O livro «A Ciência da Arbitragem em Portugal» junta 20 estudos sobre diversos temas relacionados com arbitragem. O Maisfutebol publica aqui um desses estudos, da autoria de João Pina e Francisco Esteves. Juntou árbitros, jornalistas e estudantes, sujeitos a análise de jogadas, em diferentes ambientes: silêncio, assobios e aplausos. Concluiu, por exemplo, que os árbitros acertam globalmente mais. Mas, curiosamente, também foram quem mais beneficiou com repetições de jogadas.

«Quanto mais assobios, mais precisas são as decisões: o efeito do som ambiente do estádio na tomada de decisão do árbitro»

«0 presente estudo teve como principal objetivo analisar a influência do som ambiente na tomada de decisão dos árbitros de futebol. Cinco grupos de participantes (árbitros da LPFP, outros árbitros, jornalistas, estudantes de deporto e outros estudantes), num total de 156 sujeitos, foram submetidos a uma tarefa experimental de análise de 36 jogadas, distribuídas por três tipos (Sem Falta, Falta, Falta e Cartão Amarelo ouVermelho), onde foi manipulado o som ambiental (Assobios, Silêncio e Aplausos).

Os resultados mostram que: (i) os árbitros acertam mais do que os restantes participantes,  exceto na análise do tipo de jogada “Sem Falta”; (ii) as repetições das jogadas contribuem para um maior número de acertos em alguns tipos de jogadas e, sobretudo, para os especialistas; (iii) no primeiro visionamento, em velocidade normal, a condição “Assobios” favorece os acertos. No 2º visionamento, em câmara lenta e num ângulo diferente, a condição “Silêncio” favorece os acertos; (iv) os participantes identificam mais rapidamente os tipos de jogada “Falta e Sanção Disciplinar” do que as restantes; (v) as decisões mais rápidas acontecem na condição “Assobios” e as mais lentas na condição “Silêncio”; (vi) os árbitros da LPFP e os Jornalistas, seja no primeiro ou no segundo visionamento, são os que demoram mais a tomar as decisões.

(...)

Neste estudo participaram voluntariamente 162 participantes, contudo 6 foram excluídos da amostra porque o computador bloqueou durante a realização da tarefa experimental. Os 156 participantes foram distribuídos aleatoriamente pelas três condições experimentais. Numa amostra de conveniência, constituíram-se cinco Categorias: (i) 14 árbitros e 16 árbitros assistentes da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, designados por Arb_LPFP [n=30; idades entre os 29 e os 45 anos (M = 35.87 e DP = 4.29)]; (ii) árbitros e árbitros assistentes das Associações de Futebol de Lisboa e de Setúbal e da Federação Portuguesa de Futebol, designados por Arb_DistNac [n=36; idades entre os 18 e os 43 anos (M = 27.94 e DP = 5.91)]; (iii) jornalistas da área desportiva de dois jornais nacionais, designados por Jornalistas [n=30; idades entre os 24 e os 58 anos (M = 36.37 e DP = 8.13)]; (iv) estudantes universitários de treino desportivo, designados por Est_Desporto [n=30; idades entre os 18 e os 31 anos (M = 21.87 e DP = 3.15); e (v) estudantes de universitários de diferentes cursos sem relação com desporto, designados por Est_Diversos [n=30; idades compreendidas entre os 19 e os 39 anos (M = 23.34 e DP = 4.04)].

Plano Experimental 
 
O plano fatorial do presente estudo é: 5 [Grupo (Arb_LPFP vs Arb_NacDist vs Jornalistas vs Est_Desporto vs Est_Diversos] X 3 [Som (Assobios vs Silêncio vs Aplausos)] X 2 [Bloco (bloco 1 vs bloco 2)] X 3 [Tipo de jogada (Sem Falta vs Falta vs Falta e Cartão Amarelo ouVermelho 

No bloco 1 as jogadas são apresentadas à velocidade real, enquanto no bloco 2 as mesmas jogadas são apresentadas em câmara lenta e de um ângulo diferente.

Materiais 
 
Dois técnicos de arbitragem selecionaram 30 jogadas (15 passíveis de serem consideradas em favor de uma equipa e as outras 15 em favor da outra equipa) e apresentaram-nas a um painel de três especialistas (todos a trabalhar no setor Profissional da Arbitragem). Cada elemento analisou técnica (falta ou não falta) e disciplinarmente (sem sanção disciplinar, cartão amarelo ou cartão vermelho) os vídeos, classificando-os segundo uma grelha previamente fornecida.

