João Santos tinha sete anos quando foi, pela mão do avô, ao antigo José Alvalade para começar a treinar no Sporting.

Naquele campo de treinos nas imediações do estádio estava Joaquim Carvalho, histórico das balizas do Sporting, três vezes campeão nacional, vencedor da Taça das Taças em 1964 e Magriço dois anos depois em Inglaterra.

«Perguntámos se era possível treinar e o mister Carvalho, muito amavelmente, perguntou que idade eu tinha. Só podia começar aos oito anos, mas ele disse: ‘Eh pá, vens cá experimentar.’ E assim foi: fiz o treino, o mister Carvalho gostou muito de mim e eu fiquei praticamente um ano só a treinar porque ainda não podia ser inscrito», recorda em conversa com o Maisfutebol o hoje dono da Escola de Guarda-Redes João Santos, a maior em Portugal.

Carvalho era o treinador dos jovens guarda-redes do Sporting e João Santos, inspirado no avô e no pai, antigos guarda-redes de futebol de salão, também só tinha olhos para a baliza.

Dos sete anos 17 anos, João Santos percorreu todos os escalões de formação nos leões. Foi colega de futuros campeões europeus como Cédric Soares, William Carvalho e João Mário, e também de Ricardo Esgaio, hoje habitual titular do Sporting de Ruben Amorim.

Até que, na passagem para os juniores, rendeu-se a uma evidência. «Foi nesse momento que eu percebi que, se calhar, o sonho de ser profissional já não era algo que eu queria tanto, porque percebi que não ia crescer. Literalmente», conta com um sorriso.

Para não ser emprestado e poder escolher livremente o passo seguinte a dar, João desvinculou-se do Sporting e fez a pré-época nos juniores do Belenenses, então treinados por Rui Jorge, hoje selecionador nacional sub-21. «Faço a pré-época, mas senti que não era bem aquilo que queria. E foi aí que tomei a decisão de levar o futebol um bocadinho menos a sério do que até então. Saí do Belenenses e fui para o Odivelas, onde fiz o meu primeiro ano de juniores e no final desse ano digo: ‘Quero seguir no futebol, mas não é como jogador. É como treinador.’ Para os meus amigos, para as pessoas que me conheciam e que me acompanhavam enquanto jogador, foi uma decisão drástica, quase trágica [risos].»

João Santos estava decidido a virar a página. Para trás tinham ficado anos de dedicação.

E de sacrifício, também. Durante os dois anos em que esteve na academia, estudava em Alcochete, saía de casa todos os dias às 6 da manhã e só regressava às 10 da noite.

Então com 18 anos e a completar o 12.º ano, João já tinha o plano bem definido. «Eu percebi cedo que não podia deitar para o lixo aqueles dez anos no Sporting. E, quando deixei de jogar, na minha cabeça já estava: entrar na faculdade para o curso de Educação Física e Desporto para poder ser professor de Educação Física, e tirar o primeiro nível do curso de treinador. E foi isso que fiz. Em setembro fui para a faculdade e comecei a tirar também o curso de treinador. Foi uma transição muito rápida.»

«O que é que se passa na Alta de Lisboa?»

Entre os 18 e os 21 anos, João Santos conciliou a licenciatura com o trabalho de treinador principal na Alta de Lisboa. Paralelamente, fazia treino específico com guarda-redes uma vez por semana.

E os resultados não tardaram. «As pessoas no Sporting aperceberam-se que tínhamos guarda-redes de qualidade e questionaram o que é que se estava a passar na Alta de Lisboa. Até que chegaram à conclusão que era eu, um ex-atleta deles, que estava a dar esse treino específico. Nesses três anos, o Sporting foi buscar três guarda-redes a esse grupo que eu treinava», lembra.

E não foram só guarda-redes que o Sporting foi buscar à Alta de Lisboa. Foi também João, que voltou a «casa» aos 21 anos, mas para ser treinador de guarda-redes. Nessa altura, já tinha um grupo com 15 a 20 jovens guardiões a trabalhar com ele. «Senti que ao ir Sporting estaria a abandoná-los e a deitar por água abaixo o trabalho que estávamos a fazer. Por isso, disse ao Sporting: ‘Ok, mas no meu dia de folga eu quero ter um projeto meu.’»

