O trajeto futebolístico de Fernando Mendes, desaparecido nesta quinta-feira, aos 78 anos, tem pelo menos três dimensões: como jogador, como treinador, e como referência. O Sporting é denominador comum de todas elas, entre 1953, quando passou a integrar a equipa de principiantes dos leões, até 2001, ano em que aceitou prestar mais um último serviço ao clube de sempre, assumindo pela terceira vez na carreira o comando da equipa principal, numa transição difícil, após a saída de Augusto Inácio.

Pelo meio houve 50 anos de dedicação, três títulos de campeão nacional (dois como jogador e um como técnico), uma Taça das Taças (foi o capitão do único troféu internacional dos leões) e um trajeto como jogador rotulado de «brilhante» por todos os que o puderam acompanhar. Isto apesar de ter terminado prematuramente, aos 27 anos, num Checoslováquia-Portugal que deixou a seleção portuguesa às portas do seu primeiro Mundial.

«Um treinador dentro de campo»

Fernando Mamede Mendes, serrano de Seia, muito cedo a viver em Lisboa, entrou no Sporting com 16 anos e estreou-se na primeira equipa dos leões ainda com 19 anos, em 1957. Na época seguinte, ainda como reserva, jogou cinco vezes na conquista do seu primeiro título de campeão nacional, que repetiria em 1961/62, já com estatuto de capitão e patrão a meio-campo. Foi essa a primeira temporada em que partilhou balneário com um jovem promovido à primeira equipa, Pedro Gomes, defesa dos leões entre 1961 e 1973, que recorda ao Maisfutebol, com emoção, as memórias da referência que o apoiou e protegeu nos primeiros tempos:

«A primeira palavra que me vem à cabeça a propósito de Fernando Mendes é líder. Era o meu capitão de 64, o treinador dentro de campo, alguém que nos estimulava e nos corrigia a estratégia quando alguma coisa falhava. Lembro-me de um lance na finalíssima da Taça das Taças, com o MTK, em que um colega nosso teve medo de meter o pé. Ele não hesitou e puxou-o pelos colarinhos.

A equipa que conquistou a Taça das Taças

Esse comportamento não era muito frequente em alguém que por norma exercia a liderança da mesma forma com que jogava: em antecipação e de forma serena. «Como homem e colega eu tinha grande respeito por ele, até porque ele tinha preocupação com os colegas mais novos. Uma vez, numa entrevista, aproveitou para elogiar-me, dizendo que eu tinha subido a pulso no clube. São pequenas coisas que não se esquecem», conta Pedro Gomes, que pouco depois de saber da morte de Fernando Mendes lhe prestou homenagem sentida na sua página pessoal no Facebook.

O 23º magriço no Mundial 1966

Das características do jogador Fernando Mendes, Pedro Gomes destaca a boa visão de jogo e a técnica completa, sem exuberâncias, que o fizeram titular da seleção em 21 jogos, dois dos quais na qualificação para o Mundial de 1966. Foi o último a pôr um ponto final na carreira do médio leonino: em Brastislava, a 25 de abril de 1965, num jogo decidido por esta arrancada mítica de Eusébio

Fernando Mendes caiu por terra nos primeiros minutos, após um choque violento com o checo Kvasnak que lhe rompeu os ligamentos do joelho direito. Pedro Gomes estava lá e não esquece: «Foi um acidente trágico, até porque sem isso o Fernando Mendes teria, obviamente, jogado o Mundial de Inglaterra, e a sua projeção internacional teria sido muito maior», recorda. Não foi assim: apesar de várias operações, o capitão do Sporting nunca recuperou totalmente a mobilidade do joelho e não fez um único jogo para o campeonato na temporada 1965/66, privando-o da terceira coroa de campeão.

Mas, como tributo à sua influência no grupo, a FPF e o selecionador Manuel da Luz Afonso decidiram integrá-lo na comitiva oficial, com um cargo administrativo, que lhe permitia partilhar o dia a dia com os 22 Magriços e participar mesmo em algumas sessões de treino. Entre 1965 e 1968, Fernando Mendes não se rendeu: sucessivas operações, e outras tantas desilusões, não lhe permitiram fazer mais do que os últimos 13 dos seus 225 jogos oficiais com a camisola dos leões. Os últimos meses da carreira de jogador, em 1968, já os passou no Atlético onde, com 31 anos, desistiu de lutar contra o impossível após uma batalha de três anos e meio.

Ter ou não ter «estofo de campeão»

A segunda dimensão de Fernando Mendes, como treinador, inicia-se em 1974, depois de um período emigrado na África do Sul. Começa por baixo, mas rapidamente é integrado na estrutura de formação do Sporting, até pelo prestígio de que continua a dispor no universo leonino. Um exemplo disso mesmo está nas palavras de Mário Jorge, internacional leonino da década de 80, que Fernando Mendes treinou na equipa de juniores, dando-lhe a braçadeira de capitão.