Das respostas unânimes dos especialistas selecionaram-se 18 jogadas (9 passíveis de serem consideradas em favor de uma equipa e as outras 9 em favor da outra equipa), considerando: (i)  não existindo falta (n=3); (ii) falta (n=3); (iii) falta e cartão amarelo (n=2) e; (iv) falta e cartão vermelho (n=1).

De referir que apenas se consideraram jogadas da direta responsabilidade de decisão do árbitro.  O som ambiente de um jogo ao vivo da Liga Sagres foi captado quando os adeptos estavam a incentivar a sua equipa e quando estavam a contestar as decisões do árbitro. A partir destas gravações e utilizando o programa Pinnacle Studio 14, criou-se um ficheiro de som de incentivo (Aplausos) e um ficheiro de som hostil (Assobios).

A apresentação aleatória dos vídeos, a captura do tempo e das decisões dos participantes foi efetuada no programa E-Prime v2.0 (Schneider, Eschman & Zuccolotto, 2002). Os participantes, após a visualização de cada vídeo, tomavam a decisão, carregando nas teclas 6 (Sem Falta), 7 (Falta), 8 (Falta e Cartão Amarelo) ou 9 (Falta e Cartão Vermelho). Os tipos de jogada estão de acordo com o estudo realizado por MacMahon, Helsen, Starkes, & Weston (2007) e Gilis et al.,(2008).

Procedimento

Cada participante foi informado da sua tarefa e depois de darem, por escrito, o seu consentimento, colocaram os auscultadores. As instruções foram dadas no monitor do computador e, antes de iniciar a experiência propiamente dita, foram feitos dois ensaios de treino. Em seguida, foram apresentadas as sequências de vídeo, cujo som foi previamente atribuído aleatoriamente. Primeiro em tempo real (Bloco 1) e depois em câmara lenta e de outro ângulo (Bloco 2). A avaliação dos vídeos foi feita individualmente.

Para testar as primeiras cinco hipóteses, foi realizada uma ANOVA 5 (Grupo) X 3 (Som) X 2 (Bloco) X 3 (Tipo de jogada). Os resultados são apresentados sequencialmente, de acordo com as hipóteses já enunciadas.

Hipótese 1: Observou-se um efeito principal do Grupo, F(4,141) = 2.81, p<0.05. Testes posthoc  de Tukey permitem verificar diferenças significativas entre a percentagem de acertos dos árbitros da LPFP e os Jornalistas e dos árbitros da LPFP com os estudantes dos diferentes cursos. Tal como se pode observar na Figura 1, os árbitros da LPFP obtêm globalmente uma maior percentagem de acertos.

Hipótese 1: Observou-se um efeito principal do Grupo, F(4,141) = 2.81, p<0.05. Testes posthoc de Tukey permitem verificar diferenças significativas entre a percentagem de acertos dos árbitros da LPFP e os Jornalistas e dos árbitros da LPFP com os estudantes dos diferentes cursos. Tal como se pode observar na Figura 1, os árbitros da LPFP obtêm globalmente uma maior percentagem de acertos.

 

Discussão

Analisando a percentagem global de respostas corretas, os árbitros da LPFP obtiveram mais acertos do que, respetivamente, os árbitros Distritais e Nacionais, os Estudantes de Desporto, os Jornalistas e, por último, os Estudantes de Diversos Cursos.

Diversos estudos mostram que, em tarefas semelhantes, os árbitros têm percentagens de acerto de 66% (Gilis et al., 2008) ou 64% (Button, Hare & Mascarenhas, 2006). No estudo de MacMahon, Helsen, Starkes, & Weston (2007) verificou-se que os árbitros tiveram percentagens de acerto de cerca de 80,6 %, enquanto os jogadores não foram além dos 55,1%. 
 
Também Gilis et al., (2008) referem que os árbitros obtiveram maior percentagem de acertos do que os jogadores, treinadores e médicos. Não é, por isso, de estranhar as percentagens de acerto encontradas neste estudo.

Seria expectável, no entanto, que existisse uma maior diferença de acertos entre os árbitros, os  jornalistas e os estudantes mas, segundo Alves e Araújo (1996, p. 382), […] “a mestria da tomada de decisão é específica de cada tarefa. Relativamente aos desportos regulados externamente, o nível de mestria da tomada de decisão é sensível ao contexto, ou seja, sujeitos a determinados constrangimentos, a vantagem na tomada de decisão do expert pode ser esbatida”

Alves e Araújo (1996) referem, ainda, que a distinção entre peritos e iniciados aumenta à medida que também aumenta a complexidade das situações de jogo que implicam, por sua vez, decisões mais complexas. De facto, verificou-se que os árbitros acertaram significativamente mais nas jogadas em que a resposta era “Falta e Cartão Amarelo”. Excetuando o tipo de jogada “Sem falta”, foram os árbitros que mais beneficiaram com as repetições das jogadas (Bloco 2), sobretudo quando os lances tinham um grau de complexidade maior.

