«O rio Trent é lindo. Eu sei, porque caminhei sobre ele nos últimos 18 anos»
(Brian Clough)

Foi há dez anos, mas parecem muito mais. A 20 de setembro de 2004, derrotado por um cancro no estômago, e por uma vida de excessos etílicos que o tinham obrigado a submeter-se a um transplante de fígado um ano antes, Brian Clough fechava os olhos pela última vez, com 69 anos. Uma era do futebol inglês chegava ao fim naquele quarto do Royal Derby Hospital. A morte do homem que tinha pegado, por duas vezes, em clubes modestos das East Middlands, na II divisão, para fazer deles campeões ingleses e levá-los ao topo da Europa, assinalou também,no início da era Glazer-Abramovich, o fim da mera possibilidade de isso voltar a acontecer no futebol do século XXI.



Como boa parte dos técnicos de sucesso – basta pensar em Van Gaal, Mourinho, Eriksson, Benitez, Wenger... - Brian Clough transformou as frustrações de uma carreira de jogador aquém do desejado em combustível para uma ambição sem limites no percurso de treinador. Goleador de grande eficácia, Clough ainda jogou duas vezes pela seleção inglesa, mesmo alinhando no secundário Middlesbrough. Mas, já no Sunderland, uma rotura de ligamentos no joelho acabou-lhe com os sonhos, aos 26 anos, e obrigou-o a pendurar as botas, definitivamente, aos 29.

Clough transpôs a personalidade forte e a vontade de vencer para a carreira de técnico, ao lado de Peter Taylor, um ex-guarda-redes com olho clínico para avaliar jogadores e com um temperamento apaziguador. O perfil ideal para gerir as tensões criadas no balneário pelo temperamento explosivo de Clough e para lhe indicar bons negócios no mercado de transferências antes da concorrência. Juntos, formaram a dupla sensação do futebol inglês entre 1965 e 1982, ano em que a ligação profissional e a amizade se transformaram em separação e ressentimento.



Foi já com Taylor a seu lado que o toque de Midas de Brian Clough começou a ser falado: em 1969 arrancou o Derby County às garras da II divisão com uma base de jogadores que, apenas três anos depois, conquistaria o primeiro título de campeão na história do clube. Na época seguinte, Clough provou pela primeira vez as delícias das noites europeias, eliminando o Benfica pelo caminho:



Acabou por cair, porém, numa polémica meia-final com a Juventus, depois de o árbitro português Francisco Lobo ter denunciado uma tentativa de aliciamento por parte dos italianos. Nunca lhes perdoou: passou a referir-se sistematicamente às equipas do calcio como «batoteiros», prometendo - e cumprindo - desforrar-se nas provas europeias.

Clough tinha então apenas 37 anos, e a fama de fazedor de milagres era acompanhada por um carisma à prova de bala: bem parecido, esperto, provocador, foi o primeiro a utilizar os media como arma estratégica na sua relação com jogadores, dirigentes e adeptos. Por vezes ia longe de mais, como aconteceu no braço de ferro com a direção do Derby County, pouco depois do título. Adorado por adeptos e jogadores, Clough acreditou que o esticar da corda não teria limites para ele. Enganou-se, acabando despedido em 1974, e nem o sentido prático de Peter Taylor o ajudou a sair do labirinto em que se tinha metido.

A relação fraternal com Taylor é uma das muitas dimensões romanescas que pontuam a vida e a carreira de Clough. E é, no fundo, o tema forte do livro mais famoso de entre os vários a que deu origem: «Damned United», de David Peace, que ficciona, entrando na cabeça de Clough, os 44 dias que passou, em 1974, à frente do Leeds United, até a sucessão de conflitos mantidos com os jogadores e a direção o empurrarem de Elland Road pela porta pequena.

O Leeds, até aí treinado pelo seu inimigo figadal, Don Revie, era o alvo das suas críticas mais violentas, com os jogadores à cabeça. Uma animosidade que fica bem patente nesta entrevista conjunta dos dois treinadores, que, aos poucos, se transforma num debate. Uma espécie de Kennedy-Nixon em versão inglesa para os amantes do futebol:



Sem Peter Taylor, sozinho contra todos, num ambiente cada vez mais hostil, Clough não foi capaz de evitar em Leeds o maior fiasco da sua carreira. Como só as grandes personalidades são capazes, usou-o como pedra fundadora da glória suprema.

O xerife de Nottingham

O banho de humildade ajudou Clough a moderar o tom das presenças públicas e das entrevistas. Em Nottingham, na II divisão, Clough encontra as condições para fazer um segundo milagre, ainda maior do que o de Derby. Ganha com o Forest o título da divisão secundária, em 1977, e faz ligação direta com o título de campeão inglês no ano seguinte, primeiro e único na história do clube. Junta-lhe duas Taças da Liga e tem a Inglaterra a seus pés. Não chega: segue-se a Europa. O jackpot vem em 1979, com a conquista da primeira de duas Taças dos Campeões Europeus consecutivas – que fazem do Nottingham Forest o único clube europeu com mais títulos continentais do que nacionais.

