Estórias Made In é uma rubrica do Maisfutebol que aborda o percurso de jogadores e treinadores portugueses no estrangeiro. Há um português a jogar e a treinar em cada canto do mundo. Este é o espaço em que relatamos as suas vivências.

De Guimarães para a China, tendo a Arábia Saudita como ponto de passagem. Esta é a história de Tozé Mendes. Aos 38 anos, o treinador português coordena os escalões de formação e treina os juniores do Liaoning Whowin, equipa do nordeste da China, com academia em Shenyang, a maior cidade da província que dá nome ao clube.

Tozé Mendes jogou nas camadas jovens do Vitória de Guimarães. Mas foi a partir do banco de suplentes vitoriano que cultivou a «paixão» pelo futebol. Tudo começou em 2002. Orientou infantis, iniciados, juvenis e juniores do clube. Em 2011, rumou à Arábia Saudita e está, desde janeiro de 2016, no continente asiático. A paragem no outro lado do mundo encontra na Weifang Cup, torneio jovem realizado na China, o ponto de partida para uma aventura de «dificuldades». Um constante «reinventar».

«Em 2015/2016 fui promovido a treinador dos juniores do Vitória. Fomos à Weifang Cup com Wolfsburgo, Chivas Guadalajara, Argentinos Juniors, River Plate… no ano passado foram lá Benfica e Real Madrid. O Vitória apareceu como um desconhecido. Na primeira jornada, ganhámos ao River Plate, campeão em título. Tivemos um percurso muito bom. Fomos eliminados nas meias-finais com o Chivas e perdemos o 3.º e 4.º lugar com o Den Haag. Surgiu a proposta devido à campanha no torneio. O Liaoning ficou interessado, surgiu a proposta, muito forte em termos financeiros, num projeto de três anos», conta. Isso, o sair «da zona de conforto» e o fazer «evoluir o futebol chinês» foram motivos de sobra para uma mudança radical na vida pessoal e profissional do técnico.

A proposta surgira em novembro de 2015. Tozé chegou então a acordo com o Vitória de Guimarães - com quem tinha contrato - para ficar até ao fim da primeira fase do campeonato de juniores. Depois, um até já a Portugal, de «decisões muito complicadas»: a ida para a China coincidiu com o nascimento da filha. «Não é que o dinheiro seja tudo na vida, mas junto com a família, com a minha esposa, aceitei abraçar», expõe.

Com Tozé, seguiram o adjunto Nuno Sampaio e o treinador de guarda-redes, Vítor Dimas. Todos para a academia do Liaoning. Um trio de partida para o desconhecido, mas vital entre si para a adaptação. «Fomos o suporte uns dos outros, porque não foram fáceis os primeiros tempos. A adaptação correu bem, a cidade é fantástica. Poluição não sentimos muito, porque vivemos numa zona mais afastada, a norte». Para se ter uma ideia, Shenyang tem pouco mais de oito milhões de habitantes – quase o total da população portuguesa.

Tozé Mendes, ao meio, com Nuno Sampaio e Vítor Dimas na China

Hábitos, métodos, culturas. Tudo (muito) novo para Tozé Mendes. «No início fazíamos as refeições na academia e o que mais custou foi o horário das refeições. Eles tomam o pequeno-almoço às sete da manhã, almoçam ao meio dia e às cinco, seis da tarde, já estão a jantar. Mas viemos morar para a cidade e desde então cozinhamos em casa. De vez em quando, comemos fora, procuramos restaurantes europeus. Mas já temos bastante prática a comer com pauzinhos (risos)», conta.

E se a origem de Tozé e companhia na China é, por vezes, desconhecida, o rótulo de um jogador mundialmente exultado tira as dúvidas. «Perguntam-nos, por curiosidade, de onde somos. Portugal, uns conhecem, outros não. Mas quando falamos em Cristiano Ronaldo conseguem associar».

