Aquele «RB» que antecede o nome de Leipzig podia muito bem ser de «Rebelde». Mas estamos na Alemanha.

RB Leipzig. Todos associam o «RB» a «Red Bull», mas formalmente significa «RasenBallsport» - «Desportos de relva». Porque estamos na Alemanha.

E na Alemanha há uma coisa muito importante no que diz respeito ao futebol: a tradição.

Só que tradição é coisa que o RB Leipzig não tem. Aliás, tradicional é tudo o que o RB Leipzig não é. E isso não tem só que ver com a data da fundação: 2009.

Foi esse o ano em que o austríaco Dietrich Mateschitz, dono da empresa proprietária da Red Bull, comprou um modesto clube sediado em Leipzig, chamado SSV Markranstädt.

Dietrich Mateschitz, o homem que idealizou e concretizou o projeto do RB Leipzig

Dado esse passo, o seguinte passou por apagar tudo o que dizia respeito ao Markranstädt e renascer sob o nome de RB Leipzig, com um novo símbolo e novas cores.

Mas se essa postura já podia ser questionável, o que confirmaria o estatuto de rebelde viria depois.

Mateschitz tinha ideias bem claras para dar asas à sua nova aquisição. E a primeira passava, obviamente, por trazer a Red Bull para o nome do clube.

O problema? A lei.

Na Alemanha não é permitido ter nomes de patrocinadores na nomenclatura dos clubes. Mas se isso deu para contornar com o tal «RasenBallsport» que só o é no papel, mais difícil seria dar a volta à lei dos «50+1»: a obrigação de os clubes pertencerem maioritariamente aos sócios e não a um investidor.

Ora, sem sócios e com muito pouca vontade de entregar as decisões a quem quer que fosse, Mateschitz recorreu a… gestores da Red Bull, pois claro. E para não haver gente com ideias, o preço colocado para ser sócio do clube foi de 1.000 euros (!!) por ano, o que justifica que em 2018, já depois de ter sido vice-campeão alemão, o RB Leipzig continuasse a ter apenas 700 sócios.

Porém, aquilo que interessava a quem investiu estava conseguido.

Arrumadas as burocracias, o RB Leipzig pôde entrar em campo. Fê-lo pelo fundo, claro, mas com armas impossíveis de contrariar.

«Deu logo para ver que o RB Leipzig ia dar certo»

Para perceber melhor como foi o nascimento do projeto do primeiro adversário do Benfica na edição deste ano da Liga dos Campeões, o Maisfutebol foi falar com um jogador que viveu por dentro as primeiras quatro épocas do RB Leipzig: o brasileiro Thiago Rockenbach.

A opção do médio torna clara a força com que o Leipzig entrou no jogo.

«Eu estava no Fortuna Dusseldorf, na II liga da Alemanha, mas não hesitei em aceitar o projeto que me foi apresentado. Porquê? Desde logo, porque financeiramente a proposta era algo que nunca tinha visto.»

Sim, é de valores que Rockenbach fala quando se refere a «algo que nunca tinha visto.»

«Aquilo que nos ofereciam era melhor do que clubes da II liga podiam oferecer e até melhor do que algumas equipas da Bundesliga davam», assegura.

A ambição, por isso, foi passada desde logo para os jogadores que foram fundar o clube. E a meta estava traçada desde então.

«O senhor Mateschitz sempre deixou claro para todos que queria chegar à Champions. Mais, ele disse logo que sabia que o clube ia conseguir.»

Os sinais eram claros, assume Thiago, então com 26 anos. «Deu logo para perceber que ia dar certo. Além da oferta financeira, explicaram-nos que o clube estava a trabalhar para ter um centro de treinos e infraestruturas de topo, como viria a ter», revela, em conversa telefónica.

Thiago Rockenbach quando vestia as cores do RB Leipzig (foto cedida pelo jogador)

«Vivíamos episódios de ódio sempre que jogávamos fora»

O RB Leipzig iniciou a caminhada triunfal no quinto escalão do futebol alemão, mas logo na primeira época de existência alcançou a subida à IV divisão.

O mais difícil, veio depois. Só à terceira tentativa o clube conseguiu ascender ao terceiro escalão, o que Thiago justifica com o formato da competição, com playoffs. «Essa fase foi muito complicada, mas depois que conseguimos, foi sempre a subir, ano após ano», relata.

Quando o ainda jogador relata que essa subida foi «o mais difícil» refere-se apenas a futebol jogado. Porque se olhar para aquilo que se passava fora de campo sempre que a equipa jogava fora, há muito mais para contar.

«Desde o início, o clube foi muito odiado por todos. Porque era um clube sem tradição, algo muito importante na Alemanha. O RB Leipzig era um clube comercial, que ganhou o seu espaço porque teve um grande investidor», reforça o brasileiro.

