Estórias Made In é uma rubrica do Maisfutebol que aborda o percurso de jogadores e treinadores portugueses no estrangeiro. Há um português a jogar em cada canto do mundo. Este é o espaço em que relatamos as suas vivências.

Se há duzentos anos a coroa portuguesa expandia o seu domínio sobre um vasto e inóspito território do tamanho de toda a Europa Ocidental através de exploradores e povoadores, hoje, no coração da maior floresta do mundo, resta pelo menos um ilustre embaixador futebolístico luso.

Paulo Morgado chegou há seis anos a Manaus e ficou. Desde então orientou uma mão cheia de clubes, fez carreira no campeonato do estado do Amazonas e no último mês viveu uma situação insólita, embora esclareça que não foi contratado e despedido três vezes seguidas, como chegou a ser noticiado.

«É um exagero, mas serviu sobretudo para alertar para a falta de organização do clube que me quis contratar. Na verdade, não assinei nada, pelo que não podia ter sido contratado e despedido três vezes seguidas», esclarece ao Maisfutebol o treinador, que acabou por regressar à coordenação dos escalões de formação do Nacional depois de ter sido gorada a sua contratação para orientar a equipa principal do rival São Raimundo.

«O presidente anterior, agora vice, quis contratar-me: mostrou-me o orçamento disponível, comecei a contactar jogadores, mas depois duas empresas importantes daqui de Manaus recuaram no apoio que tinham prometido e isso inviabilizou o pagamento do meu salário e de oito jogadores que iam ser contratados. O que aconteceu a partir daí foi falta de comunicação entre o presidente e o vice: um dava uma entrevista a dizer que eu estava contratado, porque achava que reunia os apoios, outro dizia que não… E o caso foi-se arrastando.»

Paulo Morgado ao serviço do Fast

A desorganização do futebol amazonense não é uma novidade para Paulo Morgado – «O futebol português está 30 anos à frente», alerta. Deparou-se com ela quando chegou em 2011 para treinar o Rio Negro por convite de um empresário português e para treinar Mário Jardel.

«Nem sabia onde era Manaus, mas pensei “se o Jardel vai para lá jogar, aquilo deve ser bom.” A verdade é que o Jardel foi embora ao fim de dois meses, assim que percebeu que ia começar a haver salários em atraso. Vivíamos os dois no mesmo hotel, um edifício sombrio, que parecia saído de um filme de terror. Era engraçado porque o Jardel tinha medo de ir sozinho do refeitório para o quarto, pedia-me sempre para o acompanhar. Assim que ele foi embora, também não fiquei muito tempo no hotel, nem sequer no mesmo clube: mudei para o Fast ao fim de quatro meses.»

Jacaré no barco e cobra à porta de casa

Desses primeiros tempos, Morgado guarda alguns episódios caricatos, sobretudo das deslocações para jogar no interior do estado.

«Para Manicoré (a 450 quilómetros da capital estadual) não há estradas decentes. Íamos de avião para o jogo, mas regressávamos de barco: 12 horas de viagem… Numa das vezes, ao atravessar o rio numa balsa, carregada com motos e carros, ela encalhou e ficámos ali ao anoitecer à espera de sermos rebocados: trazidos pela correnteza do rio, peixes, cobras e até um pequeno jacaré entraram pelo barco adentro… Imagine o que é uma situação dessas para alguém acabado de chegar de Portugal», recorda Paulo Morgado, recordando logo de seguida outro episódio insólito para alguém então ainda pouco habituado ao contacto com a realidade da Amazónia:

Teatro Amazonas, ex-libris da cidade de Manaus

«Quando saí daquele hotel assustador, fui viver para uma casa, que tinha um descampado em frente. Uma noite, ouvi um barulho estranho; um chocalhar cada vez mais próximo do meu quarto. Estava com alguns jogadores e viemos cá fora espreitar: era uma cascavel enorme! No dia seguinte, uma das sapatilhas que tinha a secar à porta de casa tinha desaparecido. Não sei se foi a cobra que a levou, mas fui gozado durante dias! Até “A Crítica”, um jornal daqui, fez um artigo sobre isso: “Cobra levou sapatilha do português”.»

Cicerone da seleção em 2014

Os primeiros tempos não foram fáceis: Paulo Morgado confessa que sentia falta da comida, estranhou o clima e sobretudo a humidade. Porém, adaptou-se e em 2014 fez até de cicerone da comitiva da Seleção Nacional que preparou o Mundial de 2014 (Portugal defrontou em Manaus os Estados Unidos no segundo jogo do grupo): «Estive com o Paulo Bento (então selecionador) e com o Carlos Godinho (diretor desportivo das seleções) a visitar a Arena da Amazónia, a escolher hotéis. Avisei-os logo para o calor e a humidade incrível que teriam de enfrentar no Mundial, meio ano depois. No início tinha dificuldades até em respirar e em caminhar normalmente na rua. Só mais tarde consegui adaptar-me.»

Panorâmica de Manaus e da Arena da Amazónia

Paulo Morgado faz a distinção entre Manaus, a grande metrópole com dois milhões de habitantes, e o interior do estado, até porque já experimentou as duas realidades. O legado do Mundial faz com que agora o campeonato estadual, que arrancou na última semana, se dispute em estádios novos na capital, onde a organização dos clubes é também maior: «Fora de Manaus é mais complicado. Há no interior mais dinheiro porque as prefeituras investem, mas também pior gestão e maior desorganização. Por exemplo, os jogadores vêm sem família, são baladeiros (gostam de sair à noite) e há trinta mulheres para cada homem… Não era raro encontrar mulheres com os jogadores, mesmo dentro do centro de treinos do clube.»

Morgado salienta que os técnicos portugueses estão bem cotados no Brasil – «pela formação que têm, pelos cursos certificados pela UEFA, por exemplo, e os clubes brasileiros dão cada vez mais valor ao conhecimento». No Amazonas, o técnico tem também contribuído com a sua prestação desportiva. Foi campeão estadual da 2.ª divisão em 2013, com o Manaus FC, e venceu o título da 1.ª divisão em 2015 com o Nacional.

Dois títulos que guarda como grandes conquistas num percurso de seis anos sempre no estado, com uma pequena incursão pelo futebol cearense (Icasa, 2016).

Na Amazónia por um motivo mais forte do que a carreira

«O objetivo passa por continuar no Brasil?», perguntamos. O técnico que antes de abraçar a aventura amazonense em 2011 treinou as equipas seniores do Sintrense, Vitória do Pico e Odivelas, salienta que não é fácil encontrar oportunidades para regressar. «O meu sonho como treinador não é treinar em Espanha, Inglaterra ou noutro sítio do Brasil, mas sim regressar a Portugal. O problema é que o mercado aí é pequeno e há muitos treinadores. Hoje, os treinadores com mais idade não têm espaço e os que saem caem no esquecimento. Por isso é que não sei se regresso ou se vou ficando… Bem, por isso e não só.»

A conversa com Paulo Morgado desenrola-se no Dia do Pai e o técnico aproveita o momento para esclarecer por que motivo a carreira não está em primeiro lugar. «Tenho uma filha de 4 anos que nasceu aqui. Acabei por ir ficando cá sobretudo por causa dela. Vive comigo e com o apoio da avó materna – a mãe vive em Londres. Não é fácil conjugar tudo. Já tive convites para treinar fora do Amazonas, mas tenho recusado para estar perto da minha filha, vê-la crescer. Prejudica-me a carreira, mas ganho o resto: a companhia da Daniela compensa tudo. Como ela tem muita curiosidade, um dia vou levá-la a conhecer Portugal.»