«Numa semana temos de efetuar seis jogos»

Tozé Mendes chegou à China com a missão de revitalizar a formação do Liaoning. Emblema profissional desde 1994, tem a equipa sénior na Superliga Chinesa. De resto, os clubes que disputam esta são os mesmos que integram, nos juniores, o principal campeonato do escalão, numa época que vai de março a novembro. Na primeira temporada, um 12.º lugar em 16 equipas, após «um cenário não catastrófico, mas quase», lembra. «Chegámos lá, não tínhamos jogadores, tivemos de fazer captações. Conseguimos ir a escolas, a outros clubes e cidades». De 32 atletas à altura, a academia passou a ter os 48 de hoje, divididos em três escalões. Ainda assim, Tozé realça a falta de argumentos perante outros plantéis jovens. «Só para ter noção, no torneio anterior jogámos com uma equipa que tinha pago cinco milhões de yuans [cerca de 645 mil euros] por um jogador. O clube não está a fazer uma aposta na formação, mas estamos lá para trabalhar», considera.

Técnico luso em ação nos sauditas do Al-Nassr, em 2011

Pese o crescimento de atletas, Tozé aponta lacunas ao formato competitivo. «No campeonato fazemos cinco momentos competitivos [digam-se torneios] em que, numa semana, temos de efetuar seis jogos. Cheguei a ir para torneios com 13, 14 jogadores. Isso saia da minha zona de conforto. É um quadro completamente desajustado. Jogamos segunda, terça, descansamos quarta. Jogamos quinta e sexta, descansamos sábado. E jogamos domingo e segunda», pormenoriza. As falhas, defende, estendem-se à própria metodologia que parte do treino. «Eles focam-se na quantidade e não na qualidade», frisa, recordando um episódio curioso:

«Tivemos um jantar com um treinador de uma escola à qual fui observar jogadores para a secção de sub-10. Ele perguntou-me quantas vezes os sub-10 treinavam em Portugal. E eu: “treinam três vezes por semana, uma hora, mais o jogo”. Ele começou a rir-se de maneira irónica: “Nós aqui treinamos seis vezes por semana!”. É inconcebível, não têm tempo de recuperar. Tem graves consequências na qualidade do jogo», aponta o vimaranense.

O choque de realidades foi evidente a todos os níveis. «Nunca pensei que iria passar por tantas dificuldades, mas ainda bem que passei. Realidade diferente na compreensão do jogo, cultura desportiva, futebolística. Eles ainda estão muito agarrados à parte física. Está a custar mudar, porque infelizmente temos perdido mais vezes do que o que ganhamos. Encontramos resistência à mudança de mentalidade. Mas obriga a dar tudo de nós». Com uma das cinco fases da liga de juniores por disputar, o Liaoning Whowin está no 11.º lugar da liga de juniores.

O tradutor que não sabia o que era um guarda-redes

Passar a mensagem aos jogadores é uma dificuldade pela barreira linguística. «Sou uma pessoa extremamente emocional e passar a mensagem não é fácil». E mais difícil ficaria com o primeiro tradutor que teve. «Na primeira reunião falei na palavra guarda-redes e ele [tradutor] perguntou: “O que é um guarda-redes?”. Ele não sabia. Mas com a ajuda do clube conseguimos um tradutor muito bom e tem ajudado imenso», ressalva.

Vista aérea da academia do Liaoning, sediada em Shenyang, no nordeste da China

Das palavras aos atos, mais um episódio caricato. Desta feita, com um guarda-redes da equipa de sub-18. «No primeiro treino, ele estava a fazer um exercício e as bolas estavam a escorregar das luvas. Estavam sujas, o Vítor Dimas passou por água e já não escorregavam. Eles ficaram espantados como se fosse uma coisa do outro mundo», conta Tozé Mendes, exemplificando a «falta de cultura desportiva» local. «As coisas estão a melhorar, mas eles têm um longo percurso. Como costumamos dizer: o dinheiro não compra tudo».

A academia do Liaoning, dia a dia de Tozé e da sua equipa técnica, é olímpica. Dispõe de quatro campos para o clube – dois em relva natural, dois em sintético - mas também campo de tiro, velódromo, pista de atletismo, complexo de ginástica e, claro, a parte de futebol para as equipas principal, B e formação. Uma realidade, de resto, mais estável do que no passado. Isto porque, em 2015, o Liaoning jogava a cerca de 300 quilómetros da cidade do centro de treinos. «Treinavam, imaginemos, em Guimarães e iam jogar a Lisboa», compara Tozé, licenciado em Educação Física e a concluir o quarto nível de treinador UEFA Pro.

