Antes de Cédric, João Mário, Cancelo, Rolando, Quaresma, Maniche, Pelé, Figo, Sérgio Conceição e Paulo Sousa, o Inter teve Jorge Humberto.

Foi ele o primeiro português a chegar ao adversário europeu do Benfica, em 1961, numa transferência promovida pelo lendário treinador Helenio Herrera, mas com contornos insólitos, tendo em conta que logo quiseram mudar-lhe o nome e fazer dele italiano.

Mas toda a vida de Jorge Humberto Gomes Nobre de Morais é digna de um filme, pelo que o melhor é recuarmos ainda mais.

De Jorge Humberto a Mourinho: os portugueses da história do Inter

Nascido em Cabo Verde, em 1938, começou a jogar na Académica do Mindelo com 14/15 anos. Ao terminar o liceu uniu-se a dois amigos para concretizar o sonho de estudar em Coimbra e jogar na Briosa.

«Fomos ter com o Governador de Cabo Verde, numa das visitas dele a São Vicente. Sem aviso prévio. Fomos recebidos por ele, e explicámos que estávamos interessados numa bolsa de estudo para Coimbra. Ele foi apanhado de surpresa, coitado, e logo ficou com um ar infeliz, de que não podia fazer nada. O que ele explicou é que Cabo Verde estava a pagar a bolsa a um estudante que estava a acabar o curso, e que, entretanto, adoeceu. Acabámos por aproveitar essa situação. Ele tinha uma reserva de seis meses, que era para uma pessoa. Entusiasmados com a situação, resolvemos dizer ao Governador que aceitávamos aquela parcela. A bolsa que era para um, acabou dividida pelos três, partindo do princípio que, cada um, ia conseguir alguma coisa da parte da família», explica Jorge Humberto, agora com 85 anos, em conversa com o Maisfutebol.

«Foi uma irmã minha, que vive em Coimbra, e que era professora de instrução primária, que me ajudou. Na altura ela estava a trabalhar em Angola. E contámos também com o apoio de um professor do Liceu de Cabo Verde, que tinha familiares em Coimbra. Fomos morar em casa desses familiares. Viajámos no navio Alfredo da Silva. Fizemos uma paragem do Funchal, e daí para Lisboa. Pernoitámos numa pensão, e no dia seguinte seguimos de comboio para Coimbra. Pagávamos uma pequena pensão a esses familiares do professor do Liceu de Cabo Verde, e ficávamos os três no mesmo quarto. Era uma parede para cada um, e sobrava a parede da porta (risos)», lembra o primeiro português a jogar pelo Inter de Milão.

Jorge Humberto chegou a Coimbra com bolsa para estudar, mas sem lugar reservado na Académica.

«Era uma intenção. Não havia contactos nenhuns. Logo na primeira semana procurei ser recebido pela direção da Académica. Expus a minha situação e eles, enfim, com boa vontade, acolheram-me», explica.

O treinador principal da Briosa era então Cândido de Oliveira, que se tornou preponderante para a carreira de Jorge Humberto: «Como eu ainda só tinha 17 anos, ele achou melhor eu ter um primeiro ano de adaptação, nos juniores, e no ano seguinte logo se via se tinha possibilidades de entrar para a primeira equipa. O primeiro jogo que faço pelos juniores é no campo do União de Coimbra. Ganhámos 4-0 e eu meti os quatro golos.»

Jorge Humberto cumpriu toda a época nos juniores, mas na tarde desportiva da Queima das Fitas de 1956 é lançado por Cândido de Oliveira na equipa principal: «Creio que foi frente ao Olhanense. Fiz um excelente jogo, mas quase a terminar apanhei um traumatismo, num lance com o guarda-redes, e fiquei com o joelho direito avariado. Passei a ir regularmente a Lisboa para receber tratamento do massagista do Sporting, umas três vezes por semana. Mas como tinha o menisco fraturado, acabei por ser operado.».

O avançado esteve oito meses sem jogar, mas voltou em condições de se tornar uma das figuras da Académica de Coimbra, ao lado de Mário Wilson, Mário Torres, Augusto Rocha ou Bentes.

