De um dia para o outro, o nome de Marie-Louise Eta correu mundo. Ela tornou-se a primeira mulher na equipa técnica de um clube da Bundesliga, de qualquer clube numa primeira Liga europeia. Subiu com Marco Grote dos sub-19 para a equipa principal do Union Berlim. Depois de se ter separado do histórico Urs Fischer, o clube continuou a fazer história. Ainda que sejam treinadores interinos, este é um marco. 

Quando uma mulher treinadora assume um lugar de primeiro plano num clube de homens, ainda é notícia. Porque continua a ser raro. Como diz a portuguesa Helena Costa, que em 2014 foi pioneira, quando se tornou a primeira treinadora à frente de um clube profissional. «Devíamos estar a falar de uma coisa normal, que não há-de ser normal tão rapidamente, na minha opinião. Mas é positivo que aconteça.»

De qualquer forma, é de saudar quando acontece, acrescenta, a propósito da oportunidade que surgiu agora para Marie-Louise Eta. «Tem a condicionante de não ser uma nomeação definitiva e ser na perspetiva de acompanhar alguém que é treinador interino. Mas é sempre algo que traz um boom e que é positivo», diz Helena Costa ao Maisfutebol, falando por experiência própria sobre o que espera a treinadora alemã nos próximos tempos: «Acho que a vida dela a partir de agora vai mudar por completo», observa, explicando que a espera uma avalanche de atenção mediática de «todas as partes do mundo», com as questões a andarem sempre à volta do facto de ser mulher.

De certa forma, a atenção que uma decisão destas provoca devia servir de exemplo para os clubes, acrescenta a portuguesa que continua a trabalhar no futebol ao mais alto nível, mas agora na área do scouting. «Obviamente que a primeira condição para isto acontecer é a competência das pessoas. Não interessa se é mulher se é homem. Isso para mim tem de ser garantido. Mas acho que para além disso os clubes poderiam ganhar realmente muito mais apostando numa mulher. Não têm bem a noção ainda do que de positivo podia ocorrer», diz: «Pode trazer muitos sponsors, muito nome, o clube é muito falado. E a mediatização traz outras coisas. Em termos económicos os clubes precisam disso, hoje em dia mais do que nunca.»

Escolhida entre 100 candidatos e um estágio com Klopp

Agora, é sobre Marie-Louise Eta que estão os holofotes. E quem é ela? Falando de competência. A antiga futebolista alemã, que jogava a médio, tem 32 anos e terminou a 6 de abril deste ano o curso que lhe valeu a Licença Pro, o nível mais alto de formação de treinadores.

Foi escolhida entre 100 candidatos, no final de um processo de seleção que contou com a sua experiência como jogadora e treinadora, bem como a sua formação universitária em gestão desportiva.

Foi a única mulher entre 16 participantes nesse curso da Federação alemã (DFL), que incluiu trabalho de campo em vários clubes da Bundesliga e ainda uma «visita de estudo» ao Liverpool, para aprender com Jurgen Klopp.

Chegava ao fim do percurso de formação como treinadora, mas há muito que desempenhava esse papel em campo, ela que foi apaixonada por futebol desde sempre.

Nascida em Dresden, Marie-Louise jogou desde criança e aos 13 anos chamou a atenção do Turbine Potsdam, então uma das maiores potências do futebol feminino. Mudou de escola e mudou de vida, sem hesitar. «Quando soube que lá havia treinos duas vezes por dia, quis ir imediatamente. Só pensava em futebol», contou numa entrevista ao site da DFL em 2020.

Tinha 17 anos quando foi promovida à equipa principal do Potsdam. Ao longo de três temporadas, fez parte de uma fase de ouro do clube. Foi três vezes campeã alemã e venceu a Liga dos Campeões feminina em 2010.

Em paralelo, iniciou um percurso nas seleções jovens alemãs que a levou à conquista do Europeu sub-17 em 2008, tendo sido eleita para a equipa ideal da prova. E festejou a vitória da Alemanha no Mundial sub-20 de 2010, garantida em casa.

Deixou o Potsdam em 2011, para assinar pelo Hamburgo. Mas o clube acabou pouco depois com a equipa sénior feminina e Marie-Louise mudou-se para o Cloppenburg. Seguiu-se o Werder Bremen, onde acabou a carreira, aos 26 anos. Vinha de vários problemas com lesões e passou a focar-se na formação como treinadora.

Em Bremen, passou pelas equipas técnicas de vários escalões de formação, tanto femininos como masculinos. Foi aliás a primeira mulher a treinar rapazes num clube da Bundesliga.