E foi assim que nasceu, em 2013, a Escola de Guarda-Redes João Santos. Às sextas-feiras, no campo dos Unidos, através de uma parceria com a Escola Academia Sporting de Carnide.

A criação da escola, conta o também treinador de guarda-redes dos seniores do Casa Pia, acabou por ser um passo natural após ter identificado grandes carências ao nível do treino específico para a posição. «Naqueles anos em que eu fui treinador principal na Alta de Lisboa, quando jogávamos contra as equipas raramente via treinadores de guarda-redes a aquecer os guarda-redes e reparava que havia muitas dificuldades neles também. Havia essa falha», refere.

João Santos recorda que nos primeiros tempos a escola foi recebida com algum ceticismo no meio. Houve quem dissesse que não funcionaria em Portugal e que no passado alguém já tinha tentado aplicar a ideia, mas sem adesão. «Para alguns agentes desportivos também era estranho ver um guarda-redes a jogar num clube e, ao mesmo tempo, treinar numa escola de guarda-redes. Quase como se tivesse um PT. Eu costumo dizer que a escola de guarda-redes surgiu quase como um centro de explicações para aqueles que tinham dificuldade e que precisavam de ajuda. E, mais tarde, passou a ser para aqueles que até nem tinham grandes dificuldades, mas que queriam ser melhores.»

Gradualmente, a Escola de Guarda-Redes João Santos foi-se tornando conhecida entre os clubes da zona de Lisboa e as solicitações para parcerias começaram a surgir naturalmente.

«Os clubes, ao verem que os guarda-redes estavam à procura desse treino fora, começaram a ligar e a dizer: ‘Oh João, eu acho o teu projeto muito interessante, mas o que eu quero é os teus treinadores no meu clube. Não quero que os meus guarda-redes vão à procura fora.’ E a escola começa a expandir-se aí. Nós não recebemos tantos guarda-redes, mas começamos a ir aos clubes colocar treinadores de guarda-redes para que possam ter treino de guarda-redes. Crescemos dessa forma: por um lado, em parcerias com clubes como se fosse uma prestação de serviços e, ao mesmo tempo, começando a fazer parcerias em zonas estratégicas para receber guarda-redes de fora», explica.

Hoje, no ano em que completou o décimo aniversário, a Escola de Guarda-Redes João Santos tem oito polos espalhados pela Grande Lisboa – Encarnação, Alta de Lisboa, Parque das Nações, Alfragide, Rio de Mouro, Vila Verde, Oeiras e Fontainhas, concelho de Cascais – 108 guarda-redes inscritos dos oito aos 18 anos e mais de meia-centena nos clubes que são apoiados, através de prestação de serviço, por uma rede que já conta com 25 treinadores que aplicam a metodologia da escola e que têm ajudado a colocar guarda-redes em alguns dos maiores clubes nacionais – Sporting, Benfica e Sp. Braga, por exemplo – mas também nas seleções.

João Santos fala com orgulho de alguns jovens que são, no fundo, a prova materializada do sucesso do projeto. «O maior caso que temos é o do Francisco Lemos, que é guarda-redes do Atlético [Clube de Portugal] e que está atualmente na seleção portuguesa de sub-21. Entrou aqui com 11 anos no campo dos Unidos, no tal primeiro campo onde estivemos. Tivemos uma breve ligação no Sporting, ele saiu e passado uns meses apareceu na escola para ter um acompanhamento mais específico. Até aos 14 anos esteve nos treinos de grupo e a partir dessa idade passou para os particulares. Hoje, o Francisco é uma referência mais os mais novos.»

