Mais longe e mais alto é uma rubrica do Maisfutebol que olha para atletas e modalidades além do futebol. Histórias de esforço, superação, de sucessos e dificuldades.

Futebol, ténis, surf, andebol e hipismo. Mais do que diversificado, o caminho de João Vasco Côrte-Real no desporto parecia não ter fim. Acordar todos os dias com vista para o mar tem as suas vantagens. Viver numa vila como Leça da Palmeira, onde o relvado, o court, o pavilhão ou o centro hípico ficam à mão de semear, também.

Com tanto terreno pisado, o espírito competitivo sempre foi levado aos limites. «Não gosto de perder», graceja o atleta de 24 anos em conversa com a MF Total. Feitas todas as experiências possíveis e imaginárias, o rumo começou a ficar definido com doze primaveras.

«O meu primo disse-me para experimentar o râguebi. Estava muito gordo porque tinha sido operado ao apêndice e precisava de um desporto muito puxado para perder uns quilos. Quando treinei pela primeira vez tinha encontrado o desporto da minha vida. E nunca mais saí», recorda o jogador que tem 1,80 metros e 107 quilos.

Nos dois primeiros anos só existiam dois treinos por semana. À medida que foi ultrapassando etapas de formação, João teve de encarar uma carga de trabalho mais pesada. Chegava mesmo a disputar imensos jogos na zona metropolitana de Lisboa, de onde são originárias as principais equipas do râguebi português.

«Houve e ainda há alturas muito complicadas. Claro que não podia passar tanto tempo com os amigos e a família. É preciso uma boa gestão do tempo livre e organização. Para me ir orientando, no início do ano faço um calendário com os treinos e os jogos todos», revela o jogador do Centro de Desporto da Universidade do Porto (CDUP).  

O campeonato nacional universitário de râguebi de praia já entrou no palmarés do estudante da Faculdade de Ciências do Porto (Foto CDUP-UP)

 

Sem explicar tudo, o planeamento justifica boa parte do sucesso. Entre aulas, trabalhos, exames e treinos, o ainda estudante encheu as vitrinas de casa durante três anos consecutivos: campeão nacional sub-21 na época 2012/13; bicampeão de sub-23 em 2013/14 e 2014/15. Com a camisola da maior faculdade do país ensaiou outras variantes, tendo conquistado os títulos nacionais universitários de râguebi de praia e de «sevens».

«Acho que não há segredos. Tem é de existir muito trabalho e procurar maneiras de se ser melhor dentro e fora de campo. Sem esforço e dedicação uma pessoa não consegue chegar aos seus objetivos», sustenta. Palavras tão comuns na ilusão dos jovens desportistas. Palavras essas que seguraram o desejo que João Vasco outrora havia desenhado.

«Não há nem um segundo de arrependimento»

Meses depois de ter terminado a licenciatura em Ciências do Meio Aquático pelo Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, o capitão do CDUP decidiu dedicar um ano sabático à modalidade da sua vida, até decidir o rumo profissional. Com o diploma ainda fresco na mão, João abandonou tudo para ir abraçar os antípodas. Um português na pátria dos «All Blacks», o primeiro de que há memória.

«Foi sempre um sonho jogar râguebi na Nova Zelândia. Acabei o curso e decidi ir. Era o timing certo. Aprendi muito nesse ano. Não há nem um segundo de arrependimento», assume, desvalorizando o facto de ter feito algo raro. «Nunca pensei nisso. Para mim o importante foi conseguir realizar um sonho e é com isso que fico contente».

Em março de 2016, o pilar esquerdo aterrou na cidade de Christchurch para representar o Sumner Râguebi Football Club. Durante cinco meses disputou uma temporada completa na divisão amadora mais alta, o espaço onde costumam emergir os futuros talentos das maiores equipas neozelandesas. Mas não foi por isso que deixou de notar diferenças significativas entre o estilo de jogo europeu e oceânico.

«Essencialmente a velocidade do jogo, na forma como se pensa para atacar os espaços entre os defesas. Na Nova Zelândia são mais inteligentes a jogar, também porque estão todos os dias em contacto com râguebi. Na Europa o jogo é mais direto e bruto. Tenta-se atropelar a pessoa à nossa frente», analisa.

Em Portugal ou na Nova Zelândia, João costuma ser o primeiro elemento da formação ordenada (foto: Rozelle May photography)
Em Portugal ou na Nova Zelândia, João costuma ser o primeiro elemento da formação ordenada (Foto Rozelle May photography)

 

Os torneios são disputados ao milímetro. Dos recintos imponentes – o Eden Park de Auckland, casa declarada dos «All Blacks», chega aos 50 mil lugares sentados – aos relvados mais rudimentares, há jogos ao virar da esquina. Nos encontros do Sumner nem sequer havia bancadas.

«Apenas uma corda à volta, a impedir que as pessoas entrassem no campo», conta João. Mesmo com condições modestas, «estavam sempre muitas pessoas a assistir aos jogos». Um atestado à nação onde o râguebi é a modalidade por excelência, apesar de se contarem pelos dedos as pessoas que conseguem subsistir do desporto.

A aventura acabou sem títulos, mas não impediu que o jogador português arquivasse alguns momentos para a eternidade. «Em cada jornada está sempre em jogo uma DCL shield. Quem ganha fica com a taça, que será defendida no jogo seguinte. Quando lá estive conseguimos pôr as mãos nela pela primeira vez na história do clube», destaca, não escondendo que o formato competitivo torna os jogos «especiais».

