José Rachão, 65 anos. Veteraníssimo nestas andanças. O mais antigo entre os antigos que andam pelos campeonatos nacionais. «Você tem noção de que está a chamar-me velho?!», dispara no primeiro contacto telefónico uns dias antes da entrevista que teve lugar num bar que foi dele durante 20 anos no Montijo, cidade da margem sul de Lisboa onde assentou arraiais há mais de quatro décadas.

Durante cerca de horas de conversa passou em revista uma vida dedicada ao futebol.

Desde que deixou Peniche para assinar pelo Benfica ainda na adolescência, passando pela Taça de Portugal ganha pelo V. Setúbal – «um filme de terror» - à decisão de emigrar pela primeira vez já depois dos 50 anos e de que forma acompanhou a evolução do futebol nas últimas décadas num futebol que diz estar cada vez mais formatado.

«Não me admirava que daqui a 15 ou 20 anos tenhamos o treinador e o jogador robô, que é comprado na América e mete-se uma moeda com a tática», ironiza.

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Parar é morrer?

A idade não conta muito para mim. Tenho a idade que tenho, mas já vivi muito. Já treinei muitos clubes, apanhei muitos dirigentes, jogadores, árbitros e jornalistas. Já apanhei de tudo no futebol. Mas há uma coisa que é fundamental na vida: fazer aquilo de que se gosta. E eu continuo a fazê-lo.

Desde muito cedo. Os registos ligam-no à formação do Benfica.

A minha vida sempre foi o futebol. Respiro futebol. Com 14 para 15 anos arranquei de casa com uma malita vim viver para Lisboa. Pagavam-me os estudos, a alimentação e ainda tiveram de pagar 50 contos pela minha carta ao clube da minha terra.

Peniche.

A terra e o clube do meu coração. Há mais, mas este é de origem, da minha essência.

Veio sozinho para Lisboa?

Vim sozinho. O meu pai não quis vir e até me chamou maluco. E ele era um homem do futebol, dirigente do Peniche. Apareceu passado umas horas e encontrou-me na secretaria do Benfica a assinar. Fiz tudo sozinho.

Com 14 anos arranquei de casa com uma malita. O meu pai chamou-me louco»

Como surgiu o interesse do Benfica?

Foi através de um observador do Benfica que jogava no Peniche, chamado Joaquim Charouco. Foi ele que disse para observarem um talento que era eu. Agora as coisas fazem-se de outra maneira: vai-se lá, tira-se um vídeo, vai-se outra vez…

À esquerda na foto, juntamente com outros elementos dos juniores do Benfica

Disse que o seu pai lhe chamou louco. Mas ele teve de aprovar a sua vinda para Lisboa, certo? Não lhe cortou as asas.

Sim. Ele aprovou, mas não queria que eu fosse para o Benfica. Era um desafio difícil numa equipa que tinha sido campeã europeia e que tinha grandes jogadores. Ele perguntava-me o que é que eu vinha fazer para o Benfica. O meu pai era fantástico, mas tinha medo que eu falhasse e que apanhasse uma grande desilusão. Respondi-lhe: ‘Oh pai, vou!’ Ainda por cima eu já torcia pelo Benfica desde pequenino. Era o clube que ganhava tudo e 90 por cento dos miúdos daquela altura eram do Benfica.

Ficou no Benfica até quando?

Até aos 19 anos. Vivi no Lar do Benfica quase dois anos. Convivi com grandes jogadores. Eusébio, Nené, Jordão, com esses jogadores todos. E depois joguei contra eles muitas vezes.

Tem muitas histórias com eles?

[risos] Isso dava para fazer um livro. No lar do Benfica então…

Houve jogadores da sua geração que foram aproveitados para a equipa principal?

Se houve jogadores? Para aí uns dez! Oh oh… O João Alves, o Jordão, o Fidalgo, o Bastos Lopes, o Shéu, o Eurico. Tínhamos uma grande equipa. Curiosamente, perdemos a final do campeonato nacional de juniores para o FC Porto, que também tinha uma grande equipa: o Oliveira, o Rodolfo…

O José jogava a médio?

Sim. Era um médio mais ofensivo. Mas depois o Manuel de Oliveira, que me treinou no Portimonense, começou a acabar um bocadinho com a minha carreira [risos]. Eu gostava de jogar a dez, mas depois ele via-me como número oito e como seis. Comecei a andar para trás e a ver que qualquer dia ia para guarda-redes… Mas eu era médio: um médio criativo.

