Estórias Made In é uma rubrica do Maisfutebol que aborda o percurso de jogadores e treinadores portugueses no estrangeiro. Há um português a jogar em cada canto do mundo. Este é o espaço em que relatamos as suas vivências.

Tem 25 anos e já experimentou quatro países na Europa futebolística. Formado no Benfica, Francisco Júnior ganhou fama ao ingressar no Everton perto da maioridade. Pelo meio esteve metido num imbróglio que colocou encarnados, Manchester City e FIFA ao barulho. Pouco depois, ficou sem a mãe e entrou num período depressivo.

Acabou por descobrir a felicidade no gelo da Escandinávia. O médio cumpre a segunda passagem pelo Strømsgodset e sente-se como peixe na água. É um dos elementos mais utilizados do plantel e ambiciona voltar a jogar com a formação de Drammen nas competições da UEFA. Eis a história do luso-guineense, que optou por representar a Guiné Bissau em homenagem à progenitora.

«Tudo aquilo que sou foi graças ao Benfica»

Tal como muitos futebolistas africanos, Francisco Santos da Silva Júnior cresceu a dar pontapés na bola no bairro onde vivia. «Jogava com os meus amigos nas ruas. Mas o meu pai e os professores insistiam sempre que devia ir primeiro à escola e colocar o futebol em segundo plano», revela em conversa com a MF Total.

Na verdade, o quotidiano tinha esse alinhamento. Até meio da tarde, o pensamento estava focado nos livros. Para as horas tardias estava reservada a parte desportiva. Pelo meio, uma infância alimentada por resiliência e sacrifícios.

«Os meus pais eram pobres, não tinham dinheiro para me dar nem para apanhar o táxi. Saía de casa às 10 horas para poder chegar a tempo da escola. Ia a pé e sem pequeno-almoço tomado na maioria das vezes. Eram duas horas e tal a andar. Entrava às 13h30 e saía às 15h30. Muitas vezes não almoçava para ir direto para o treino, que começava uma hora depois», conta o jogador de 25 anos.

Francisco começou por evoluir no Sport Bissau e Benfica, um afiliado do tetracampeão nacional. Ao redor sentiu adeptos apaixonados, atentos às rivalidades do campeonato português. Depois, lá devolvia a rotina habitual.

«Quando terminava os treinos, tinha de ficar na estrada a pedir boleia para voltar a casa. Se tivesse sorte, apanhava. Senão, tinha de andar de novo até casa. Normalmente só chegava às onze da noite, para ir jantar e dormir», relata, indicando que ajudava a mãe numa loja em alguns fins-de semana.

Apesar das dificuldades, ser jogador profissional nunca saiu do horizonte. Com 16 anos, o médio aterrou em Portugal por intermédio do empresário Catió Baldé. «Cheguei em 2007/2008. Tinha Sporting e FC Porto interessados em mim. Inclusive, estive reunido com os dois clubes e a minha família em Bissau. Nunca aconteceu mais nada, não sei muito bem porquê. O Benfica foi o que mostrou mais interesse», anota.

Luso-guineense deixou a família toda em África, para abraçar o futebol europeu

No papel estava um acordo de cinco anos. Mal entrou no Caixa Futebol Campus, Francisco Júnior ficou perplexo. «O Seixal tem todo o tipo de condições para um atleta jovem. E lá aprendes muito. O Benfica não se preocupa só com a parte desportiva. O lado académico do atleta também conta. Tudo aquilo que sou foi graças ao Benfica», admite o atleta que se assume como sportinguista.

Dos juvenis para os juniores, o miúdo natural de Bissau partilhou o balneário com vários jogadores que atualmente têm uma carreira consolidada. São exemplos Roderick Miranda (Rio Ave), Mário Rui (AS Roma, cedido pelo Empoli), Danilo Pereira (FC Porto), Ivan Cavaleiro (Wolverhampton) ou o próprio Ederson, tetracamepão pelo Benfica. «Havia muito bons talentos. Alguns tiveram mais sorte que outros. Infelizmente o futebol é assim», lamenta, assinalando o médio dos «dragões» como um dos melhores amigos, a par dos compatriotas Saná e Adul.

Saída atribulada para Inglaterra

Fevereiro de 2011. Durante a quarta época pelos encarnados, um imprevisto bateu à porta. Francisco foi a Espanha disputar o torneio internacional de La Manga. Na bancada estavam observadores do Manchester City. «Acho que estavam a seguir o Bruma. Viram-me a jogar e perguntaram pela minha situação contratual. Começaram a falar com o meu empresário e lá fui», constata.

