Estórias Made In é uma rubrica do Maisfutebol que aborda o percurso de jogadores e treinadores portugueses no estrangeiro. Há um português a jogar em cada canto do mundo. Este é o espaço em que relatamos as suas vivências.

O futebol feminino está a crescer por todo o mundo. Nada que seja uma completa novidade por cá, depois de um ano de reestruturação vivido nos modelos competitivos. O toque de bola das mulheres bateu recordes de audiência, embalados pela inédita chegada das quinas à fase final do Campeonato da Europa.

Por esta altura, nem a abertura portuguesa ao estrangeiro estranha. Na República da Irlanda, por exemplo, já se contratam portugueses para melhorar as estruturas dos clubes. Em março o Kilkenny United WFC partiu para a terceira experiência na liga nacional. Antes tinha sido penúltimo em 2015 e cerrado a tabela no ano passado. Para escurecer a moldura, não conquistava pontos há ano e meio.

Balanços feitos, o emblema do sudeste irlandês resolveu trocar elementos do estratagema. Na base manteve o perfil etário mais baixo do campeonato, no topo alterou de estrutura técnica. Por lá passou a andar um português: Pedro Rodrigues, de 36 anos, com funções de adjunto. «Os objetivos traçados eram única e exclusivamente para continuar o desenvolvimento da equipa tecnicamente. Era uma equipa muito nova, com uma média de idades de 19 anos», revela o treinador português em conversa com a MFTotal.

O chefe maior sucumbiu logo à terceira jornada. Pedro foi promovido a técnico principal, abraçando uma experiência singular na carreira. Já os métodos de trabalho mexeram poucos milímetros. «Continuou tudo igual. Claro que quando passas a treinador principal mudas sempre qualquer coisa. Mas eu já conduzia as sessões desde o início da época. Acho que a equipa se passou a identificar um pouco mais comigo e com a minha maneira de encarar o jogo», sustenta.

A sina também não arredou pé. Novo ciclo de três derrotas, entre 27 golos sofridos e três marcados, levaram o timoneiro limiano a solicitar a saída no final de maio. «Os resultados nunca tiveram influência. Uma equipa que nunca ganhou um jogo em quase três anos não te pode exigir muito mais. O clube está demasiado desorganizado e a falta de condições financeiras deixou-me sem outra alternativa», confessa.

Na aventura pelo Buckley Park, Pedro Rodrigues nunca virou a cara à luta. Um mês antes de sair esteve às portas de celebrar um ponto. O Kilkenny viria a sofrer o 3-2 com o Galway a cinco minutos do fim, tapando as luzes erguidas ao fundo do túnel. O terceiro treinador da temporada apareceu durante a última semana. Casey McQuillan foi nomeado na sequência de um anúncio colocado pelo clube irlandês no Twitter. Uma ocorrência curiosa, embora já observada noutras latitudes.

«Os campeonatos do Inatel em Portugal são bem mais organizados»

Na verdade, o técnico português não caiu de paraquedas nesta realidade. Na República da Irlanda ganhou notoriedade a defender as cores do distrital Abtran FC. Em 2014 sorriu mesmo para a Shield Cup. No final desse ano fez um jogo-treino contra o Cobh Ramblers, emblema onde o antigo «red devil» Roy Keane começar a dar pontapés na bola. Perdeu, mas foi convidado pelo treinador principal para ser seu adjunto.

De regresso ao futebol masculino, Pedro ergueu a Munster Cup. A competição junta as melhores equipas daquela província irlandesa, incluindo os primodivisionários Cork City e Limerick. Três anos depois estava novamente a saborear os palcos femininos, ao serviço do Kilkenny United em plena primeira divisão. A Women's National League segue apenas na sétima edição. É disputada de março e outubro por sete equipas e potencia três voltas completas. Ou seja, as equipas podem jogar duas vezes em casa e outra fora contra o mesmo adversário, ou vice-versa.

Antes do Kilkenny, Pedro Rodrigues foi adjunto do Cobh Ramblers (Foto arquivo pessoal)

«Ao todo, são três escalões diferentes como em qualquer outro lugar do mundo. Agora comparado, por exemplo, com as ligas em Portugal não tem mesmo nada a ver. Falta uma estrutura enorme nas ligas regionais e distritais. Em alguns casos, os campeonatos do Inatel em Portugal são bem mais organizados do que as ligas regionais aqui», atira, sem esquecer a proximidade à vizinha Inglaterra.