Também trabalhou em paralelo com a Federação alemã, como adjunta nas seleções femininas de sub-19 e sub-15, aqui ao lado de Bettina Wiegmann, lenda do futebol alemão e campeã do mundo em 2003.

O marido treinador que foi… despedido esta semana

Foi como Marie-Louise Bagehorn, o seu apelido de solteira, que fez a carreira de jogadora. Depois assumiu o nome do marido, Benjamin Eta, que também foi jogador e é treinador. Aliás, Benjamin foi despedido do clube que treinava no início desta semana, dois dias antes de Marie-Louise chegar à equipa principal do Union Berlim. A história é contada pela revista Kicker, que lembra que o técnico tinha assumido o SC Weiche Flensburg 08, do quarto escalão, há dez meses.

Benjamin Eta tentou entrar no curso Licença Pro em 2022, tal como ela, mas não conseguiu. «Quando se candidatou ele sabia que seria difícil, por causa do novo sistema de pontos. Mas não temos invejas, ele está feliz por mim», contou Marie-Louise à Kicker: «Não fazemos disto uma competição, pensamos antes que podemos aproveitar muito com a experiência um do outro. Trocar ideias com ele ajuda-me muito.»

Agora, é ela quem assume protagonismo. E cumpre um dos objetivos que definiu para a sua carreira, como dizia à Kicker, contando as portas que se abriam ao atingir o nível mais alto da formação. «Consigo imaginar várias coisas. Em algum momento, assumir uma seleção jovem, trabalhar como treinadora-adjunta em Ligas profissionais masculinas, treinar uma equipa na Bundesliga feminina, ou a mesma coisa com equipas sub-17 ou sub-19 masculinas.»

Atingiu uma dessas metas quatro meses depois de se ter mudado para o Union Berlim, no verão passado. Chegou para a equipa masculina de sub-19 e é lá que tem estado, como adjunta de Marco Grote nomeadamente na campanha de estreia da equipa na Youth League, onde o Union soma até agora uma vitória, frente ao Nápoles, no grupo do Sp. Braga.

No início desta semana, o Union tomou a difícil decisão de terminar uma ligação de mais de cinco anos com Urs Fischer, o treinador que levou o clube do segundo escalão até ao quarto lugar na Bundesliga em 2022/23 e à inédita presença na Liga dos Campeões. Mas a época tem sido de desilusão para a equipa do português Diogo Leite, última na Bundesliga com apenas seis pontos em 11 jornadas e já eliminada na Liga dos Campeões.

Para substituir Fischer, o clube decidiu por agora promover Marco Grote e a sua equipa técnica, «até nova informação». Portanto, Marie-Louise Eta prepara-se para ser a primeira treinadora no banco de um jogo da Bundesliga e provavelmente também da Liga dos Campeões, quando o Union visitar o Sp. Braga a 29 de novembro.

Será inédito. E contam-se pelos dedos das mãos o número de mulheres que chegaram a treinar equipas seniores masculinas a um nível profissional.

A primeira de que há memória é a italiana Carolina Morace. Antiga internacional italiana, tornou-se em 1999 a primeira mulher a orientar uma equipa profissional masculina, mas essa experiência à frente do Viterbese, na Série C1, durou pouco tempo. Demitiu-se alegando interferências da direção no seu trabalho. Continuou a carreira de treinadora no futebol feminino, no comando de várias seleções, da Itália ao Canadá, mas também de clubes como o Milan e a Lazio.

Helena Costa e o diretor-desportivo «que não trabalhava com mulheres»

Em 2014, Helena Costa deu um passo mais à frente. A portuguesa, que tinha já longa experiência como treinadora, da formação do Benfica às seleções femininas de Catar e Irão, passando por trabalho de scouting em vários clubes de topo, foi escolhida para liderar o Clermont-Foot, na II Divisão francesa. Era a primeira mulher à frente de um clube numa Liga profissional, o seu nome correu mundo na altura, chegaram felicitações de todo o lado.

Mas não ficou muito tempo. Deixou o clube ao fim de apenas um mês, antes do início da época, em nome do respeito pelo seu trabalho e no meio de uma pré-época em que o seu papel na política desportiva do clube não foi tido em conta. «Não querendo pisar outra vez o assunto, que já é desgastante, a questão foi o diretor-desportivo, que disse claramente que não trabalhava com mulheres», recorda agora.

