«Liga a pulso» é um espaço do Maisfutebol com relatos na primeira pessoa de jogadores que chegaram ao principal escalão do futebol português depois de terem passado por clubes semiprofissionais e/ou amadores. São histórias de vida de quem nunca desistiu de um sonho mesmo quando as portas pareciam fechar-se. (sugestões para david.j.marques@gmail.com)

João Talocha, 27 anos (lateral do Boavista)

«O meu pai foi jogador. Era lateral direito e esteve no Famalicão durante os anos de glória do clube na década de 90 quando estava na I Liga.

Foi lá que eu comecei a jogar, no último ano de escolinhas. Fiz toda a formação e depois passei para os seniores. Quando estava no 12.º ano apanhei a equipa numa fase crítica, com maus resultados e ordenados em atraso.

Foi um choque olhar para o plantel e ver lá pessoal que já tinha passado pela I Liga a viver situações complicadas. Gente com família, filhos, a precisar de dinheiro... O meu pai sempre me disse que a carreira de futebolista é boa mas acaba cedo e que depois é preciso fazer-se alguma coisa.

Meti na cabeça desde cedo que depois de acabar o 12.º ano queria tirar um curso superior. Nunca pensei em deixar de estudar para me dedicar só ao futebol mas, se calhar, aquele choque de ver jogadores em dificuldades fez-me olhar de outra forma para a realidade.

Como futebolista, fazia sentido tirar alguma coisa relacionada com desporto, mas sempre disse que gostava de tirar engenharia. Com 18 anos entrei em Engenharia Mecânica, uma área que tinha tudo o que eu gostava. Não era fácil conciliar os estudos com os treinos mas fazia-se. Passei sempre e só não fiz uma cadeira à primeira.

No ano em que acabei o curso, o Famalicão subiu para a II divisão Zona Norte e optou por treinar de dia. Resolvi descansar um bocado daqueles anos na universidade em que andei a correr de um lado para o outro de segunda à sexta. Durante esse ano tirei um curso ou outro mas resolvi dedicar-me praticamente só ao futebol.

Nos tempos do Vizela (foto cedida pelo jogador)

No final dessa época comecei a trabalhar. Como era impossível conciliar um emprego com o futebol, acabei por sair para o Vizela, onde os treinos eram à noite.

Trabalhei três anos como engenheiro mecânico numa empresa de Famalicão. Entrava às 6 da manhã e trabalhava até às duas da tarde para ficar com alguma margem entre trabalho e treino.

Chegava a casa às 21h30 e deitava-me por volta das 23h30. No dia seguinte estava de pé às 5 e 30 da manhã. A parti de quarta-feira já sentia o cansaço no corpo, mas aproveitava o sábado à tarde para descansar para os jogos, que eram sempre ao domingo.

Fiquei três anos no Vizela. Durante esse período cheguei a receber propostas de clubes da II Liga. Recusei-as porque seria obrigado a deixar o emprego e não me compensava. Podia passar a viver só do futebol, mas ficava a perder dinheiro.

Percurso no futebol sénior

2008-2013: Famalicão

2013-2016: Vizela

2016- …: Boavista

Até que este ano, numa sexta-feira, recebi um telefonema de uma pessoa ligada ao scouting do Boavista depois de uma época em que subi com o Vizela à II Liga. Perguntou-me se eu estava interessado em transferir-me para lá e quais eram as minhas condições.

Disse ao meu patrão que tinha uma proposta do Boavista e que tinha de deixar o emprego. Ele reagiu muito bem: disse-me para aproveitar a oportunidade e que tinha as portas abertas quando deixasse o futebol.

Não posso negar que fiquei surpreendido pelo convite. Não esperava dar um salto tão grande, de um Campeonato de Portugal para a primeira. Apesar de ainda ter o sonho e de acreditar que um dia seria possível chegar à I Liga, estava prestes a fazer 27 anos…

No dia em que assinei contrato pelo Boavista percebi que tinha começado uma nova vida e que tinha de agarrar-me a ela com unhas e dentes.

Uma vida diferente. A nível de treinos, de condições... Nos jogos, a Liga exige muito mais empenho, concentração e o ritmo é completamente diferente: temos de pensar mais vezes e mais rápido. As primeiras semanas foram um choque em relação ao que estava habituado. Passei a treinar de manhã e de tarde. Às vezes é puxado mas o corpo habitua-se.

Não sabia quando ia ser chamado, mas tinha a certeza que no dia em que fosse a jogo tinha de estar preparado para isso. Felizmente, essa oportunidade chegou logo na 1.ª jornada contra o Arouca em casa.

Antes do apito inicial passa-nos tudo pela cabeça. O que sofremos e batalhámos até chegarmos ali. Aquele nervoso miudinho, o tocar na bola pela primeira vez, o primeiro corte. Depois disso ficamos mais tranquilos. Acho que estive suficientemente concentrado para ter uma boa estreia e ganhámos.

Até agora só falhei um jogo para o campeonato e fui titular em todos os outros.

Há uns meses sentia que o tempo estava a avançar e que as portas da I Liga começavam a fechar-se aos poucos. Agora consigo finalmente viver do futebol. O sonho chegou finalmente. Agora é trabalhar no limite, desfrutar, continuar o caminho porque, com trabalho, tudo é possível.»

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