Génio, egocêntrico, Clough solta o provocador que há em si e inicia um período dourado na relação com os «media». Datam dessa altura algumas das suas frases mais irónicas e carismáticas:

«Dizem que Roma não foi feita num dia, mas também não me escolheram para esse trabalho»

«Se tenho uma divergência com um jogador, discutimos as coisas durante 20 minutos e depois concluímos que eu tinha razão»

«Quando eu morrer, Deus terá de ceder-me a sua cadeira favorita»


Mas o fim da relação com Peter Taylor e o início dos problemas de alcoolismo aceleram o declínio: Clough atinge o zénite em 1980, aos 45 anos, e nunca mais recupera o toque de Midas. Reconstrói a equipa em várias ocasiões, volta a passar perto da glória europeia, mas o Anderlecht elimina-o na meia-final da Taça UEFA de 1983 - volta a provar-se, mais tarde, que com a cumplicidade do árbitro espanhol Guruceta Muro, aliciado pelo presidente dos belgas, Constant Vanden Stock.

Analista brilhante, Clough não volta a reencontrar-se com os títulos, mas é capaz de pôr a opinião pública do seu lado como poucos, ou nenhum. Ainda acalenta o sonho de treinar a seleção inglesa, algo incompatível com a solenidade dos responsáveis da federação, que o relegam sempre para segunda escolha. E cumpre os últimos 12 anos a tentar reconduzir o Nottingham Forest a uma glória cada vez mais longínqua.

É no declínio da carreira que se percebe mais facilmente a gigantesca máquina de contradições chamada Brian Clough. Um socialista com firmes raízes na classe operária – duas vezes convidado para cargos políticos no Partido Trabalhista de Harold Wilson - que se comportava como um monarca absolutista na gestão do poder. Um génio individualista, que perdia 50 por cento dos poderes assim que o amigo e conselheiro de uma vida lhe virava costas. Um firme defensor da ética e do fair-play, que nos últimos anos da carreira se vê investigado pela FA por envolvimento em esquemas e comissões nas transferências. Um motivador, capaz de dar asas a jovens talentos - mas também de levar às lágrimas, com um enxovalho na cabina, os egos mais desenvolvidos, como o de um jovem Roy Keane, em 1991

Uma personalidade bigger than life, enfim, cujo carisma resiste à decadência e ao discreto fim da carreira, em 1993, quando o Forest, após 18 anos inesquecíveis sob o seu comando, volta a cair na segunda divisão.

Clough nunca mais volta a treinar. Sente-se a amargura nas entrevistas que dá e nos artigos de opinião – muitas vezes brilhantes – que continua a escrever. Volta para si próprio a ironia e define-se assim: «Não direi que fui o melhor treinador de todos, mas estava seguramente no top-1». E, no mesmo tom, quando lhe perguntam qual foi o maior erro da carreira, o desabafo: «Dizer a toda a gente e mais ao cão como eu era o melhor treinador. Eu sei que era, mas devia ter ficado calado para afastar a pressão. Eles teriam acabado por perceber sozinhos». Não espanta que no verão de 2004, num dos últimos artigos que escreveu, já doente, tenha sentido alguma afinidade com um recém-chegado à Premier League, José Mourinho de seu nome. «Vejo nele algo do jovem Clough. Para começar, tem bom aspecto. Depois, como eu, não acredita no star-sytem à volta dos jogadores». Mas não resiste a uma punchline, bem à Clough: «Eu era mais bonito, claro».

Não falta mitologia para prolongar a lenda de Brian Clough. A começar pelas estátuas que recordam o jogador – em Middlesbrough, sua terra natal – e o treinador – no centro de Nottingham, financiada pelos adeptos. O carisma, o sentido de humor agressivo e a autoconfiança a roçar a insolência fizeram-no alvo de diversos livros, invariavelmente interessantes: além do já citado «Damned United», também ajudam a perceber o fascínio por detrás da história títulos como «Provided You Don't Kiss Me», de Duncan Hamilton, e a autobiografia «Walking on Water» - algo que ele dizia ter feito regularmente, por cima do rio Trent, que banha as cidades de Nottingham e Derby.

Depois há o filme, claro:



E também o maravilhoso acervo de entrevistas e participações televisivivas que pode ser consultado aqui.

Em entrevista à BBC na última sexta-feira, o filho do meio, Nigel, antigo avançado, ex-internacional e treinador, como o pai, confirmava sem meias palavras – é genético – que Clough é hoje uma referência de um passado que não volta: «Ele continuaria a ter sucesso, mas seria por certo um homem chocado e indignado com o futebol atual», afirmou o atual treinador do Sheffield United. «Há uma quantidade obscena de dinheiro envolvida no jogo, mas a gota de água para ele seria presença de tantos agentes e empresários envolvidos na gestão dos clubes», admitiu.

Foi só há dez anos, mas o futebol onde Clough reinou já tinha acabado muito antes. Um futebol onde a mobilidade social dos clubes ainda parecia possível, sem jackpots do petróleo russo ou das Arábias. Parece cada vez mais improvável que qualquer um dos dois possa voltar.