Mas nesses tempos do Benfica alguma vez acreditou que podia chegar à equipa principal?

Vou-lhe contar uma história! Estive num grupo de nove jogadores que subiram dos juniores para a equipa principal. Ainda estive no Benfica até setembro de 71. Na altura, o treinador era o Jimmy Hagan. Havia tantos jogadores bons, que de um lado do meio-campo estava o Vítor Martins e o Toni, e do outro lado o Shéu e o João Alves. E eu ficava de fora com mais dois ou três a bater palmas. Um dia perguntei o que é que eu estava ali a fazer. Não treinava, não jogava… O que eu queria era jogar à bola.

Nunca soube gerir muito bem a minha carreira»

O que fez?

Nunca mais me esqueço. Fui à sede do Benfica, que era no Jardim do Regedor [Restauradores, Lisboa], falei com dois dirigentes e disse que não queria estar ali parado. E voltei às origens. Ao Peniche, que estava na II divisão. Joguei um ano lá, fizemos um excelente campeonato e tive muitos clubes atrás de mim: o Atlético, que estava na I divisão, o União de Coimbra, o Beira-Mar, o Sp. Braga, que estava na II divisão, e o Montijo.

No juniores do Benfica, onde jogou ao lado de futuras glórias do clube

E escolheu o Montijo.

Estava mais perto de casa. Fiquei aqui. Hoje é a minha segunda cidade. Vivo aqui há quarenta e muitos anos. As minhas filhas são daqui, a minha mulher é daqui e os meus netos são daqui. Esta terra está no meu coração.

Eu tinha um aspeto peculiar no futebol. Basta olhar para os meus cromos»

Que balanço faz da sua carreira como jogador?

Acho que podia ter ido mais longe. Eu nunca soube gerir muito bem a minha carreira. Alguns colegas dizem-me que eu podia ter ido mais longe. ‘Tu deste um pontapé na tua vida’.

Quando não se contentou em ficar do lado de fora a ver aquele treino do Benfica?

Esse foi um pontapé e houve muitos mais. Sempre geri um bocadinho mal a minha carreira. Quer enquanto jogador, quer enquanto treinador. Mas também há outra coisa: eu tinha um aspeto peculiar no futebol. Basta olhar para os meus cromos. Via-se logo que eu era um bocadinho diferente, um bocado avançado. Sempre tive uma mentalidade um bocadinho à frente. Quem olhava para mim, dizia que eu não podia ser um bom jogador, porque era diferente de todos os outros.

Era diferente como? Refere-se ao cabelo grande e à barba?

A isso tudo. Só depois é que veio a moda das barbas. Mas, no fundo, eu não era nada daquilo que aparentava. Eu gostava de ver e de observar, fazia bom ambiente no balneário e tinha liderança. Tanto que fui capitão de equipa no Benfica e na maioria das outras equipas por onde passei.

Nos tempos da Académica, clube que representou em 1976/77. Tenho pena de não ter ficado mais tempo para ir concluir os estudos

Porque é que diz que geriu mal a carreira?

Porque gosto tanto de jogar e de treinar que não consigo estar parado. Se o Freixo de Espada à Cinta me convidasse para ir treiná-los, eu ia. Quero dizer: não ia para a distrital, porque não tenho mentalidade para isso. Fui profissional toda a vida. Desde os 15 anos que comecei a ganhar dinheiro. Mas para um projeto assim ia. E eu estou ligado ao Recreio de Águeda. Treinei aquele clube duas vezes no passado. Facto curioso é que as pessoas que me convidaram são filhas de alguns dirigentes que apanhei no passado.

Não recusou muitas propostas ao longo da carreira?

Eu normalmente aceitava tudo. Não sabia regular a minha carreira, nem como jogador nem como treinador. Era o bicho.

Começou a carreira de treinador muito cedo, em 1983. Tinha 30 anos.

No Leixões. Foi o final da minha carreira de jogador e o começo de uma carreira como treinador. Quando substituíram o treinador, o presidente escolheu-me a mim para liderar a equipa.

