Estórias Made In é uma rubrica do Maisfutebol que aborda o percurso de jogadores e treinadores portugueses no estrangeiro. Há um português a jogar em cada canto do mundo. Este é o espaço em que relatamos as suas vivências.

A história de Miguel Machado confunde-se com outras de inúmeros treinadores portugueses. De uma viagem pelo amadorismo em Portugal ao profissionalismo na fria Estónia, com a China como ponto de paragem. Uma carreira que começa a ser construída a pulso.

Em 2015 decidiu arriscar e rumou a Dalian, uma cidade portuária no sul da China. Saudades da família e as diferenças horárias ultrapassadas na busca incessante pelo sonho do profissionalismo. Eis a história de um jovem treinador português que encontrou a realização pessoal na Estónia, no modesto Harju Jalgpallikool, um clube dos arredores de Tallin.

Natural de Guimarães, foi na cidade berço que nasceu o «bichinho» pelo futebol e a ambição pelo lado invisível do jogo. A licenciatura em Educação Física e Desporto no ISMAI aguçou o desejo de ser treinador e a Academia Crescer Guimarães abriu-lhe as portas do mundo do futebol. Pelo meio tornou-se mestre na área em que se licenciou.

«Sempre estive ligado ao futebol praticamente desde miúdo. Entretanto, ingressei na Licenciatura de Educação Física e Desporto já com o «bichinho» de treinador. Terminada a licenciatura comecei a estagiar e, posteriormente, a trabalhar numa academia de futebol em Guimarães. Estive lá durante oito anos e tirei o mestrado na mesma área. Treinei os sub-17 de uma equipa local na minha freguesia. De seguida, surgiu o convite para ir para a China», começa por dizer em conversa com o Maisfutebol.

Os confins da China como um trampolim para a Estónia. E, ao mesmo tempo, o início de uma vida de emigrante que chegou para ficar.
 

Miguel Machado na Academia Luís Figo, na China.


As portas da República Popular da China abriram-se com o convite para integrar o projeto Academia Figo, um projeto que neste momento está enraizado em 16 cidades.

«Estive na academia Luís Figo, sensivelmente durante um ano e meio. Partilhei experiências com vários treinadores portugueses. A Academia Luís Figo é um projeto que tem como objetivo desenvolver o futebol na China. Treinei miúdos entre os quatro e os quinze anos. A forma de trabalhar é semelhante ao que acontece em Portugal. Na China, como o futebol não tem a popularidade que tem no nosso país, temos que trabalhar os aspetos mais primários do jogo. Enquanto em Portugal um miúdo chega a um treino e já sabe driblar, fazer condução de bola e rematar, na China isso não acontece. Temos que ensinar tudo isso. No final, acaba por ser satisfatório quando vemos a evolução das crianças», recorda.

Contudo, antes de regressar ao Velho Continente, Miguel Machado viu-se obrigado a superar as inúmeras diferenças culturais com as quais se deparou na longínqua cidade de Dalian. O técnico português recorda os horários inusitados e as refeições incomuns. Pelo meio, lembra a forma como a população chinesa encara o desporto-rei.

«A China? Costumo dizer que é um mundo à parte da Europa. É completamente diferente daquilo a que estamos habituados. Vive-se tudo a uma velocidade gigante. A comida e os hábitos diários são completamente diferentes. A primeira diferença com que me deparei foi na questão dos horários. Em Portugal, habitualmente jantámos entre as 20h00 e as 21h30. Na China, a hora comum para jantar é às 18h30. Isso fazia-me confusão porque para nós essa é a hora do lanche», refere.

«A comida também foi um choque muito grande, isto numa fase inicial. Uma vez, sem saber, comi pernas de rã. Deixaram-me comer e pensei que estava a comer frango. Comi e só no final é que me disseram o que acabara de comer. Na China, é comum os restaurantes terem aquários com sapos e rãs, algo nunca antes visto em Portugal», rememora.

 

Miguel Machado, na Academia Luís Figo.


Apesar do presidente Xi Jinping querer que a China se converta numa potência do futebol, isso está longe de acontecer. Os motivos? A juntar, à quase intrínseca falta de predisposição para o jogo, soma-se o facto de o futebol não ter a devida importância desde a fase mais embrionária.

«Os miúdos preocupam-se demasiado com a componente do drible enquanto nós, treinadores portugueses, focamo-nos mais na interpretação do jogo. Tivemos muito sucesso. Conseguimos ter na academia cerca de 120 praticantes. Porém, convém frisar que a cultura futebolística, por assim dizer, não é muito grande. Não têm a noção do que é exigido, nem a um profissional de futebol nem na formação. Para ser sincero, eles não estão enquadrados nessa realidade. Mesmo em equipas seniores sente-se o mesmo. A pontualidade e a capacidade de trabalho estão muito distantes dos padrões comuns. Para eles o futebol é lazer, mesmo os pais, encaram o futebol como uma aula de inglês ou de música», salienta.

