Estórias Made In é uma rubrica do Maisfutebol que aborda o percurso de jogadores e treinadores portugueses no estrangeiro. Há um português a jogar em cada canto do mundo. Este é o espaço em que relatamos as suas vivências.

De Paços de Brandão, no norte de Portugal, a Gwangju, no sul da Coreia do Sul. Como está a correr a aventura de Ricardo Barros, avançado que em fevereiro trocou o Cova da Piedade pela K-League, do outro lado do mundo?

«Para ser sincero? Não estou a gostar muito disto», dispara para início de conversa o avançado natural da freguesia de Santa Maria da Feira, que cresceu para o futebol no clube da terra e teve uma carreira em ascensão do Campeonato de Portugal à II Liga até esta sua primeira época fora do país.

São João de Ver, Sp. Espinho, Feirense Marítimo B, Feirense, Benfica de Castelo Branco, Sertanense, Leixões… Até que este trajeto que começa em Paços de Brandão e vai até à Cova da Piedade até meio desta época tem um desvio absolutamente imprevisto, quando surge um convite do Gwangju FC, que estagiou no Algarve, através do empresário.

Com 27 anos e uma proposta choruda, Ricardo hesitou, mas aceitou: «O aspeto financeiro é muito importante, não vou mentir. Só há quatro ou cinco clubes em Portugal capazes de pagar o salário que recebo aqui. Mas sinto falta dos pais, irmã, namorada, cão…»

Mesmo tendo em conta as saudades da família, estranhamos a resposta, de chofre, sobre a experiência no Extremo Oriente, que começou há pouco e onde até tem como companheiro de aventura outro português, o preparador físico Franclim Carvalho.

A explicação surge de seguida:

Aqui a mentalidade extremista em relação ao trabalho; entramos no centro de estágio às 9 horas e saímos às 19 horas. Mesmo quando não há treino há jogadores que vão caminhar às 7h30 da manhã e antes disso alguns ainda vão ao ginásio. Fazemos treinos duríssimos de mais de duas horas, tanto de manhã como à tarde. Exceto eu e mais três elementos da equipa, todos os jogadores e equipa técnica vivem no complexo desportivo de Mokpo, a mais de 45 minutos da cidade de Gwangju (que com cerca de 1,5 milhões de habitantes é a sexta maior do país). São jogadores profissionais, mas moram juntos, como se fossem miúdos das camadas jovens. E os treinadores também.»

«Vou chamar os teus pais», disse o treinador a um profissional

Mesmo vivendo num apartamento em Mokpo, perto do centro de estágio, em que tem como vizinhos o seu compatriota e o colega de Olivier Bonnes, médio francês com raízes no Níger, o outro ocidental da equipa, Ricardo Barros confessa sentir-se deslocado e estranha muito esta sua primeira experiência fora de Portugal.

«Na Coreia do Sul eles vivem para trabalhar... E ao sábado à noite bebem. É uma mentalidade completamente diferente da nossa. Se às 21 horas eu quiser ir a um restaurante, provavelmente, já não me servem. A grande diferença é que eles têm muito mais dinheiro que nós. No entanto, não o sabem gastar. Um médico sul-coreano de quem fiquei amigo disse-me que na sua profissão chega a trabalhar 14 horas por dia e tem cinco dias de férias por ano.»

As diferenças fazem sentir-se também em termos futebolísticos. O estilo de jogo sul-coreano é bem diferente da capacidade no contacto físico e bom jogo aéreo que caracterizam o avançado de 1,90 metros.

«Eles querem só correr e ter bola no pé para sair a jogar em tabelas. Nós, em Portugal, aprendemos que é a bola que corre e procuramos o espaço vazio. No entanto, estranho que em vez de quererem aproveitar as minhas características queiram adaptar-me ao estilo deles.»

Ao contrário da vizinha China, que não só tem investido em futebolistas internacionais de renome mas também em técnicos conceituados, na K-League há uma obrigatoriedade de que o técnico principal seja sul-coreano.

Ricardo Barros salienta as diferenças na abordagem ao trabalho e na relação com a equipa técnica, focando a dissonância com o técnico principal Nam Ki-Il.

«Aqui é o treinador manda e não há discussão. Ele encarna quase o papel de um pai. Mesmo que ele diga algo que possa estar errado, não há a mínima hipótese de rebater. Mesmo o preparador físico português não tem abertura para poder executar as suas ideias. Já me colocaram à baliza a tentar defender bolas de cabeça… Os guarda-redes, coitados, fazem piques de campo inteiro... O treinador decide e só podemos dizer “sim senhor”», refere Ricardo, revelando um episódio que viveu recentemente no balneário:

Houve um jovem jogador que fez um penálti num jogo em que perdemos. Dois dias depois, na palestra antes do treino, o nosso treinador deu-lhe uma reprimenda terrível à frente de todos: “Se voltas a falhar, vou chamar os teus pais!”. E ele ficou a tremer. Um jogador de 23 anos, profissional, a tremer como um miúdo…»

«Annyeonghaseyo» como sinal de respeito

Há, porém, outras práticas que o português estranhou. Desde logo, o respeito pelos mais velhos. «Ao almoço, não podemos começar a comer antes do jogador mais velho da equipa (o defesa Lee Jong-Min, que tem 33 anos) ou sequer pegar no tabuleiro da comida antes dele. Cada vez que passamos por uma pessoa com mais idade temos de a saudar e fazer uma vénia: “Annyeonghaseyo”, uma espécie de “olá”. Há outro hábito engraçado: os jogadores que não são convocados ficam à espera que o autocarro da equipa parta para o jogo para dizerem adeus. Enfim, é tudo diferente.»

Outras barreiras são a língua e a comida. É muito complicado encontrar alguém que fale inglês e só com o tradutor é possível comunicar no clube. A comida é também muito diferente: «Gosto de algumas coisas, mas é uma cozinha muito picante. Eles comem malaguetas à mão! Por isso é que têm a cara cheia de borbulhas… (risos)» E paixão pelo futebol? «Não têm. Pelo menos como nós. Eu, por exemplo, acordo de madrugada para ver um Real Madrid-Barcelona ou um Benfica-FC Porto. A maioria dos meus companheiros de equipa mal conhece os grandes clubes e os jogadores do futebol europeu», explica o jogador do Gwangju, que desde que chegou fez apenas um jogo pela equipa.

Tudo por culpa de uma lesão. «Cheguei aqui com 25 jogos nas pernas. Fiz toda a pré-época. Era só correr, correr, correr. Estava morto. Na minha estreia, contra o Pohang (2.ª jornada), lesionei-me num adutor e estive quatro semanas parado. Fiz uma série de exames e testes. Acho que estou pronto para regressar. Agora, é treinar quase até desmaiar.»