O Pedroto disse-me: ‘Oh miúdo, mas tu queres mesmo ser treinador?’ Eu disse-lhe que era isso que eu queria. Por isso é que tinha tirado o curso. E ele disse-me para ir em frente»

Como surgiu essa oportunidade?

Até parece uma anedota. Tinham despedido o treinador e ligaram-me para passar na sede com urgência. Eu estava em casa e disse à minha mulher: ‘Prepara-te, faz as malas, porque os jogadores que chegaram com o treinador devem ir todos embora’. E o presidente, o senhor Ricardo Peixinho, disse-me que queriam que eu fosse o treinador até ao fim da época. Faltavam uns sete meses.

Não estava à espera…

Olhei e disse-lhes: ‘Não vamos brincar com coisas sérias, está?’ Mas eles insistiram. O mais engraçado é que tinham sido os jogadores que me tinham escolhido. Disseram que não era preciso treinador.

À direita de Eusébio antes de um Montijo-Benfica em 1972. Avançado dos encarnados marcou o único golo do jogo

E sentia-se preparado para isso?

Eu tinha tirado o curso de treinador com 26 anos, quando era treinador do Académico Viseu. Lá está: eu andava à frente. Fui ao balneário, falei com os jogadores e eles deram-me força. Perguntaram-me se eu não tinha coragem e eu disse que sim. E marquei logo uma posição: pendurei as botas de imediato. Não podia jogar e treinar ao mesmo tempo. Arrisquei num tempo em que havia uma geração forte de treinadores: José Maria Pedroto, Mário Wilson, Quinito, Manuel José, Joaquim Meirim, Juca. Era uma geração potente. Não havia lugar para miúdos! Agora está na moda. Se fracassasse, era o meu fim: já não era jogador nem treinador.

Mas aconselhou-se?

Aconselhei-me. Uma das pessoas com quem falei foi José Maria Pedroto, o top dos treinadores portugueses. Conversei com ele e expliquei-lhe a situação antes de aceitar. Ainda me lembro onde foi: no Brasília Club [discoteca do Porto]. Ele olhou para mim desconfiado e disse: ‘Oh miúdo, mas tu queres mesmo ser treinador?’ Eu disse-lhe que era isso que eu queria. Por isso é que tinha tirado o curso. E ele disse-me para ir em frente.

Isso vindo de alguém como o Pedroto…

Deu-me logo outra confiança. Mas também falei em casa com a minha mulher. Disse-me sempre que não, que ia ser o meu fim [risos]. Fui contra a minha mulher e arrisquei.

Quem foi o treinador que mais o influenciou?

O meu ídolo como treinador chama-se Quinito. Não sei se foi bom treinador, mau treinador, se era desleixado ou não. Tinha o estilo de que eu gosto!

Mas nunca foi treinado por ele…

Não. Éramos colegas e trabalhei com ele no Vitória [de Setúbal]. Ele como diretor desportivo e eu como treinador. Tenho uma paixão por ele. O futebol português devia ter um bocadinho mais… olhe, nem quero falar nisso. Era um grande homem, um grande treinador e um virtuoso. Quando falávamos os dois sobre futebol tínhamos 200 histórias cada um. Eu, o Quinito e talvez o Manuel Cajuda devemos ter sido os treinadores que andaram mais tempo pelo norte. E o povo do norte não aceita facilmente qualquer treinador ou jogador: é muito exigente. Eu trabalhei no norte como um benfiquista declarado e sempre fui muito respeitado pelo FC Porto. Acredito que pode haver paz no futebol.

Tenho um amigo que me chamava Poulidor. Sabe quem era o Poulidor?»

Enquanto treinador andou quase sempre por divisões secundárias e só duas vezes treinou na Liga: o Fafe, em 1988/89, e o V. Setúbal, em 2005. Concorda que é pouco?

Para o meu valor como treinador? É pouquíssimo! E mais: tive êxito nas duas vezes. O que me fizeram em Fafe não esteve certo. Deus não dorme. O que aconteceu ao Fafe depois de ter subido comigo à I Divisão? Caiu depois de eu ter sido substituído a meio da primeira volta. Fizemos uma equipa muito à pressa, tínhamos os nossos problemas, mas jogávamos bom futebol.

Mas o que acha que lhe faltou para consolidar uma carreira na I divisão?

Faltou-me também outra coisa. Sorte. Eu tenho um amigo que me chamava Poulidor. Sabe quem era o Poulidor?