A ligação mantida com as «águias» não passava de um simples contrato de formação. O jogador tinha a opção de acionar o vínculo profissional, mas alega que os encarnados não manifestaram a intenção de renovar. «Fui morar na casa de uma amiga, à espera que o Benfica dissesse alguma coisa. Informaram-me que estavam em negociações com o Real Madrid B e o Jorge Mendes. O Catió [Baldé] foi a Espanha, mas não chegaram a acordo», conta.

Num ápice, o atleta de 25 anos seguiu para Inglaterra à revelia do Benfica. Treinou seis meses à experiência na Elite Development Squad, a antecâmara da equipa principal dos «citizens». «Tinham vedetas, como [Emmanuel] Adebayor, Roque Santa Cruz, [Owen] Hargreaves. O [Carlos] Tévez também lá estava por questões disciplinares. Foi uma boa experiência», resume.

Mas o imbróglio parecia não ter fim. Mal o Benfica soube do paradeiro, exigiu o regresso do luso-guineense para assinar um contrato profissional. Luís Filipe Vieira terá até enviado ao clube inglês um bilhete de avião pago. «Naquela semana tinha perdido a minha mãe e fiquei responsável pela minha família. Por isso achei que era melhor ficar em Inglaterra. Decidi que não ia voltar e o Benfica não gostou», descreve.

Como o Maisfutebol explicara na reportagem «Portuguese Citizens», a transferência de Francisco Júnior do Benfica para o Manchester City criara enorme polémica. O caso chegou às instâncias mundiais, com o Benfica a esgrimir na FIFA direitos sobre o passe do jogador.

«Foi só um mal-entendido, que se resolveu sem problemas. Falei com o meu advogado para tirar a queixa contra o Benfica porque não queria problemas. Só tenho um sentimento de agradecimento por tudo que fizeram por mim», assume o médio.

Cansado dos jogos entre empresários, Júnior foi forçado a deixar o City, que compensou os encarnados em milhão e meio de euros. Continuou no berço do futebol, agora em Liverpool. «O Everton apareceu através do Kia Joorabchian [empresário iraniano]. Disse-me que podia resolver a situação porque era amigo pessoal do presidente do Benfica. Apresentou-me a proposta e eu aceitei. Só queria jogar, mais nada», vinca.

«Fiquei em depressão, mas ninguém sabia»

Sem nunca ter jogado pela equipa de Manchester, Francisco Júnior rumou à cidade dos Beatles. O Everton anunciava em fevereiro de 2012 a contratação do médio a custo zero, por quatro anos e meio. Um pontapé na indefinição, insuficiente para afastar meses de sofrimento.

«A adaptação não foi fácil por causa da comida, do tempo e da língua. Não falava inglês e tinha acabado de perder a minha mãe. Fiquei em depressão durante um ano. Fazia os tratamentos sozinho, mas ninguém sabia. Foi duro», diz com alguma emoção à mistura.

Marouane Fellaini, Leon Osman, Steven Pienaar, Kevin Mirallas. Havia qualidade a monte no meio-campo. Demasiada concorrência para um miúdo com apenas 20 anos. Os problemas físicos também não deram tréguas, implicando várias paragens e duas cirurgias. Ao fim de sete meses, os primeiros minutos com a camisola do Everton. Uma parte completa, na derrota frente ao Leeds United (2-1), para a terceira eliminatória da Taça da Liga. «Nesse jogo tinha voltado de uma lesão. Só treinei uma vez em duas semanas e o jogo não me correu bem», lamenta.

Francisco Júnior pertenceu aos quadros do Everton durante quatro anos

Foi a única aparição pela equipa principal dos Toffees em quatro anos. Júnior aponta culpas no cartório. «Não soube esperar ou ter a paciência suficiente para fazer aquilo que o treinador pedia. Comecei a não dar o meu máximo nos treinos e nos jogos das reservas. E perdi um pouco de humildade, por causa dos problemas familiares que tinha na altura. Não tinha ajuda de ninguém. Tudo isto e mais algumas coisas impediram a minha afirmação no Everton», analisa.

Sem espaço em Goodison Park, o centrocampista foi afastado da primeira equipa por David Moyes. Ia disputar 2013/14 cedido ao Vitesse. Só fez meia época pelo clube holandês, entre três aparições e um golo para a taça. O negócio foi interrompido por nova lesão no joelho.

De empréstimo em empréstimo, com portas abertas ao futuro

De Arnhem seguiu para o futebol nórdico. «O Ronny Deila conhecia-me do Manchester City e pediu-me para vir jogar com ele na Noruega por cinco meses. Voltar a jogar era o que eu mais queria. Graças a Deus correu muito bem naquela fase», diz o dono camisola 19, que evoluiu ao serviço do campeão Strømsgodset.