«O meu pai falava muito no grande e inteligente jogador que Fernando Mendes tinha sido e esse respeito passava para os mais novos. Percebia-se que não era por acaso que era capitão, tinha sido um extraordinário futebolista, mas também uma pessoa culta, já um visionário, em termos de metodologia de formação

Quando Mário Jorge se estreou na equipa principal, em setembro de 1979, o treinador era ainda Rodrigues Dias, mas os maus resultados viriam a ditar a sua saída, no final de novembro. Já sem grande expetativa de chegar ao título, o Sporting vira-se para uma solução interna, consensual, procurando pacificar jogadores e adeptos. Fernando Mendes é o homem certo no local certo. «Na altura em que Rodrigues Dias saiu, falava-se muito de Fernando Mendes nos corredores, pela sua experiência no futebol, por trabalhar há vários anos no clube e pela facilidade de relacionamento com toda a gente. O certo é que, mal chegou, criou uma grande empatia com os jogadores, que se reviam muito nas suas ideias. O nosso adversário mas direto era o FC Porto, que tinha sido bicampeão. Na altura, foi lançada a frase de que o Sporting não tinha estofo de campeão, mas o certo é que a equipa foi até ao fim e conquistou mesmo o título, contra todas as previsões»

Se Mário Jorge, em ano de estreia, teve contributo reduzido nessa conquista, no meio-campo leonino brilhava outro nome que, para o Maisfutebol também evocou Fernando Mendes com saudade. Samuel Fraguito, presente em 21 jogos nessa campanha, estava a viver as últimas temporadas em Alvalade. Tal como todos os que privaram com Fernando Mendes, começa por destacar-lhe a amabilidade e a cortesia no trato. Mas vai mais longe.

«Era uma pessoa amável mas sabia lidar com os jogadores. Tivemos uma época excelente, era um conhecedor profundo do futebol. Se é preciso uma explicação para aquele campeonato ganho, quando não éramos favoritos, digo que foi o espírito de equipa, a união que ele impôs. Tinha muito de psicólogo, mas era também bom treinador no trabalho de campo. E não me esqueço disto: eu já tinha problemas complicados de joelhos, e ele, que pelo sucedido era particularmente sensível a essa questão, poupava-me sempre quando tínhamos de jogar em campos pelados, ou mais duros»

Fernando Mendes chegou à 10ª jornada, e nos 20 jogos seguintes a equipa venceu 17 e empatou três. Foi o ponto mais alto da sua carreira de treinador e foi com toda a naturalidade que começou a época seguinte. Mas, na ressaca do título, o Sporting tardou a engrenar. Em dezembro, o treinador campeão foi substituído pelo jugoslavo Radisic. Fernando Mendes deixou Alvalade, teve breves experiências como treinador principal no Farense, Belenenses e Marítimo, mas em 1986 regressou ao clube de sempre, como adjunto. Depois, em 1988, passou para o setor de formação, com a equipa júnior. É aí que inicia a terceira etapa da carreira, como reserva moral do clube de Alvalade.

Diplomata em tempos difíceis

Mário Jorge, que jogou no Sporting até 1991, manteve a ligação com o antigo treinador dos juniores: «Ele tinha especial carinho pelos jogadores formados na casa, nunca deixou de dar conselhos e palavras de encorajamento». No campo, ou nos gabinetes, Fernando Mendes manteve sempre intacta a aura de respeito, que o levou, em duas ocasiões, a voltar a um protagonismo que, decididamente, não procurava.

Em março de 1996, após a atribulada saída de Carlos Queiroz de Alvalade, aceita comandar a equipa durante um mês e cinco jornadas, sendo rendido por Octávio Machado. Cinco anos mais tarde, já sem funções no Sporting, volta a ceder aos apelos, substituindo momentaneamente Augusto Inácio durante mais cinco jornadas da Liga. Nas duas ocasiões, um dos elementos do plantel leonino é Pedro Barbosa, que guarda boas recordações da dupla experiência, como contou ao Maisfutebol.

«Recordo um homem sério, rigoroso no seu trabalho, que soube ganhar o respeito dos jogadores, não só pelo passado, mas também pelo que era nesse momento: uma pessoa de trato fácil e acessível, que soube gerir com diplomacia períodos de transição complicados. Lembro-me também de uma grande vitória que tivemos em casa do Marítimo, por 5-0, na sua primeira passagem. Foi mais um dos seus momentos felizes, numa vida dedicada ao Sporting, nas mais diversas funções

O percurso chega agora ao fim, depois de um período de recolhimento, a lutar com a doença. Mário Jorge não tem dúvidas: «Nomes como o de Fernando Mendes é que são as grandes referências, os verdadeiros notáveis do Sporting». Fraguito, o médio perseguido pelas lesões, a quem Fernando Mendes quis poupar os joelhos mais algum tempo, é pragmático na despedida: «Recordo-o como um amigo e como um campeão. Já tenho saudades».