Ano e meio depois, termina uma experiência cheia de histórias e vivências peculiares. O telefone toca e uma mudança para os arredores de Tallin, capital da Estónia, começa a desenhar-se no horizonte. Na Europa Setentrional espera-o a possibilidade de continuar a ser profissional no modesto Harju Jalgpallikool.

«O projeto agradou-me bastante. O diretor desportivo fez formação em Portugal e convenceu-me, uma vez que quer implementar no clube uma estrutura semelhante aquela que usámos em Portugal. Sinto-me completamente familiarizado com os processos de treino», destaca.
 
O convite feito pelo emblema estoniano previa apenas que orientasse o escalão de sub-11. Contudo, a saída do treinador da equipa principal como que empurrou os técnicos portugueses para o comando da primeira equipa.

«Os seniores disputam a 3.ª divisão nacional. Pouco tempo depois de ter chegado, o treinador da equipa sénior saiu e convidaram-me para fazer parte da equipa técnica. As coisas têm corrido bem e estamos a apenas três pontos de garantir a manutenção», salienta.
 

O treinador português à conversa com a equipa de sub-11 do Harju Jalgpallikool.

O inverno rigoroso, com os termómetros a atingirem os dez ou vinte graus negativos, obriga a que os campeonatos decorram entre abril e outubro. E, pelo que observou até ao momento, Miguel Machado desfaz-se em elogios à qualidade dos praticantes.

«A primeira divisão tem alguns clubes que costumam disputar a fase de apuramento para as competições europeias. A Estónia é um país em que o futebol está em crescimento. Há qualidade, mesmo nos escalões de formação. Acho que é necessário limar algumas arestas nas etapas finais da formação sobretudo na transição para o escalão sénior. A ideia de que o futebol na Estónia é limitado, é falsa. Fiquei bastante surpreendido, pela positiva, pela qualidade que os miúdos possuem. É um país em crescimento e porventura dentro dos próximos anos vai surpreender muita gente», perspetiva.

Uma realidade totalmente antagónica daquela que encara no quotidiano. Porém, nada que faça Miguel Machado e os restantes elementos de clube baixarem os braços.

«Na realidade em que estou inserido, noto algum amadorismo na forma de interpretar o jogo e na assiduidade aos treinos. Não há o profissionalismo que existe em Portugal, mesmo nestes patamares mais inferiores. O futebol é encarado como um passatempo. Estamos a tentar incutir outra forma de ver o jogo e estamos a conseguir», refere.

Emigrar, essa necessidade tão portuguesa

Miguel Machado é um entre muitos portugueses que procura a felicidade além-fronteiras. Uma necessidade que obriga a esquecer as saudades e o conforto do lar. As fronteiras há muito tempo que se abriram para os treinadores portugueses, surgindo como primeira opção para quem quer enveredar pelo profissionalismo e por uma carreira.

«Infelizmente, quem anda no futebol tem de emigrar. É uma solução obrigatório para sermos profissionais. Em Portugal poucos clubes conseguem pagar o valor adequado a um treinador de forma a exigir que seja profissional. Sempre tive a ideia de sair de Portugal para chegar a um nível profissional. Nunca foi uma prioridade, mas entretanto, surgiu a oportunidade e agarrei-a», recorda.

O sonho do profissionalismo e a realização pessoal imperam, ao invés das saudades, naturais diga-se, de Guimarães. E, por isso, Miguel Machado garante que voltar não faz parte dos seus planos a curto prazo.

«Penso em regressar mas não estabeleço uma data para isso. Tem que ser uma proposta que valha muito a pena. Portugal é um país muito bom para viver mas para nos realizarmos profissionalmente está longe de ser o local ideal. Vale a pena procurar desafios no estrangeiro. Acima de tudo, sinto que somos mais valorizados cá fora do que dentro do nosso país. Valorizam mais o nosso trabalho, compreendem melhor as nossas ideias e ajudam-nos a concretizá-las. Desde que saí de Portugal, enquanto treinador pelo facto de ter atingido o patamar de profissional, sinto-me recompensado pelo sacrifício. É mais fácil do que dividir o tempo entre duas profissões. Conseguimos crescer muito mais do que quando acumulámos vários cargos. Para mim, vale a pena» conclui.

As margens do Báltico, o local onde o sonho do profissionalismo se tornou realidade para Miguel Machado.