Thiago Rockenbach já não viveu o episódio em que os adeptos do Dresden atiraram cabeças de touro para o relvado. Também não estava lá quando os do Union Berlim ficaram 15 minutos em silêncio em protesto contra os gastos do RB Leipzig. Tão pouco assistiu ao jogo em que os fãs do Hoffenheim reclamaram numa faixa a devolução do estatuto de «clube mais odiado da Alemanha». E outros. Episódios que sucederam, um após outro.

Em Dortmund, o «Muro amarelo», popular bancada do Borussía encheu-se de faixas de repulsa dirigidas do RB Leipzig

Mas viveu outros incidentes negativos. «Sempre que jogávamos fora, havia episódios de ódio. Foram muitos. Desde atirarem cerveja para cima de nós jogadores, cuspirem-nos e houve até um mais grave, na cidade de Jena. As pessoas não aceitavam a existência do RB Leipzig e quando fomos jogar contra o Carls Zeiss Jena, o nosso autocarro foi apedrejado. Aí foi grave, porque os vidros caíram em cima dos jogadores e muitos ficaram feridos», recorda.

Apesar disso, dos anos em Leipzig, o jogador guarda também «muito boas memórias», como a da tal subida à III divisão, mas também a do dia em que todo o país ficou a saber que havia um clube recentemente nascido a querer chegar ao topo.

Recuemos a julho de 2011. Jogava-se a primeira eliminatória da Taça da Alemanha e o todo-poderoso Wolfsburgo iria cair aos pés do RB Leipzig, por 3-2.

«Esse é um dos jogos mais marcantes da minha carreira. O RB Leipzig ainda era um clube desconhecido e aquele jogo deu um sinal do que aí vinha. Jogámos contra um clube milionário, que tem a Volkswagen por trás, e mostrámos a todos que o nosso projeto não era para levar a sério, porque não estava ali para brincar», lembra, sem esconder o orgulho.

O «símbolo do futebol moderno»

Apesar de já ter deixado o clube há cinco anos, Thiago Rockenbach continua a acompanhar tudo o que diz respeito ao RB Leipzig e garante ter «um orgulho enorme» por ter feito parte da história de um clube que «alcançou um sucesso enorme é já uma potência do futebol».

Ainda assim, o brasileiro entende o «ódio generalizado» que existe na Alemanha para com o adversário do Benfica nesta terça-feira.

«O RB Leipzig simboliza o futebol moderno. O ódio justifica-se pelo crescimento que conseguiu em tão pouco tempo, apesar de ser um clube sem adeptos», aponta.

«Nós vemos exemplos como o do Borussia Dortmund, em que os adeptos são a alma do clube, morrem por ele se for preciso, e isso é algo que não existe no RB Leipzig. Nesse sentido, trata-se de um clube sem alma, puramente comercial», analiza.

Porém, e apesar desse entendimento, que lhe advém de quase duas décadas na Alemanha, Thiago considera que há «muita inveja» também por trás dos sentimentos negativos em relação ao clube que, em 2016, quando subiu à Bundesliga, devolveu a antiga Alemanha de Leste ao topo do futebol germânico, sete anos depois do anterior representante, o Energie Cottbus.

«Todos os clubes precisaram de ser fundados em algum momento. O que interessa se este só o foi em 2009?», questiona.

«Há muita inveja pelo trabalho que foi feito pelo RB Leipzig, não só graças ao dinheiro, mas também ao projeto desportivo e à filosofia. O clube conseguiu chegar onde muitos clubes históricos da Alemanha nunca vão chegar», defende.

Além disso, o brasileiro aponta os méritos, não só desportivos, mas também sociais que o crescimento do RB Leipzig levou à cidade da Saxónia.

«A evolução do clube contribuiu para um crescimento enorme da cidade de Leipzig. A verdade é que antes não existia ali quase nada e cresceu muito nos últimos anos. E por isso lá o clube é muito bem visto», garante.

E também na Europa, já se olha com respeito para o RB Leipzig. A próxima palavra cabe ao Benfica, nesta terça-feira, sabendo que terá pela frente tão só o líder da Bundesliga neste momento.

Na Alemanha, Thiago Rockenbach vai estar a torcer pelo seu antigo clube.

Ah, e a pensar já em repetir a gracinha, com o Berlim United, clube que representa agora e que tem um projeto semelhante ao deste RB Leipzig.

«Se calhar tenho perfil para este tipo de equipa», despede-se do Maisfutebol, entre sorrisos.

Esperemos por notícias. Até porque, a tradição parece já não ser o que era. Nem na Alemanha.