O ritmo competitivo nada tinha a ver. O internacional pela Guiné Bissau apanhou um plantel a preparar a temporada, que se estende de março a novembro. O clube sediado em Drammen cedo se intrometeu na luta pela Eliteserien. Beijou o comando da liga e deu continuidade à série de 44 jogos sem perder no Marienlyst Stadion – registo apenas suplantado pelo Rosenborg na terra dos vikings.

A cobiça estrangeira não tardou. Deila, que aperfeiçoou métodos com visitas às camadas jovens de City, Barcelona e Ajax, foi contratado em junho para manter a hegemonia do Celtic. Francisco ainda prolongou o empréstimo por mais um mês. Abandonou os Godset em inícios de agosto, com 800 minutos jogados, um golo marcado e estreia pautada nas pré-eliminatórias da Liga dos Campeões.

«Tive que voltar ao Everton. Nesta altura o treinador já era o Roberto Martínez.

Conversamos e ele também achou que o melhor era continuar emprestado». E assim andou cedido a Port Vale e Wigan, ambos do terceiro escalão inglês. Também treinou no Celtic durante uns dias, reencontrando Ronny Deila. No caminho para Goodison Park, uma decisão assertiva.

O Wigan Athletic foi a última experiência protagonizada em solo inglês

«Pedi para rescindir o contrato. Estava cansado de ficar à espera da minha oportunidade. Queria sair e tentar algo diferente. Sentia que era a altura de voltar a ser eu mesmo». O Everton alinhou pela mesma ideia e anunciou a saída definitiva de Júnior em fevereiro de 2016, ainda com cinco meses restantes para o fim do contrato.

Semanas depois, o luso-guineense revelou mágoa pela estadia nos Toffees. «Para o treinador nem sempre importava o que fazia no campo. Estavam sempre a tentar ver o que fazia de errado. Pensava que ninguém se importava comigo», expôs numa entrevista ao jornal «Liverpool Echo».

Reencontrar os sorrisos como «viking»

Enquanto não arranjava destino, Francisco Júnior percebeu que tinha de mudar. Inúmeras lesões fizeram-lhe procurar aconselhamento especializado. Por isso recorreu ao G42 Personal Training Studio, nada menos do que o único complexo de Liverpool cotado com cinco estrelas.

Através de John Clarke, instrutor habituado a lidar com diversos quadrantes, o futebolista reformulou hábitos alimentares e aprendeu a gerir o esforço. Tudo para relançar uma carreira fustigada pela clínica. Ao fundo do túnel, reluziam flocos de neve em permanente queda.

«Precisava de um sítio aonde pudesse recomeçar. Quando tive oportunidade de voltar ao Strømsgodset, mesmo tendo outras propostas, nem pensei duas vezes. Sabia que estava a dar um passo atrás na minha carreira. Mas aceitei o risco porque acredito em mim próprio e sei daquilo que sou capaz», assume.

Depois de uma primeira experiência na Noruega, o médio voltou a viver em Drammen. Agora de forma estável, numa gélida comuna que fica a 40 minutos de carro de Oslo. «No início foi difícil por causa do tempo, da comida e da cultura. No balneário a língua mais falada é o norueguês. Mas todo o mundo também fala inglês. O norueguês é muito complicado. Já tentei ir as aulas e desisti logo na primeira semana. Não entendo nada», solta entre risos.

De resto, «são muito amigáveis e mais abertos à conversa quando bebem (risos). O que vale são umas cervejas, senão a comunicação é pouca. Mas quando te conhecem já fica tudo numa boa», descreve, apontando em que sentido ficou mais boquiaberto.

«Muitos aqui nem conhecem o que é o bacalhau. Por exemplo, no meu clube poucos sabem e a maioria nunca comeu. É estranho, não é? Acho que em Kristiansand [cidade portuária do sul] já todo o pessoal conhece», pressupõe.

Dentro dos relvados, o jovem de 25 anos não podia pedir melhor. «Sinto-me grato por me terem aceitado e recebido de braços abertos quando mais precisava. Recebi todo o tipo de apoio e sinto-me um jogador importante para o clube. Isso está-me a fazer feliz. Voltei a sorrir e a fazer aquilo que gosto», sente o atleta que há dias dobrou a meia centena de jogos pelo Strømsgodset.

Comuna de Drammen pela noite, a sobressair com a iluminação artificial do Marienlyst stadion

Homem de terrenos interiores, o camisola 28 tem vindo a recuar de posição no setor intermediário. «Sempre fui um médio mais ofensivo. Também podia jogar a médio ala direito ou esquerdo. No meu último de Benfica, o treinador dos juniores pediu-me para jogar na posição seis porque o habitual titular estava lesionado. Fiz bons jogos e deixaram-me naquela posição. Quando me transferi para o Manchester City fui referenciado como um “seis”. Mas consigo fazer todas as posições no meio campo sem problemas», avalia.

