Mais longe e mais alto é uma nova rubrica do Maisfutebol, que olha para atletas e modalidades além do futebol. Histórias de esforço, superação, de sucessos e dificuldades.

Em agosto, Filipa Martins fez história ao conseguir a melhor classificação de sempre da ginástica artística portuguesa - mesmo com uma lesão que a atormentou durante meses - mas o resultado ainda lhe sabe a pouco. A atleta do Sport Clube do Porto, que começou na modalidade por ser «uma criança com muita energia» e não se imagina a viver sem a ginástica, contou ao Maisfutebol os momentos altos e baixos de uma carreira que não passa despercebida a quem acompanha (mesmo que só de vez em quando) a modalidade.

«Fazer história» é uma constante para Filipa Martins. Em 2013, no Campeonato da Europa, tornou-se na primeira ginasta sénior nacional a conseguir o apuramento para uma final de all around. Um feito que superou em 2014, ao conseguir o mesmo, mas no Campeonato do Mundo. 2014 foi um ano recheado de sucessos para a jovem ginasta. Conquistou três medalhas (ouro, prata e bronze) na Taça do Mundo de Anadia e duas na Taça do Mundo de Medellin, Colômbia, (uma de ouro e uma de bronze). E ainda em 2014 venceu também o circuito de Taças do Mundo nas paralelas assimétricas. Já em 2015, conquistou duas medalhas de bronze na Taça do Mundo de Cottbus, na Alemanha, uma medalha de prata na Taça do Mundo de Ginástica Artística, em Anadia, e a medalha de bronze na Trave na 28ª edição das Universíadas de Verão que decorreram em Gwangju, na Coreia do Sul.

Um currículo impressionante para uma atleta que, aos 20 anos, tem já 16 de modalidade. «Comecei aos quatro anos por iniciativa dos meus pais. Eu tinha muita energia, não parava quieta. A mãe de uma das minhas amigas, que já conhecia o Sport Clube do Porto, perguntou se não queria experimentar», conta Filipa Martins. E foi amor à primeira vista.

«Eu gostava de estar no ginásio e fazer amigos, de aprender coisas novas, de experimentar.» Depois, as coisas tornaram-se mais sérias e surgiu um novo motivo de interesse. «Quando comecei a competir regional e nacionalmente, com dez anos, gostei da adrenalina. Quando não conseguia ganhar, queria fazer mais coisas, para ser melhor do que as outras», relata.

O gosto pela modalidade e pela competição é tanto que, apesar de admitir que às vezes lhe passou pela cabeça «se os sacrifícios valeriam a pena», não os viu nunca como uma coisa má, nem nunca quis desistir. «É um esforço necessário para ser melhor, conseguir fazer mais coisas, e ainda por cima é numa coisa de que eu gosto», frisa.

E já na adolescência a ginástica lhe ocupava muitas horas. «A partir dos 13 anos, estava no 7.º ano, comecei com os treinos bidiários, três dias por semana. E no resto dos dias só com um treino diário.» Como era então o dia a dia da jovem Filipa? «De manhã ia para a escola, treinava antes do almoço, depois ia almoçar, voltava para a escola, e depois treinava outra vez. Só aos fins de semana havia tempo para estar com a família e socializar com os amigos».

Nos períodos mais intensivos, nas preparações para campeonatos da Europa, a carga de treinos aumenta e passa a seis horas por dia quatro vezes por semana, com treinos de três horas de manhã e outras tantas à tarde.

«Quando era adolescente senti um bocadinho», confessa. Por isso, como é sempre muito solicitada pelas ginastas mais novas para fotografias e autógrafos, aproveita para «incentiva-las a não desistirem» «Sei que quando chega a adolescência a maior parte desiste.»

Conciliar a competição com a escola foi funcionando graças ao apoio dos professores. «Quando eu faltava davam-me acesso à matéria que eu tinha perdido». Mas no ensino superior tornou-se «um pouco mais difícil». «A maior parte dos professores não faz isso e também é difícil estarem a conseguir dar-me as aulas todas que eu perdi», explica. E o calendário das provas também não ajuda. «Os Europeus são sempre já no fim ou a meio do segundo semestre, há estágios, vamos para fora… Em agosto começa a preparação do Mundial, que é no fim de setembro, início de outubro, e nesses meses nunca consigo estar presente na faculdade, que é quando começam as aulas. Entrar a meio é muito difícil».

Por isso a carreira académica acabou por ser a sacrificada. «Entrei na faculdade há três anos. No primeiro ano fiz meio ano, no segundo ano congelei a matrícula por causa dos Jogos Olímpicos – queria dedicar-me só a isso - e agora estou a retomar o primeiro ano», conta, mas frisa que a opção foi consciente. «Para mim, a prioridade é a ginástica porque é uma carreira que acaba relativamente cedo. E também porque não quero acabar o curso e arranjar um emprego, quero continuar ligada à ginástica», diz Filipa, aluna da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto.

E dá para viver da ginástica em Portugal? Filipa Martins nem hesita na resposta: «É impossível». «Não se consegue ganhar para isso. Já mesmo para treinar assim não temos muitos apoios, muito menos para conseguir pagar uma casa, um carro… impossível».