Antes da China, o Médio Oriente

Tozé Mendes teve a primeira experiência no estrangeiro entre 2011 e 2012, na Arábia Saudita. Tudo começou num convite de Luiz Felipe, atual coordenador dos chineses do Tianjin Teda e ex-treinador do V. Guimarães B que, um ano antes, levara os sub-17 do Al-Nassr ao título de campeão, quebrando um jejum de 21 anos sem títulos no clube.

Tozé Mendes na Arábia Saudita

De Guimarães a Riade, quase 7 mil quilómetros para treinar essa mesma equipa. «[O Luiz] foi convidado para coordenador da academia e lançou-me o desafio de assumir a equipa de sub-17. Nessa época fomos à final da taça, perdemos e no campeonato acabámos em terceiro, com os mesmos pontos do segundo», recorda Tozé, deixando o desejo de juntar a equipa de trabalho criada no Médio Oriente, que incluía ainda os portugueses Rui Veiga – hoje na China – Luís Esteves, agora no Benfica e Luís Castro, hoje coordenador da formação do V. Guimarães.

O regresso a Guimarães e o título nacional de juvenis

Tozé voltou a Portugal em 2012 para acumular funções de adjunto na equipa B do V. Guimarães com o cargo de treinador dos juvenis. Foi por esta equipa que fez história no futebol jovem do clube. Em 2013/2014, alcançou o único título nacional de juvenis dos minhotos, superando Benfica, Sporting e FC Porto. «Essa época vai ficar para sempre gravada. Tinha uma família. Benfica na altura com Renato Sanches, Yuri Ribeiro, João Carvalho, Sporting com jogadores internacionais, habituados a seleções. Conseguimos à custa de muito trabalho», lembra, emocionado ao falar de um clube «diferente». «Como costumo dizer, nascido e criado em Guimarães, nós somos o Vitória. Aquele que sai fica sempre com grande carinho. Tem uma massa adepta que nos bons momentos dá tudo, mas nos maus cobra imenso e uma das preocupações era passar a mensagem aos jogadores de que não é fácil vestir a camisola do rei», recorda.

Tozé Mendes levantado pelos jogadores do V. Guimarães após o título nacional de juvenis, em 2013/2014

Dessa equipa, há um jogador que já mora na equipa principal: Hélder Ferreira. O treinador não deixa de manifestar, por isso, o orgulho no trajeto dos seus «meninos». Mas, como líder de banco e formador, alerta. «O Hélder acaba por ser considerado o melhor jogador do campeonato, mas na primeira jornada foi para o banco. Aprendeu a lição, porque ás vezes não é tudo um mar de rosas».

«Gostava de ficar na China pelo menos cinco anos»

Tozé Mendes tem contrato até fevereiro de 2019. É para cumprir e, se possível, gostaria de acrescentar mais dois. E voltar a Portugal em breve? «Para ser sincero, não. Gostava de ficar na China pelo menos cinco anos, acrescentar dois ao meu contrato, embora o futebol seja um mundo volátil». Mesmo pagando pela distância da família, é por esta que defende a opção. «Tenho noção pelo que estamos a passar e a minha esposa tem sido uma super mulher. Reconhecendo que o dinheiro não é tudo, a questão financeira é boa e poderei proporcionar à minha filha, no futuro, condições que em Portugal nunca poderia», acredita.

Embora não esteja nos planos voltar tão cedo a casa, Tozé Mendes não foge à questão que, para já, é um «sonho». Chegar à I Liga? «Não vou dizer que é um objetivo de vida, mas para ser honesto, sonho, claro. Sonho chegar à primeira liga e um dia sentar-me no D. Afonso Henriques como treinador principal», confessa.

Tozé Mendes ao serviço do V. Guimarães

Liaoning. Província chinesa com cerca de 43 milhões de habitantes. Projeto, para já, da vida de Tozé Mendes. E igual nome de um porta-aviões da Marinha do Exército de Libertação Popular da China. A «analogia perfeita» para a «batalha» diária do português. «Todos os dias podem acontecer coisas novas. Tive momentos no início em que chegava a casa no fim do treino e chorava porque as coisas não saiam como planificado», revela.

Determinações e certezas. Receios e dificuldades. No meio disto e muito mais, a certeza de alcançar «um ponto de equilíbrio» do outro lado do mundo.