A Noruega já não coloca uma equipa nos agrupamentos da liga milionária há nove temporadas. Também está afastada das competições internacionais desde o Euro 2000. «O futebol tem crescido muito por cá, mas ainda falta aquele aspeto técnico. A liga é mais baseada nas bolas longas e em tentar ganhar as segundas bolas. Isso implica muita correria, poder atlético e pouca qualidade com os pés», traça, destacando que o foco reside no produto final: «Não interessa se jogaste bem ou mal. Basta ganhar e está feito».

Apesar de ser uma das figuras do Godset, Júnior sente saudades de casa. «Tenho muitas saudades da família. Sempre vivi sozinho aqui na Europa. Só vejo a minha família no Natal. Imagina ires até África para ficar três dias com a tua própria família, que já não vias há um ano. É muito triste, mas é a vida», reconhece.

«Vi um país inteiro a unir-se em torno da seleção»

Portador de dupla nacionalidade, o médio contabilizou várias presenças nas seleções jovens portuguesas. «Lembro-me muito bem da primeira vez que fui chamado. Era para uns treinos com a seleção sub-19. Liguei à minha mãe a avisar e ela ficou toda feliz, tal como a família. Foi um momento que ficou marcado, embora fosse só para uns treinos. Imagina se fosse para um jogo oficial», graceja.

Triunfou em La Manga e sublinhou o orgulho em envergar as quinas ao peito. Contudo, a morte da mãe rodopiou as expectativas. «A seleção da Guiné já tinha estado atrás de mim. Com a morte da minha mãe tudo mudou. Quando apareceu a oportunidade para ir jogar de novo pela Guiné, jurei à minha mãe que ia representar o meu país de origem e dar o meu máximo por ela», conta.

Sem qualquer internacionalização, Francisco Júnior foi convocado para representar os Djurtus em plena estreia na Taça das Nações Africanas (CAN). «A experiência marcou-me para a vida toda. Vi um país inteiro com problemas políticos e financeiros a unir-se em torno da seleção nacional. Foi aí que percebi que o futebol pode fazer muita diferença», anota o jogador, que assumiu a titularidade nas partidas com Gabão, Camarões e Burkina Faso.

«Infelizmente não conseguimos nenhuma vitória nos três jogos. Jogámos com a equipa da casa logo no primeiro jogo. Empatar não foi uma tarefa fácil. Contra as vedetas dos Camarões dominámos o jogo. Faltou-nos experiência, porque a maioria dos nossos jogadores estão nas divisões abaixo da liga portuguesa e os Camarões tinham jogadores de Liga dos Campeões. Isso acabou por pesar. Falhámos duas vezes e eles fizeram dois golos», resume sobre uma partida disputada em pleno dia de aniversário, que Bissau esteve a vencer com uma tirada de génio de Piqueti.

O combinado de Baciro Candé ficou arredado na fase de grupos. Dias antes, boicotara os treinos por falta de pagamento. Consciente das dificuldades económicas que a sua pátria atravessa, o jogador assume uma postura conservadora. «Ninguém vai à Guiné jogar por causa do dinheiro, embora façam de tudo para não falhar connosco. Às vezes falham, mas é o país que temos. Só nos resta dar tudo em campo e deixar todos os guineenses orgulhosos».

E acrescenta: «Ainda faltam muitas condições e organização no nosso futebol. Se continuarmos a fugir dos nossos próprios problemas, não estamos a ajudar-nos. É altura de voltarmos e lutarmos para pôr a Guiné no lugar que merece porque talento é o que não nos falta», fazendo alusão ao facto de muitos guineenses optarem por jogar por Portugal.

A Guiné Bissau estrearam-se em 2017 no Campeonato Africano de Nações

Porquê? Uma questão de proximidade, dada a paixão nutrida pela seleção portuguesa. Mas também de acompanhamento, já que muitos ficam sem progenitores nos primeiros tempos de vida. «Quando isso acontece, tens que decidir sozinho muitas vezes e as coisas não correm da melhor forma. Quando és bem acompanhado, a realidade muda», admite.

Olhando ao futuro, a Guiné Bissau perdeu esperanças de estar no Mundial da Rússia. Resta lutar pela segunda participação consecutiva na CAN, que se realiza em 2019 nos Camarões. «Vamos dar tudo para voltar mais fortes e com mais experiência», garante Francisco Júnior, que terá de defrontar Zâmbia, Moçambique e Namíbia no apuramento.

Quanto à experiência na Escandinávia, a ligação ao Strømsgodset finda em dezembro. O atleta garante que tem algumas propostas em cima da mesa, mas não entra em detalhes. «Ficaria muito feliz se aparecesse uma equipa com uma boa proposta em Portugal. Que clube gostaria muito de representar? Não posso dizer», esconde entre sorrisos.