A História de Um Jogo é uma rubrica do Maisfutebol. Escolhemos um dos encontros do fim de semana e partimos em busca de histórias e heróis de campeonatos passados. Às quinta-feiras, de 15 em 15 dias.

Nunca os Açores tinham visto algo assim, simplesmente porque era impossível aos Açores, até então, terem visto algo assim: uma equipa do arquipélago num jogo de futebol de primeira divisão.

Quis o destino que a estreia de Peter Schmeichel na liga portuguesa fosse no meio do Atlântico, onde teve de ir apanhar duas bolas às redes [vídeo no final da página]. Quer o destino que, nesta sexta-feira, Santa Clara e Sporting revivam esse primeiro encontro entre ambos e que a memória do número 14 dos açorianos em 1999 ainda esteja fresca.

Jorge Gamboa cresceu entre a realeza do futebol português. Na formação do FC Porto, com ele ou contra ele estiveram alguns dos campeões do mundo de Lisboa de 1990 e outros nomes sonantes dessa geração. O poveiro, porém, nunca tinha enfrentado um gigante do tamanho de Peter Schmeichel.

João Gamboa, médio do Estoril, à esquerda do pai, Jorge FOTO: Arquivo pessoal

O primeiro sentimento de Gamboa ao voltar a essa tarde solarenga de agosto é obviamente bom. «Recordo-a com um sentimento de nostalgia e de grande felicidade ao mesmo tempo. Foi um momento único para mim, devido ao facto também de o Santa Clara estar a estrear-se na Liga. Fiz dois golos, são os primeiros golos do Santa Clara no primeiro escalão. Inesquecível.»

Falta ainda o elemento Schmeichel. Mas a história da única vez que o Santa Clara-Sporting não terminou com vitória leonina tem prólogo.

Jorge Manuel Milhazes Nunes Gamboa cresceu futebolisticamente no Varzim e FC Porto, mas foi no Rio Ave e no Sp. Braga que se fez jogador de primeira. Ao fim de três épocas na Liga, mudou de ares e começou a desenhar o Santa Clara-Sporting, 2-2, da 1.ª jornada de 1999/00.

«Não cheguei a acordo com o Sp. Braga e tive de seguir a minha vida. Surgiu oportunidade através do senhor [José] Durães, que era um empresário que trabalhava com o Santa Clara. Tive outros convites, mas não me sinto nada arrependido, pelo contrário.»

O Sporting ia ser campeão nessa época, mas nos Açores, a coisa não começou nada bem. É que o Santa Clara vinha lançado…

«Vinha numa dinâmica de sucesso, tinha subido da 2.ª B para a II Liga e depois para a Liga em anos seguidos. Ainda por cima, era treinado por uma grande referência do Sporting, o Manuel Fernandes, e o primeiro jogo era precisamente frente ao Sporting. Havia um ruído na ilha... Naquele mês não se falou noutra coisa. Até as próprias companhias área fizeram mais ligações do que faziam.»

Gamboa continua a viagem de 1999 e conta como se formava o ciclone que ia atingir o Sporting durante 50 minutos.

«O Santa Clara era constituído por jogadores que tinham vindo a acompanhar o clube, mas que nunca se tinham estreado na Liga. Para eles, era um momento único. Nessa tarde, houve uma enchente, vários açorianos que quiseram testemunhar a estreia do clube na Liga fizeram um esforço enorme para vir das comunidades lá fora, do Canadá dos EUA.»

Provavelmente alheio a tudo isto, na baliza leonina estava então Peter Schmeichel. O dinamarquês não era enorme apenas pelos 1,91 metros. Era-o pelo currículo, pelo estatuto e pela atitude. Um completo contrário do «quarteto mágico» dos açorianos, como recorda o nosso interlocutor.

«Clayton, George, Figueiredo e Gamboa. Quatro baixinhos, mas com uma criatividade... Dava prazer jogar com eles. Para mim, o Figueiredo é o eterno capitão do Santa Clara. O “Figas” merecia ter jogado num grande… Depois ainda havia Sérgio Abreu, Gameiro, etc.»

Santa Clara, 1999/2000. Jorge Gamboa é o segundo da fila de baixo. À esquerda tem Figueiredo, à direita Gameiro

Toda esta gente vai a jogo, num dia em que dois homens estão mais em foco que ninguém. Giuseppe Materazzi no banco de um Sporting que não vence o campeonato há longas 18 épocas e Schmeichel, o homem que acabara de ser campeão europeu pelo Manchester United, na baliza.

Jorge Gamboa tem uma memória do pré-jogo. «Há uma história engraçada. Não sei se foi mesmo assim ou não, mas alguém questionou o Schmeichel sobre o Santa Clara e quando falaram no meu nome, ele terá dito “What? Gamba?” Ele é que levou com duas gambas», riu-se o antigo jogador dos açorianos com uma boa gargalhada.

O camisola 14 do Santa Clara fez logo de início o que mais ninguém conseguiria fazer a Schmeichel em Portugal, nessa época: marcar-lhe dois golos num só jogo. O primeiro na área, com receção e remate rasteiro, o segundo num mergulho de cabeça, com direito a festejo «a voar».

No banco açoriano, um homem festejava efusivamente, pois sabia melhor do que ninguém a dimensão do que, aos 44 minutos, acontecia no jogo. Manuel Fernandes era esse homem e é também a causa de Gamboa se entristecer um pouco ao lembrar os golos ao Grand Danois, como era conhecido Schmeichel.

«O Manuel Fernandes é alguém por quem tenho imenso respeito, foi um grande jogador e ninguém lhe vai ensinar nada. Transmitiu imenso conhecimento, sobretudo a nós, que jogávamos na frente. Quando nos lembramos do Schmeichel, dizemos que ele era um treinador em campo. É o que me relembro dele, tirando a parte técnica e desportiva, claro. Mas deixou-me um pouco triste com algumas declarações que terá feito sobre o Manuel Fernandes, o que me tira um pouco o orgulho de ter feito golos a esse guarda-redes.»

Jorge Gamboa com Robert Enke, num Santa Clara-Benfica FOTO: Santa Clara

O Sporting reage aos golos de Gamboa, já depois de Edmilson ter desperdiçado um penálti para fazer o 1-1. O brasileiro marca de cabeça aos 53 e é Beto Acosta que transforma uma tarde inesquecível de Gamboa «num resultado que não foi totalmente satisfatório».

Ainda assim, foi o melhor que os açorianos conseguiram frente ao Sporting em todos os jogos em Ponta Delgada. Nesta sexta-feira, têm ocasião para emendar a última frase ou pelo menos fazer igual. Já Gamboa, que esteve «ligado a uma empresa de scouting» e que hoje faz «alguns trabalhos num clube da II Liga, sem grande compromisso», poderá recordar todos os golos que fizera ao Sporting. Esses pelo Santa Clara e outros: «Na formação, quando eu jogava no FC Porto, o Sporting era cliente habitual. Fiz cinco jogos, marquei quatro golos.» Quatro gambas, seriam?