Mas há mais, conta o treinador de 31 anos. «O primeiro guarda-redes formado na escola que chegou ao futebol profissional foi o Vasco Gaspar, que estava no Sporting e que chegou inclusive a treinar com a equipa A. Infelizmente, teve uma lesão num ombro e teve de abandonar. Atualmente temos nos sub-23 do Sp. Braga o Diogo Águas, que esteve aqui vários anos; o João Teopisto, que é guarda-redes dos sub-23 do Torreense; o Fábio Sousa, guarda-redes do Amora; no Campeonato Nacional de Juniores temos vários guarda-redes que começaram na escola, desde o Diogo Clara [Sporting], o Fernando Schmelz [Alverca]. Nos sub-19 e sub-23 do Estoril temos o Gonçalo Churro, que começou aqui neste campo da Encarnação. Foi fruto deste polo», diz enquanto conversa connosco e observa dois treinos a decorrer numa metade do campo da Associação Desportiva e Cultural da Encarnação e Olivais, na zona oriental de Lisboa.

Ao todo, são já vários os guarda-redes que foram chamados às seleções jovens de Portugal: Francisco Lemos (sub-18 e 21), Fernando Schmelz (sub-20), Diogo Águas (sub-18), Rafaela Mendonça, guarda-redes sub-17 ou Eurico Cunha, chamado à seleção sub-19 de futsal.

A metodologia por detrás do sucesso

A evolução do jogo fez do guarda-redes mais um jogador de campo. Hoje, a capacidade para jogar com os pés e envolver-se na construção de jogo é, mais do que valorizada, indispensável em muitas equipas.

João Santos explica que esse é um ponto muito trabalhado nos treinos da escola. «O treino do guarda-redes evoluiu muito nos últimos anos, sem dúvida. O olhar sobre o guarda-redes é diferente hoje. E, hoje em dia, o jogo exige mais coisas dele. O guarda-redes já não é só um guarda-redes, é também um jogador de campo que tem uma influência muito grande. Nós privilegiamos muito o jogo de pés. Aliás, procurei que a nossa metodologia fosse diferente também nesse sentido. Apesar de eu ter tido uma formação com um treino muito técnico até uma determinada altura – muito analítico – no fim da minha formação como jogador já apanhei uma geração de treinadores muito virada para o jogo», refere.

«A nossa metodologia é muito isto: eu posso ensinar a técnica, seja ela defensiva ou ofensiva – jogo de mãos ou de pés – mas tudo já enquadrado naquilo que é o jogo. Estou a ensinar a parte técnica, mas também a ensinar um posicionamento e comportamento que permitem ao atleta chegar ao jogo e sentir que já esteve nas situações com as quais se vai deparando e que comportamento tem de ter em cada momento», explica.

João Santos quer que os guarda-redes que passam pelas mãos dele e da sua equipa adquiram o «pacote completo». Que se tornem guarda-redes seguros. E, para isso, têm de ser competentes em vários aspetos: «Do ponto de vista técnico, tático, físico, psicológico e emocional. (…) O treino de guarda-redes teve uma evolução muito grande. Sinto que hoje os guarda-redes jovens chegam mais preparados ao futebol sénior, mas também que é preciso dar continuidade a este trabalho, porque é uma posição muito exigente que tem uma especificidade muito grande e se não tiverem esse treino os guarda-redes acabam por sair prejudicados», alerta.

Expansão cá dentro e internacionalização. Os próximos passos

Hoje, a Escola de Guarda-Redes João Santos é uma academia de futebol – Sports Academy by João Santos – que também já integra jogadores de campo. O crescimento passa também por aí, mas sem descurar as raízes do projeto: o treino dos guarda-redes.

«É lá que está a minha paixão, o meu ‘bebé’. Acredito que vamos crescer ao ponto de um dia sermos uma academia de futebol que provavelmente terá equipas a competir, mas seremos sempre diferentes, porque as pessoas sabem que nesta academia os guarda-redes e o treino específico deles são valorizados, tal como o das outras posições. Esse é o meu sonho: ter uma academia em que todos tenham a atenção que temos sempre dado aos guarda-redes e que todos se sintam especiais. Outro dos meus objetivos a curto/médio prazo é internacionalizar a academia. Não para que lá fora saibam quem é o João Santos, mas para que saibam o talento que temos cá», conclui João Santos.