Na lista de encontros que vão preencher as nossas memórias do ano de 2014 há, obviamente, um OVNI que está muito para além da classificação de jogo do ano: a 8 de julho, na cidade de Belo Horizonte, assistiu-se a um daqueles acontecimentos que vão continuar a marcar a história do futebol muitos anos depois de a última testemunha presencial ter desaparecido.

O Brasil-Alemanha, 1-7 não foi só a meia-final mais desequilibrada em 84 anos de Mundiais foi, também, a confirmação de que, mesmo num meio cada vez mais rigoroso e científico, o futebol continua a ter margem para o imprevisível e o fantasmagórico. Este marcador



é História a entrar-nos pelos olhos. Tal como os olhares incrédulos trocados pela comunidade internacional de jornalistas na bancada de imprensa. Ou o silêncio ensurdecedor que, nas bancadas do Mineirão, foi embrulhando o choque e amortecendo a indignação brasileira, até a transformar numa tristeza funda e sonolenta.

Descontando esse OVNI, sem dúvida o momento mais extraordinário de um Mundial riquíssimo em jogos memoráveis*

(* Outros dez grandes jogos do Mundial:
Espanha-Holanda, Uruguai-Costa Rica, Nigéria-Argentina, Alemanha-Gana, Itália-Inglaterra, Uruguai-Inglaterra, Colômbia-Uruguai, Brasil-Chile, Alemanha-Argélia e Bélgica-EUA)


eis mais dez encontros que marcaram o ano que agora termina:

Tottenham-Benfica, 1-3 (13 de março)


Sim, os jogos da meia-final com a Juventus foram símbolos mais empolgantes (o primeiro) e épicos (o segundo) da campanha do Benfica na Liga Europa. Mas em termos de consistência, qualidade de jogo e até espectáculo, a vitória encarnada de White Hart Lane é digna de enfileirar nas grandes noites europeias do Benfica. Uma grande exibição de Rúben Amorim serviu de mote, assistindo Rodrigo e Luisão para os primeiros golos da noite. Eriksen ainda reduziu para os «spurs», mas o Benfica nunca perdeu o controlo das operações, sentenciando praticamente a eliminatória com novo golo de Luisão – o primeiro bis da carreira, aos 33 anos. Nem as rábulas dispensáveis de um descontrolado Jorge Jesus no banco de suplentes ofuscaram uma das atuações mais competentes dos encarnados nos últimos anos.

Real Madrid-Barcelona, 3-4 (23 de março)


Já se sabe como acabou esta história: em maio, pela primeira vez em nove anos, nenhuma destas duas equipas conquistou o título espanhol. Mas o que estava em causa, em finais de março, era a viabilidade da candidatura ao título do Barcelona. Minados por cisões internas, em caso de derrota os «blaugrana» ficariam a quatro pontos dos dois rivais de Madrid. Logo aos 7 minutos, a combinação entre Messi e Iniesta, na origem do primeiro golo da noite, foi o tiro de partida para uma montanha russa de emoções. O Real deu a volta, esteve a ganhar por 2-1 e 3-2, antes de a expulsão de Sergio Ramos e a frieza de Messi (autor de mais um hat-trick) consumarem a reviravolta final. Com o mundo a assistir, deliciado, a vitória por 4-3 deixava o Barça de novo com os dois pés na corrida ao título - e o Atlético de Madrid a agradecer, cada vez menos outsider e mais candidato de corpo inteiro.

Liverpool-Man. City, 3-2 (13 de abril)


Sustentado pela liderança de Gerrard e os golos de Suarez, o Liverpool renasceu como grande potência do futebol inglês. O primeiro dos dois jogos chave de abril, para decidir uma luta a três, aconteceu a dois dias do emotivo 25º aniversário da tragédia de Hillsborough. Os «reds» conseguiram cedo uma vantagem de 2-0, com golos de Sterling e Skrtel. Mas a reação do Manchester City, no início da segunda parte, foi tremenda: 2-2 a meia hora do fim, com Anfield à beira de um ataque de nervos. Faltavam 12 minutos para o final quando o brasileiro Coutinho voltou a pôr o Liverpool na frente, desta vez sem retorno. A quatro jornadas da meta, os «reds» lideravam, com mais dois pontos do que o Chelsea e sete do que o seu adversário – que tinha jogos em atraso. Em lágrimas, Gerrard reuniu o grupo para um discurso de motivação empolgante e empolgado: «This does not fucking slip!» tornou-se instantaneamente uma das frases fortes do ano. . .



Benfica-FC Porto, 3-1 (16 de abril)


Já tinha havido um clássico em janeiro a sorrir ao Benfica e a mudar de mãos o ascendente na Liga. Mas o lastro dos embates do passado era forte e quando o FC Porto foi à Luz lutar pelo acesso à final da Taça, defendendo uma vantagem de um golo, ainda fazia figura de favorito, tanto mais que o Benfica repartia energias por várias frentes. Assim, quando Varela respondeu ao golo de Salvio e deixou os dragões com uma almofada de dois golos, parecia que o finalista estava encontrado, tanto mais que o Benfica jogava com um a menos, por expulsão de Siqueira. Mas a equipa de Jorge Jesus pressentiu a vulnerabilidade do adversário e não largou a presa: Lima reacendeu a Luz e, a dez minutos do fim, André Gomes incendiou o estádio com um dos golos do ano, consumando uma reviravolta improvável. Os seus efeitos viriam a prolongar-se no tempo, com o Benfica a conseguir em 2014 o seu melhor saldo em clássicos dos últimos 30 anos.