Olhando para trás, Helena Costa reflete sobre as razões que levaram o clube a convidá-la. «Acho que foi uma conjugação de factores. Primeiro, claro, também havia a intenção do clube de mediatização e de sponsors, isso era obviamente um objetivo. Depois era uma comunidade portuguesa, Clermont tinha na altura 30 mil portugueses, a própria presidente de Câmara era portuguesa. Havia ali um apelo à intervenção do público, à participação no futebol, que já era grande mas podia ser maior. E depois, espero eu, ainda hoje espero isso, que tenham olhado para a competência, no meio de tudo isto. Obviamente, eu tinha consciência de que isto eram alguns dos factores que estavam por detrás. Mas não foi isso que me retirou de lá e mantenho hoje a opinião que tinha há dez anos.»

Para suceder a Helena Costa, o Clermont escolheu outra mulher. «Só soube há coisa de dois anos que o diretor-desportivo saiu no dia em que ela entrou. Ficou provado que era isso. Portanto, eu fui um pouco fazer a vida negra antes de a coisa começar. Mas foi bom que a Corinne tivesse ido», diz agora Helena Costa.

Corinne Diacre, também antiga jogadora e internacional francesa, manteve-se mais tempo no cargo, de onde saiu em 2017, para assumir a seleção feminina francesa. Foi afastada já este ano, em rutura com as principais jogadoras.

Já no verão de 2023, voltou a fazer manchetes a notícia de que em Inglaterra uma mulher assumiria pela vez uma equipa masculina a nível nacional. No início de julho, Hannah Dingley foi anunciada como treinadora interina do Forest Green Rovers, na League Two. Era uma treinadora já com provas dadas na formação do clube, mas também foi uma experiência curta, uma transição na pré-época até à chegada do novo treinador.

Uma mulher treinadora numa grande Liga? «Não está para tão breve»

O facto de estes exemplos serem tão esporádicos reforça a ideia de como é difícil quebrar a barreira que afasta as mulheres do futebol masculino. Apesar de haver muitas com formação, experiência e currículo. Como Sarina Wiegman, a treinadora neerlandesa que levou os Países Baixos à final do Mundial feminino em 2019, que foi campeã da Europa com a Inglaterra em 2022 e finalista do Mundial em 2023, e cujo nome chegou a ser falado no verão passado como hipótese para mais do que uma seleção masculina. Por estes dias, numa entrevista à BBC, Sarina Wiegman disse acreditar que já não está assim tão longe o dia em que um clube profissional opte por uma treinadora mulher em Inglaterra. «Acho que vai acontecer. É uma questão de tempo e isso vem com o desenvolvimento do jogo», afirmou.

Helena Costa não está assim tão otimista. «Gostava muito que isso acontecesse. A minha passagem pelo Clermont foi um boom e eu gostava muito que acontecesse. Mas a minha perspetiva é que não está tão para breve. Espero que a Sarina tenha razão e que eu esteja errada. Mas eu não perspetivo isso como algo que possa acontecer em breve», diz, comentando o facto de mesmo alguém com a experiência de Wiegmann ainda não ter chegado ao futebol «de homens». «Ela até já pode ter tido convites e ter optado pelo feminino, não sei. Mas de facto tem um currículo excelente, com garantias e com títulos, portanto a dúvida aí desvanece-se. É mesmo por ser mulher.»

E porque é que continua a existir essa barreira? «Está instituído que o futebol é um mundo de homens. Vem do nosso passado e efetivamente no dia a dia é isso que acontece. Mesmo o futebol feminino, se formos a ver tem imensos treinadores homens», diz Helena Costa. «É uma questão de mentalidades. E como em tudo na sociedade o quebrar de barreiras demora o seu tempo», continua a técnica portuguesa, acrescentando que continuam muitas vezes a ser levantados constrangimentos que não fazem sentido: «Há a barreira, sei lá, do balneário… Mas treinador masculino também não entra no balneário quando não pode. Não vejo isso como uma barreira. Aliás, eu já treinei equipas masculinas, não só na formação mas seniores também, a nível distrital, e isso era uma condição e nunca foi um problema.»

Helena Costa continua a trabalhar no futebol, com um longo percurso que incluiu várias épocas no scouting do Eintracht Frankfurt, onde esteve por detrás do sucesso da equipa na Liga Europa em 2022, e agora como coordenadora de scouting do Watford, em Inglaterra. Mas mantém o sonho de voltar a treinar.

«O meu telefone pode tocar», ri-se. «Estou longe enquanto as pessoas não se lembrarem. Estou nos treinos diariamente, mas não enquanto treinadora. Estou na ligação diária com a equipa, que também é extremamente desafiante e aliciante. Mas ainda tenho claramente o bichinho», continua: «Embora eu adore o que faço e seja privilegiada nesse sentido, o bichinho do treino mantém-se.»