«Quando pensas que estás ao lado de um país onde o futebol é rei e senhor, chegas aqui e constatas esta realidade…Foi um misto de surpresa e desilusão. Tal como no masculino, o futebol feminino na Irlanda ainda está bastante atrasado. Há mais qualidade do que competitividade, até porque as equipas da liga inglesa continuam a levar jogadoras daqui todos os anos», aponta.

Treinar raparigas? «Há coisas que não podem ser replicadas da vertente masculina»

Natural de Ponte de Lima, Pedro começou a carreira na condição de futebolista. «Joguei em alguns clubes do norte, maioritariamente das distritais do Porto e de Viana do Castelo. Mas nunca tive grande sucesso como jogador. Acho que isso foi o que me fez deixar de jogar tão cedo», recorda. Os horizontes viraram-se para o ramo imobiliário, mas a crise económica tornou a dar a voltar ao texto em pouco tempo.

«A vida em Portugal não estava fácil. Na verdade ainda continua assim. [risos] Tinha amigos na Irlanda e fui para lá, inicialmente por um ano. Acabei por ficar», conta. Nos primeiros instantes, o ofício arranjado como segurança num centro comercial escondeu os relvados do pensamento. «Acho que acontece com toda a gente que anda no futebol. Às vezes chateias-te e pensas em deixar tudo para trás, mas não consegues! O futebol será sempre assim».

Aos poucos foi consumado o regresso ao cheiro da relva, entre o curso de Psicologia Desportiva e os primeiros níveis técnicos da UEFA. Por outras palavras, o limiano de 36 anos deixou de jogar com homens para ir treinar mulheres. Jamais poderia ter encontrado melhores estímulos. «[Os dois géneros] São completamente diferentes! E acho que isso torna o desafio bem mais interessante quando te mudas do masculino para o feminino. No feminino fazem-te mais perguntas e esperam mais de ti, mas também aprendem mais rápido e são mais dedicadas», estabelece.

Absorvido por novas rotinas, Pedro assume ter mudado de comportamentos dentro da realidade futebolística. Para ser uma espécie de segundo pai de duas dezenas de miúdas. «Treinar mulheres, especialmente tão novas, é muito exigente. O teu discurso direto com as atletas tem necessariamente de mudar e a tua figura passa a ser mais paternal do que qualquer outra. Depois, há coisas que não podem ser replicadas da vertente masculina. Por exemplo, nunca entro no balneário sem bater à porta ou pedir a alguém para verificar se é seguro fazê-lo».

Em abono da verdade, cada vez mais as raparigas vão conquistando terreno no mundo da bola. Uns são mais tolerantes ao fenómeno, outros ainda não conseguem rasgar os preconceitos. «Uma vez, num treino conjunto com uma equipa masculina, uma das minha jogadoras fez dois túneis seguidos a um jogador. O miúdo ficou tão embaraçado que saiu do campo a chorar», lembra o treinador português.

Pedro Rodrigues orienta o último classificado da liga irlandesa de futebol feminino (Foto: Kilkenny United WFC)

Por isso, esbater pré-julgamentos não será um feito concretizado da noite para o dia. «Ainda se olha para o futebol feminino como algo sem muita importância. Até para nós treinadores muita gente olha de uma maneira diferente quando treinas mulheres. Ainda há um caminho longo a percorrer até os níveis estarem equiparados, considera, deixando um padrão no ar: «Há umas semanas visitei o Arsenal e disseram-me que a equipa feminina joga poucas vezes no Emirates».

Mesmo a 1200 quilómetros da terra natal, Pedro Rodrigues segue à distância os progressos de Portugal na modalidade. Aliás, enquanto esteve no ativo ponderou captar jogadoras nacionais para o futebol irlandês. «Ainda é muito cedo para isso. Pessoalmente adorava, mas as equipas aqui ainda não têm condições para tal», lamenta.

Para já, enquanto faz uma pausa na carreira, prefere ficar rendido ao crescimento do cantinho mais ocidental da Europa. «Portugal tem sido exemplo. Também graças à abertura dos clubes para com as suas equipas femininas. Sporting e SC Braga têm sido extraordinários. Temos excelentes jogadoras e treinadores em Portugal. Acredito que os frutos começarão a surgir em breve». Pode ser já a partir do próximo dia 19?