O ciclista que «morria» sempre na praia.

Ficava sempre em segundo. O Vítor Oliveira é um campeão: já subiu à primeira muitas vezes. Agora veja quantas vezes eu falhei a subida em cima da meta? Foi com o Viseu, com a Académica, com o Leixões, foi um ano no Barreirense. Perdi umas seis subidas para a I divisão.

O erguer da Taça de Portugal em 2005. Foi a última conquista dos sadinos no Jamor

Em 2005 vai substituir José Couceiro no V. Setúbal depois de começar a época no Torreense. Ficou surpreendido pelo convite?

Fiquei. Estava em primeiro lugar com o Torreense no Campeonato Nacional [II divisão B]. Resolvemos as coisas rápido: eu, o Quinito e o presidente. O contrato foi fácil de discutir e tinha uma cláusula para a Taça de Portugal. Disseram-me para meter lá os valores que quisesse para ganhar a Taça. Por acaso metemos um número insignificante. Ninguém acreditava que ganhássemos a Taça de Portugal, mas o certo é que ganhámos. Foi um ano muito duro.

Quando assinou pelo Vitória não sabia que era um treinador a prazo?

Não, não. Pensava em dar o meu melhor e que, se ganhasse uma taça e fosse à Europa [interrompe] … Conto-lhe mais: à uma da manhã de sábado para domingo ainda estávamos em reunião para falar de ordenados em atraso, prémio e tudo. Estava uma grande confusão.

E o que recorda dessa final ganha ao Benfica?

Na antevisão do jogo disse que íamos ganhar. Estava mesmo convicto disso e disse-o na antevisão do jogo. Sabia a equipa que tinha e preparámo-nos. Mas não fui só eu: fomos todos. E com muitos problemas financeiros dentro da equipa.

No Najran SC, clube da Arábia Saudita que treinou em 2010/11

A conquista dessa Taça de Portugal em 2005 é o ponto mais alto da sua carreira como treinador?

Ganhei vários títulos lá fora, mas ganhar um na terra da minha mãe, num clube onde joguei, na capital do distrito das minhas filhas, do meu neto e da minha mulher tem um sabor especial. E ainda por cima ganhar ao Benfica. É a mesma coisa que jogares às damas com o teu pai e ganhares. Quando eu era pequenino, gostava muito de jogar dominó com o meu pai e ganhar-lhe. Foi o momento grande da minha carreira. Tenho pena que não tenha tido continuidade…

Esperava que a Taça lhe permitisse continuar como treinador no V. Setúbal e não ir para outras funções? Para a equipa B, como era público?

Isso depois é um filme. Mas um filme de terror. Nem me deixaram saborear a taça, mas isso não é para contar agora. Quando eu tive sucesso e fiz coisas muito boas, não me deixaram dar continuidade. Sempre vivi de espinha direita e nunca me deixei manipular. Provavelmente devia ter reagido de outra maneira, mas fui sempre um bom sofredor. Nunca gostei de guerras na praça pública.

Fui jogador do Vitória, dei o máximo por aquele clube, servi-o da melhor forma e chorei lágrimas de sangue. Consegui muitas coisas pelo Vitória. O que era preciso fazer mais?»

Sente que essa postura de integridade o prejudicou mais do que beneficiou?

Claro que sim! Entras em dezembro, pegas numa equipa e consegues levá-la à Europa e ganhar uma taça quase 40 anos depois? Sou a única pessoa viva como treinador que ganhou uma Taça de Portugal como treinador do Vitória. Sou eu e era Fernando Vaz, que foi meu treinador e ganhou duas. Tenho muitas coisas que me ligam à cidade de Setúbal. A minha mãe é de Setúbal. Eu ia passar férias em pequenino a Setúbal a casa da minha avó. Nasci a 15 de setembro, o dia em que nasceu o Bocage. Fui jogador do Vitória, dei o máximo por aquele clube, servi-o da melhor forma e chorei lágrimas de sangue. Consegui muitas coisas pelo Vitória. O que era preciso fazer mais? Depois fui para o estrangeiro. Estive lá fora 12 anos.

Saiu desiludido de Portugal?

Não. O meu país é o meu país. Não misturo as coisas. Não saí desiludido nem revoltado. Devo tudo ao futebol.

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