Liverpool-Chelsea, 0-2 (27 de abril)


Duas semanas depois de ser gritada aos ouvidos dos companheiros de equipa, a frase de Gerrard ganhou uma dimensão profética, a provar que o futebol tem um sentido de humor retorcido. A escorregadela do capitão do Liverpool, em cima do intervalo, permitiu a Demba Ba ganhar a bola a meio campo e marcar um golo que começou a fazer ruir o sonho dos adeptos dos «reds». Perante um Chelsea defensivo, agrupado em redor da área de Schwarzer, o domínio do Liverpool revelou-se estranhamente estéril, e a equipa de Mourinho acabou por sentenciar o jogo nos descontos da segunda parte, com Willian a concluir mais um segundo contra-ataque sem oposição. Para efeitos práticos, a vitória dos «blues» pôs o título no colo do City, que nos últimos três jogos não desperdiçou a oferta.

Bayern Munique-Real Madrid, 0-4 (29 de abril)


Seis dias depois de uma derrota tangencial em Madrid, num jogo que dominou na maior parte do tempo, o Bayern de Munique foi destroçado perante os seus adeptos, de uma forma que não tinha precedentes: mais do que o pior desaire caseiro em todo o percurso europeu dos bávaros, os 4-0 aplicados pelo Real Madrid revelaram uma equipa alemã à deriva, incapaz de encontrar soluções para o duplo dique montado por Ancelotti. Modric e Xabi Alonso foram a chave de uma exibição perfeita dos merengues, materializada em golos a dobrar de Sergio Ramos e Cristiano Ronaldo. Como o Bayern tinha feito ao Barcelona, um ano antes, a goleada representava uma passagem de testemunho: seria preciso esperar quase um mês pela oficialização, mas foi o jogo de Munique que fez do real o novo rei da Europa.

Chelsea-At. Madrid, 1-3 (30 de abril)


Apenas três dias depois de ter silenciado Anfield com requintes de crueldade, o Chelsea acabou por provar uma dose do seu próprio veneno. Depois do 0-0 em Madrid, na primeira mão, o caminho para a final de Lisboa parecia desbravado, mas em Stamford Bridge o Atlético de Madrid provou ser melhor: nada abalada pelo golo de Torres, a equipa de Simeone virou a eliminatória a seu favor ainda antes do intervalo, com um golo de Adrián e, na segunda parte, aproveitando a febrilidade de um Chelsea pouco vocacionado para assumir as despesas do jogo, sentenciou a meia final com golos de Diego Costa e Arda Turan. Num embate entre dois clubes com profundas ligações comerciais, Courtois, emprestado pelo londrinos aos «colchoneros», Diego Costa e Filipe Luís, futuras contratações dos «blues», mostraram toda a sua qualidade. Fraco consolo para os adeptos do Chelsea, e para Mourinho, que voltou a cair na meia-final, pelo quarto ano consecutivo.

Barcelona-At. Madrid, 1-1 (17 de maio)


O contexto era de filme: o título espanhol para ser decidido num duelo ao pôr do sol, de olhos nos olhos e revólver nas mãos. O Atlético de Madrid já tinha conquistado o respeito e a admiração dos neutrais, pela forma como potenciou recursos limitados para lutar com clubes mais poderosos. Mas, com a meta à vista parecia acusar a pressão: o título que lhe fugia há 18 anos tinha voltado a fugir no primeiro «match point», após um empate caseiro com o Málaga. No último dia era preciso ser épico e segurar os três pontos de vantagem em casa do perseguidor Barcelona. Acontece que a equipa de Simeone parecia ter encontrado a fórmula capaz de travar o Barça: nem uma derrota nos cinco confrontos anteriores, com uma eliminação na Champions pelo meio. Perante 97 mil espectadores, cada vez mais silenciosos, a tradição manteve-se: ao golo inaugural de Alexis Sanchez, a equipa de Simeone respondeu com uma exibição autoritária. O português Tiago brilhou, e uma cabeçada do central Godín levou a festa de volta para a praça Neptuno, depois destes festejos a quente em Camp Nou.



Real Madrid-At. Madrid, 4-1 a.p. (24 de maio)


Faltavam dois minutos, dois minutos apenas para o At. Madrid juntar ao título espanhol a primeira coroa continental da sua história. Na primeira final de Champions entre duas equipas da mesma cidade – com o estádio da Luz como palco de uma organização impecável – a cabeçada de Sergio Ramos no terceiro minuto de compensações reescreveu a história: fisicamente de rastos, fragilizado pela lesão de Diego Costa e pelo empate consentido ao cair do pano, o Atlético Madrid viu o sonho transformar-se em pesadelo ao longo de 30 minutos de calvário. O Real chegava à décima, numa final concluída com o golo de penálti de Cristiano Ronaldo, o seu 17º nessa edição da prova, num dos muitos recordes estratosféricos da sua carreira.

Roma-Bayern Munique, 1-7 (24 de outubro)


Desde que sucedeu a Jupp Heynckes, após um ano em que o Bayern Munique conquistou tudo, que Josep Guardiola tem sido confrontado com o desafio de melhorar o que já não parece poder ter melhorias. Em outubro, porém, e com os bávaros a dominarem a Bundesliga a seu bel-prazer, o Olímpico de Roma foi palco de um recital de proporções dantescas. Na réplica perfeita do «Mineirazo», e perante um adversário de qualidade indiscutível, Robben, Götze, Lewandowski e companhia divertiram-se com requintes de crueldade, marcando cinco golos entre os 9 e os 36 minutos antes de levantarem (apenas um pouco) o pé no segundo tempo. A sensação de que o resultado podia ter sido mais dilatado é o que torna tudo mais inquietante – e ajuda a deixar o Bayern na primeira fila de favoritos à vitória nesta edição da Champions, a par do Real Madrid.