O telefonema de Helenio Herrera

Jogador de primeira linha da Briosa e estudante de Medicina na Universidade de Coimbra, Jorge Humberto instalou-se numa espécie de Républica: «Rua do Norte, 23. Ao pé de Sé.»

Por lá, no convívio próprio do ambiente estudantil, aparecia muitas vezes um tal de José Afonso. «Eu vivia lá com mais 15 colegas. Ele ia lá umas três ou quatro vezes por semana. Aparecia na altura das refeições, ia lá comer connosco», recorda Jorge Humberto, em conversa com o Maisfutebol.

Foi nessa residência do centro de Coimbra que o avançado da Académica recebeu o telefonema que lhe mudou a vida, no verão de 1961. Do outro lado da linha estava Helenio Herrera, técnico que tinha passado pelo Belenenses em 1957/58, e que em 1960 tinha assumido o comando do Inter de Milão.

Inicialmente, Jorge Humberto até julgou tratar-se de uma brincadeira dos colegas de casa. «Quem havia de acreditar? Telefonou a dizer que queria eu fosse fazer um jogo pelo Inter, na perspetiva de me transferir para lá. Eu virei-me para ele e disse: “Sim senhor, isso pode ser tudo verdade, mas sinceramente eu tenho as minhas dúvidas, pelo que só posso dar uma resposta depois de receber uma confirmação oficial.»

O telegrama não tardou a chegar, nesse mesmo dia, mas Jorge Humberto estava em época de exames.

«Já tinha feito três ou quatro cadeiras, mas faltavam outras duas ou três. Uma delas ia calhar mesmo na altura do jogo. Fui então falar com o meu professor de Patologia Cirúrgica, o Prof. Fernando de Oliveira. Fui a casa dele, imagine, sem aviso. A descontração que um individuo ganha nestas situações. Pedi para ser recebido e a empregada foi falar com a esposa do professor, que veio ter comigo, pois o marido não estava. Falámos no dia seguinte e o professor ficou radiante, mas disse que eu tinha de voltar logo a seguir ao jogo, pois ia acabar a época de exames. Fiquei todo satisfeito, e ficou assim combinado. Ele deu-me um papelinho que me autorizava a fazer aquele exame noutra data.»

A 18 de junho de 1961, Jorge Humberto faz então a estreia pelo Inter, frente ao Spartak Hradec Kralove, da Checoslováquia. O jogo é referente ao Torneio Itália, e o português contribui com três golos para a goleada do Inter (7-1).

«Estava descontraído. Por natureza sou assim, descontraído, por vezes até em excesso. Sentia-me à vontade, o jogo correu muito bem», garante, 62 anos depois.

O Inter venceu depois o River Plate e perdeu a final do torneio para o Santos de Pelé, mas esses jogos já não foram disputados com Jorge Humberto, de regresso a Coimbra, para cumprir os seus deveres de estudante: «Jogar contra o Pelé tinha sido uma glória para mim.»

Inter contrata... Giorgio Raggi

Jorge Humberto regressou com um prémio de jogo de seis contos, quatro vezes mais do que ganhava na Académica, e quando passou no exame de Patologia Cirúrgica já sabia que tinha as portas do Inter abertas. O problema é que o emblema italiano já tinha dois estrangeiros - o espanhol Luis Suárez e o inglês Gerry Hitchens -, e no calcio era esse o limite em campo.

«O Inter procura tornear essa dificuldade por certos meios que, até certos pontos, não são lícitos, e com os quais não concordo. Caso aceitem as minhas condições, terá de ser como estrangeiro. Só assim é que pode ser. Há uma pessoa que terá dito a um jornal italiano que tenho um avô ou uma avó em Florença. Claro que não é verdade. Sou um português completo», já dizia o (então) jogador à RTP, após o regresso a Portugal (veja aqui).

«O Inter já estava habituado aos dois, e a maneira de contornar o problema foi uma mentira: fazer de mim italiano. Custou-me imenso, e esqueci tudo ao sair de lá. Nem gosto de falar do assunto», refere agora, em conversa com o Maisfutebol.

A paternidade incógnita abriu caminho para que um cidadão italiano, Vittorio Raggi, viesse a declarar, sob juramento, que tinha conhecido a mãe de Jorge Humberto em Cabo Verde, e que seria o seu pai.