Os resultados que conseguiu deram-lhe acesso à bolsa olímpica. «900 euros, porque têm três níveis, eu estou no mais baixo. Com esse valor, tenho que pagar deslocações, equipamentos de treino, mais a faculdade… é complicado», conta. Mas até essa bolsa já terminou. «Foi só até aos Jogos Olímpicos, neste momento já não estou a receber. Para já vou custear as minha coisas até à próxima prova internacional, em que consiga fazer resultados para entrar outra vez no projeto olímpico - no caso, durante os próximos quatro anos».

O sonho Olímpico

Este ano Filipa Martins conseguiu o sonho dos Jogos Olímpicos e veio fascinada do Rio de Janeiro. «É um ambiente diferente, espetacular. Estar com pessoas de todos os desportos e todas muito boas. Olhava para qualquer lado e só via gente conhecida, que normalmente só vemos na televisão, mas todos acabam por se dar bem, mesmo de outros países, mesmo não se conhecendo. Foi super giro», conta entusiasmada.

Foi 37ª no all-around, o melhor resultado de sempre na ginástica artística portuguesa, mas ainda lhe soube a pouco. «Eu sei que poderia fazer mais, mas foi o melhor que consegui fazer naquele momento. Fiz história, mesmo não estando bem, mas na próxima vez quero conseguir fazer melhor», conta.

Mas dá para sentir orgulho pelo que fez? «Claro que dá. Só o estar lá já é um passo muito grande porque já fui para o apuramento mal e foi uma vitória ter conseguido fazer este processo todo até aos Jogos Olímpicos».

«Fiz os Jogos Olímpicos praticamente com um pé partido. Era uma lesão que eu tinha desde Abril, por isso, conseguir lá estar e acabar a minha prova foi quase como ganhar uma medalha de ouro, porque depois do primeiro aparelho não conseguia sequer andar. Foi mesmo preciso gerir o estado psicológico e físico com a minha treinadora».

Aqui, Filipa Martins, sempre tão animada, não consegue disfarçar na voz o sofrimento que passou durante esses meses em que teve «receio de não conseguir ir», mesmo tendo conseguido o apuramento. «Tive fases difíceis na preparação, em que passei um bocadinho mal.»

«Não costumo ser muito nervosa, muito ansiosa, nem stressada, mas é complicado com as lesões. Sou muito competitiva, adoro competir e gosto de estar no meu melhor, e fico mesmo chateada quando tenho alguma coisa. Fico frustrada por não conseguir fazer o que sei, por ter de parar os treinos porque tem que ser, é o melhor para a saúde… é complicado gerir tudo», conta.

Sobre as críticas à falta de medalhas que se ouviram durante os Jogos Olímpicos, Filipa Martins diz que se devem a desconhecimento. «O problema é que a generalidade das pessoas não conhece as modalidades e não sabe os sacrifícios que nós fazemos para estar nos Jogos Olímpicos. Muitas pessoas não têm sequer ideia se estamos lesionados ou não porque visto de fora, se calhar, parece tudo bem. Muitos olham para as medalhas e só conseguem criticar.»

«Eu já parti a mão, já fui operada ao pé, e daqui a uma semana vou ser operada novamente, à lesão com que fui aos Jogos».

E no Rio, como noutras provas internacionais, competiu com atletas que têm «condições de trabalho muito diferentes e ginásios muito melhores». «Cá em Portugal treina cada um no seu clube e na seleção nacional só temos estágios quase quando há competições importantes como campeonatos da Europa e do Mundo. Fazemos uma ou duas semanas de estágio antes disso no centro de rendimento em Anadia, em que temos o melhor pavilhão, os melhores equipamentos… Infelizmente não estamos lá o ano todo, o que seria muito bom, como acontece noutros países, e que permitem aos atletas evoluir melhor», aponta.

«Além disso, era importante que os ginastas da seleção convivessem mais tempo e treinassem juntos porque também temos provas em equipa e precisamos da ajuda uns dos outros. Até um apoio psicológico, ou só alguém com quem temos mais à vontade para falar», frisa, lembrando: «Na preparação para os Jogos Olímpicos estive completamente sozinha a treinar porque era a única que ia.»

Perfecionista e competitiva, Filipa tem como aparelhos preferidos precisamente os mais exigentes: trave e paralelas. «Basta uma pequena falha para não ter tão boas pontuações», mas é isso que a motiva.

«Segredo? Não tenho. Estou sempre focada, acho que isso é uma das minhas maiores qualidades. Sou determinada, quero sempre alcançar mais, quero ser melhor do que as outras, e acho que também tenho um bocadinho de jeito… isso já nasceu comigo», conta, com o riso que lhe é característico, e frisando: «Na vida normal não sou assim tão competitiva. Sou super-extrovertida, sempre na palhaçada».

Olhando para trás, o momento mais especial aconteceu na Taça do Mundo de Anadia, 2014. «Foi quando ganhei a prova de solo, e foi a minha primeira vitória num aparelho numa Taça do Mundo, e ainda por cima em Portugal. Ouvir o hino foi muito marcante. Como o hino não toca todo, as pessoas continuaram a cantar a cappella e é um momento que não vou esquecer», recorda.

E olhando para a frente…. «Ainda quero ir aos próximos Jogos e quem sabe aos outros a seguir, mas isso não sou eu que mando, é o corpo porque é uma modalidade com muito impacto. Depois, quando terminar, gostava de ficar como treinadora».

Um pergunta final, que era quase escusada: Imagina-se a viver sem a ginástica? A resposta saiu sem hesitar: «Não».