares. No fundo, paga para ser maior, mas com isso dá dinheiro às outras para crescerem também. Tudo em nome do tal equilíbrio fora de campo.

As ligas dizem, e está escrito nas regras de deslocalização, que «desencorajam a mudança de uma equipa, se ela dá lucro e tem uma boa base de fãs». Por isso, uma deslocalização de um clube lucrativo só se poderá dar por uma razão. Ou pretexto: o estádio.

Se não estiver em condições, pode haver motivo para a quebra do contrato de arrendamento. Os Chargers usaram este argumento para ir para Los Angeles, onde vão partilhar estádio com os Rams.

O dono destes últimos comprou terreno, juntou-se à empresa que tinha os sítios adjacentes e com os empréstimos que a NFL dá às equipas e à subsidiação estatal os dois clubes partilham a construção. Embora os Chargers tenham de pagar aluguer anual de um dólar.

A deslocalização de equipas profissionais está muito ligada à construção de fábricas. As cidades pressentem ter benefícios económicos, através de rendas, da criação de emprego, e de impostos com a introdução de uma equipa profissional.

Por isso, avançam com propostas às ligas para ter determinada equipa. Tentam convencê-las através da edificação de um novo recinto desportivo e da subsidiação que elas vão receber.

Ora, estas ofertas servem muitas vezes para as equipas negociarem – o termo surge muitas vezes na voz dos adeptos como «chantagear» - o atual arrendamento na cidade em que estão.

Quando os Houston Oilers receberam uma proposta para se mudarem para o Tenessee (o que aconteceu anos mais tarde), pressionaram a câmara de Houston para obter um leasing mais baixo do Astrodome. Hoje, é um dos elefantes brancos da indústria desportiva.

O Astrodome de Houston foi denominado como a oitava maravilha do mundo. Abandonado, serviu para acolher as vítimas do Katrina em 2005 e foi fechado em 2008

Os adeptos que pagam a dobrar

Em Atlanta, a equipa de futebol americano fica, mas também haverá um novo estádio. Neste caso privado.

O proprietário dos Falcons, Arthur Blank, está a construí-lo e o local até terá o nome de uma conhecida marca de automóveis alemã.

O recinto vai ficar situado numa zona que tem ao lado bairros pobres. O que levou a que a fundação da família Blank doasse cerca de 20 milhões de dólares para o desenvolvimento desses locais. Um montante bem menor do que aquele que a equipa vai receber em subsídios, como recordou o NY Times.

Ter bairros problemáticos junto a um estádio não é benéfico para o negócio, mas o mais curioso é que os habitantes de Atlanta já começaram a pagar a fatura da construção.

Houve um aumento de 20 por cento nas rendas da zona, de acordo com um estudo da Georgia Tech e, como é habitual nestas situações, a especulação sobre terrenos em volta do local aumentou, na expectativa de um lucro fácil.

Ou seja, os adeptos pagam indiretamente a construção dos novos recintos, através de impostos, ou a manutenção daqueles que ficaram para trás, abandonados, como o já referido Astrodome de Houston, ou o Izod Center que abrigava os New Jersey Nets, da NBA, e que apresentou prejuízos de mais de oito milhões de euros até que os governantes locais decidiram fechá-lo.

E os adeptos agora torcem por quem?

A proximidade geográfica e emocional é um fator ainda maior nos americanos. É uma questão de pertença.

Quando os Houston Oilers (NFL) saíram do Texas para Nashville, mantiveram o nome durante um ano. Depois mudaram-no para Tenessee Titans. Será ainda o mesmo clube?

Os San Jose Earthquakes, onde já jogou Yannick Djaló, mudaram-se para Houston e tornaram-se no Dynamo. Hoje existem as duas equipas, mas isso foi porque a MLS decidiu que todo o branding dos Earthquakes seria exclusivo da região.

Por qual torcem então os adeptos daquela cidade californiana? Pela ex-equipa Dynamo ou pelos novos Earthquake?

O testemunho de Buzz Webb, um dos vários adeptos dos Rams de St. Louis (NFL) que falou com a Associated Press, em setembro, dá pistas sobre o sentimento geral.

«Sinto-me traído. Quem estiver a jogar contra eles, vai ter o meu apoio. Ainda adoro os jogadores dos Rams, mas o clube como um todo, para mim, já foi».

Há uma devastação emocional. Seja nas gigantescas NFL, NBA ou NHL, seja na modesta North American Soccer League, uma das segundas divisões do futebol americano e onde jogava o português Daniel Fernandes, cujo clube Rayo OKC, simplesmente desapareceu.

O caso europeu

As ligas americanas têm uma isenção na lei da concorrência dos EUA. Só assim é possível que decidam onde querem ter equipas e quando.

Na mesma medida que uma equipa «chantageia» uma cidade quando tem uma oferta de outra, a perda dessa mesma isenção é trunfo sempre na mesa quando o Congresso pretende dar algum recado às ligas.

Na Europa, também há leis de concorrência, sobretudo no espaço da UE, e vários clubes cuja propriedade não é dos adeptos ou sócios, antes de privados. A tradição pode ser muito mais enraizada, centenária, mas a deslocalização já sucedeu também.

Também conhecido por Dons, o Wimbledon FC chegou a jogar na Premier League. Andou em casa emprestada até que pensou em ir para Dublin. A estrutura de futebol inglesa, FA e Premier League, aceitaram, mas a mudança foi vetada pela federação irlandesa.

Assim, o Wimbledon FC mudou-se Milton Keynes.

Um ano depois, tornou-se em Milton Keynes Dons, nome que prevalece, enquanto os adeptos do Wimbledon FC criaram outro clube: o AFC Wimbledon.

As duas equipas já se defrontaram na Taça de Inglaterra, cuja edição de 1987/88 não tem dono: a taça deve ser de quem, do MK Dons ou do novo AFC Wimbledon?

Antes de ser ator, Vinnie Jones era o capitão do Wimbledon FC quando a equipa jogava na Premier League

Em França, o Toulouse FC original fundiu-se com o Red Star em 1967. O que obrigou à criação do Toulouse FC atual três anos depois, e, mais relevante, à introdução de leis que impedissem fenómenos do género.

Em Itália, a mudança de clubes é possível apenas e só entre cidades vizinhas: aconteceu nalgumas ocasiões, mas nos escalões inferiores do calcio

A deslocalização de equipas europeias para outras cidades é difícil pela tradição, mas não é impossível.

Com a propriedade dos clubes a passar cada vez mais para mãos privadas na Europa, a vontade dos donos é determinante.

Existe a UEFA que é diferente de uma liga privada nos EUA. Mas não será toda a negociação que houve em torno do formato da Champions League um indicador de que o se dá por garantido, não é tanto assim?