Interessante constatar que para os restantes participantes as repetições das jogadas nem sempre  ajudam pois há muitos vídeos em que a percentagem de acertos diminui após a 2ª observação.  Na condição “Assobios” verificaram-se mais acertos no primeiro bloco, mas não no segundo.

Ou seja, os assobios parecem ter, num primeiro momento, uma função ativadora da atenção (ver Johnson, 2006), suscitando mais respostas corretas. Relativamente ao “Silêncio”, poderá dizer-se que é uma condição “estranha” num jogo de futebol, já que raramente acontece. Talvez por isso seja a condição onde existem menos acertos. No entanto, durante a repetição das jogadas, a percentagem de respostas corretas é maximizada com o Silêncio. Os “Aplausos”, ainda que sem significância estatística, aumentam a percentagem de respostas certas do primeiro para o segundo bloco.

No presente estudo, as decisões não foram afetadas pelo ruído, antes pelo contrário, e os erros verificados foram distribuídos pelas duas equipas. Estes resultados parecem contrariar os estudos que sustentam um enviesamento da tomada de decisão dos árbitros quando a assistência se manifesta ruidosamente. Esses enviesamentos podem existir por outras razões que importa explorar mas, pelos dados obtidos, não podem ser atribuídos ao ruído efetuado pelos espectadores.

Atendendo à informação recolhida, poder-se-ia especular que numa eventual utilização de um sistema de análise de jogadas (vídeo-árbitro), durante um jogo de futebol, seria preferível ouvir o som ambiente do estádio mas visualizar as repetições em Silêncio. Neste ponto, Button, Hare, e Mascarenhas (2006) realçam que em determinadas jogadas é necessário recorrer-se a múltiplos visionamentos até se obter uma decisão correta, o que pode prejudicar a fluidez do jogo.

A análise dos tempos de reação dos participantes revelou, também, dados interessantes. Observa-se que as respostas na condição Assobios são bastante mais rápidas do que nas outras condições, sobretudo quando comparadas com a condição Silêncio. Levantam-se, assim, duas questões: (i) os participantes, na condição Assobios, decidem mais rapidamente para se “livrarem” do incómodo do som; (ii) com os Assobios, os participantes procuram respostas mais automáticas.

Em linha com a literatura consultada, verifica-se que os tempos de reação variam em função do tipo de jogada. Em concreto, nos tipos de jogadas mais “emocionais”, ou seja, nas faltas com sanção disciplinar, os participantes decidem mais rapidamente, motivados, especula-se, por uma resposta mais automática ou menos deliberativa. Outra possibilidade para a rapidez destas respostas pode estar relacionada, de acordo com Öhman, Flykt e Esteves (2001), com o facto de estímulos emocionalmente salientes captarem e reterem mais a atenção. Estes autores referem, também, que há evidências de que a emoção facilita a velocidade com que a informação é processada.

Apesar de apenas marginalmente significativo (p=0.054), verifica-se que os árbitros da LPFP e os Jornalistas apresentam maiores tempos de reação nos dois blocos. O maior tempo de decisão parece ajudar os árbitros, já que têm uma maior percentagem de acertos nas jogadas analisadas, mas não os jornalistas, dada a diminuta percentagem de acertos. Poder-se- á especular sobre a influência que a função (árbitros da LPFP e Jornalistas) ou a idade (participantes mais velhos) poderão ter no facto destes participantes serem mais analíticos que os restantes.

O presente estudo vem contribuir para a investigação da tomada de decisão dos árbitros de futebol. Os resultados, provavelmente pelo design experimental utilizado, permitem questionar os resultados obtidos por outros autores (e.g. Nevill et al., 2002; Balmer et al., 92 ACADEMIA DE ARBITRAGEM 2007; Boyko et al., 2007; Downward & Jones, 2007; Antonietti, 2008; Scoppa, 2008; Dawson & Dobson, 2009; Page & Page, 2010) no que diz respeito aos enviesamentos da tomada de decisão dos árbitros. A recolha dos tempos de reação dos participantes permitiu constatar que  os participantes tomam decisões mais rápidas quando estão sujeitos à condição Assobios e,  sobretudo, perante faltas com sanção disciplinar. Por se tratar de uma área pouco explorada na  literatura, os resultados devem ser analisados com ponderação.