No meio de tudo isto, Jorge Humberto teve direito a “batismo” em Itália: Giorgio Raggi, nome pelo qual ainda é apresentado nos registos do próprio Inter de Milão.

Após seis golos em oito jogos, o avançado português troca o Inter pelo Lanerossi Vicenza.

«Esses dois anos correram muito bem. Foi de uma certa facilidade. Tirando as equipas principais, como Inter, Milan, Fiorentina e Nápoles…os outros eram mais ou menos todos do mesmo nível. Estivemos sempre bem classificados, ali pelo sexto ou sétimo lugar», recorda.

Nos três anos que passou em Itália, Jorge Humberto nunca deixou de estudar. Primeiro na Universidade de Milão, depois em Pádua, quando mudou de clube.

«Ao fim de dois anos em Vicenza, participei à direção que não estava interessado em continuar, queria voltar para Coimbra. Eles aceitaram muito bem, disseram que depois entrariam em contacto com a Académica para tratar da transferência. Mas, na verdade, esperavam que a Académica pagasse qualquer coisa. Depois chegaram à conclusão que não dava para vender, e deixaram passar, para eu voltar a Coimbra. Foram simpáticos, não contrariam nada», agradece.

De Angola a Cascais, com passagem por Macau, mas sempre com Coimbra no coração

Jorge Humberto volta assim à Académica, em 1964, e nessa segunda etapa partilha o balneário com Vasco Gervásio, Toni, Artur Jorge e os irmãos Campos, Mário e Vítor.

Em 1966, ano em que termina o curso, decide pendurar as chuteiras, com apenas 28 anos, mas não tem a possibilidade de abraçar logo a carreira de médico.

«Tinha a tropa à minha espera. Meteram-me num barco a caminho de Angola. Fui para o leste, uma zona muito difícil para Portugal», recorda.

Curiosamente, o comandante do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) nessa zona era Daniel Chipenda, que foi colega de Jorge Humberto na Académica, já depois de ter jogado no Benfica.

«Antes de lá chegar, existia guerra permanentemente. Enquanto lá estive, só havia barulho de vez em quando. O Chipenda deve ter sido informado de que eu lá estava e evitou chatices comigo. Não tenho provas, mas tenho esse sentimento. Éramos muito próximos, muito amigos. Estivemos juntos na véspera do Chipenda deixar Coimbra e ir para Angola. Ele deu-me a entender qualquer coisa, mas não disse o que era. Foi à porta da casa dele. Nunca mais falámos», explica.

Jorge Humberto só tirou a especialidade, pediatria, em 1976. Dez anos depois de ter terminado a carreira de jogador. Começou a praticar Medicina em Coimbra, claro, mas em 1982 foi convidado a ir para Macau.

«Aceitei devido a uma grande vontade de fazer algo numa instituição que não tinha pediatras. Pensei que seria bom aproveitar essa situação e ir lá fazer qualquer coisa. Não lhe digo nada. Ao lá chegar, comecei a pensar no que tinha feito. A pediatria resumia-se a uma secção do hospital que tinha uma enfermaria, que levava uns 20 doentes, e na qual trabalhava apenas um grupo de enfermeiros. Não havia médico nenhum. Não me arrependo de nada. Fui com um médico de Medicina Interna e um cirurgião. Cada um foi tomar conta da sua área, e no fim todos ficámos satisfeitos com o que fizemos lá», garante.

Sempre acompanhado pela esposa, Maria Marcelina, Jorge Humberto regressou a Portugal há quatro anos. Agora vive na zona de Cascais, mas com o coração apertado por causa da Académica: «Ando muito triste. Não sei se vai sair desta situação…»

Já homenageado pela Briosa, Jorge Humberto tornou-se uma lenda em Coimbra. A prova disso é que, entre os esforços para chegar ao seu contacto, surgiu um contacto que seria do próprio.

«Estou a falar com o Dr. Jorge Humberto, que jogou na Académica?», pergunta-se do lado de cá.

«Na verdade, não. Mas também sou Dr. Jorge Humberto, de Coimbra, e tenho esse nome por causa do Jorge Humberto da Académica, precisamente», responde.