«É uma taça bastante importante para eles, até porque num qualquer ano podes nem ter hipótese de disputá-la. Quando ganhámos, todos ficaram em êxtase. Antes da final, o atual treinador dos Crusaders [sete vezes campeã da liga profissional neozelandesa] veio ao balneário entregar as camisolas e dar umas palavras de força. Foi um momento que não me vou esquecer», afirma.

Seguimos para casa, antes passamos pelo pub

Nem só de desporto viveu João na Nova Zelândia. A quase 20 mil quilómetros de distância, as saudades de casa eram inevitáveis. Doeu particularmente a sensação de não conseguir falar a qualquer altura com os familiares e amigos. Para contornar a situação, o português arrepiou caminho e foi recebido por uma família de fijianos. Os melhores amigos na nova aventura, um porto seguro para o que desse e viesse.

Sobre o quotidiano na terceira maior cidade neozelandesa, o jovem deixa rasgados elogios. «Foi a melhor experiência que tive até agora. Foi bom estar em contacto com outra cultura, num país onde se vive e respira râguebi. Demorei mais tempo a adaptar-me ao estilo de jogo do que ao estilo de vida», confessa. Os dias começavam logo às cinco da manhã, algo «normal na vida de muitas pessoas».

Às 16h já estava feito o dia de trabalho. Depois vinham os momentos de convívio e lazer. «Iam diretas ao pub beber uma cerveja e conversar com os amigos. Gostei muito do estilo de vida neozelandês. Aqui em Portugal não há muito disto», realça.

Questionado sobre se a experiência no segundo maior país da Oceânia era uma recompensa de carreira, João Vasco prefere jogar à defesa. «Talvez sim. Mas ainda sou muito novo e tenho muitos mais anos de trabalho pela frente. Que todos os prémios fossem assim», solta entre sorrisos.

E no râguebi nacional? «Tem havido altos e baixos»

De regresso à casa de partida, o camisola um voltou a entrar nas contas do CDUP. A equipa nortenha participou na Divisão de Honra. Desta vez não se qualificou para a fase final. Sendo assim, a época do pilar esquerdo podia terminar já no próximo fim-de-semana, quando visitar o Restelo para a derradeira jornada da fase regular.

Contudo, a paixão pelo jogo revela novos voos. E o próximo passo será ingressar nas fileiras do Centro Desportivo Universitário de Lisboa, para discutir o título nacional de seniores. Razão? Os lisboetas estão com falta de jogadores na primeira linha. Como se costuma dizer na gíria, o azar de uns é a sorte de outros.

Mas atenção: a expedição até à capital terá perna curta. «Falta ser campeão pelo CDUP e jogar muitos anos pela seleção», avisa João Côrte-Real, que já somou uma dezena de internacionalizações pelos «lobos» e compara a evolução de Portugal no râguebi a uma montanha russa.

Terceiro a contar da esquerda, João Côrte-Real estreou-se pelos «lobos» em fevereiro de 2016 (Foto arquivo pessoal)
Terceiro a contar da esquerda, João Côrte-Real estreou-se pelos «lobos» em fevereiro de 2016 (Foto arquivo pessoal)

 

«Estava em crescimento no início do milénio. 2007/08 foi o boom do râguebi nacional [a seleção sénior participou pela primeira vez no Campeonato do Mundo], mas desde aí não tem evoluído. Tem havido altos e baixos», considera, defendendo que a chegada de Luís Cassiano Neves à liderança da federação, autor de «um projeto com pés e cabeça», pode melhorar o panorama.

Desde logo no recrutamento. «Temos de crescer no número de atletas nas camadas jovens, para que a base da pirâmide seja maior e o topo consiga obter êxitos», sugere o atleta. E quanto às competições, «estão bem organizadas a partir dos sub-16. Até lá acho que deveria haver mais jogos e torneios para os miúdos. Nestas idades, o que eles querem é jogar», alerta.

Uma vida cercada por moléculas e bolas ovais

Em paralelo, a biologia é o outro lado apaixonado da vida de João. Depois da licenciatura, o objetivo passa por concluir o mestrado em Biologia Celular e Molecular, na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto. Com uma certeza: «Seja qual for o destino, tão cedo não vou deixar de jogar râguebi. Portanto vou organizar a minha carreira à volta da modalidade.»

Mesmo que nunca tenha beneficiado do estatuto de atleta de alta competição. «É um bocado injusto, visto que para lá chegar é necessário perder muito tempo de treino, viagens para os jogos, entre muitas outras coisas. Mas isto não é só no râguebi. Acho que Portugal podia melhorar o seu apoio a outras modalidades».

Entre investimentos e uma comunicação mais ativa entre as faculdades, as entidades federativas e o Instituto Português do Desporto e Juventude, o jogador diz que Portugal tem que trabalhar com os recursos disponíveis. «No início de cada cadeira vou sempre falar com o professor para explicar a minha situação. Sinceramente não sei se há mais sensibilidade para esta realidade. Há acima de tudo compreensão por parte das pessoas, que nos ajudam a procurar soluções», constata.

Seja como for, nada abala a direção que João Vasco pretende tomar. No horizonte está o regresso à Oceânia, desta vez com sonhos mais altos. «Gostava de lá ficar um ou dois anos». E depois? «Quero continuar envolvido no râguebi de alguma maneira, seja como treinador ou dirigente».

Não há dúvidas: sem o râguebi, a vida do internacional português seria incompleta. Afinal, garante que sempre precisou daquele jogo de selvagens praticado por cavalheiros. «Ajuda-me a relaxar. É uma forma de desanuviar de tudo, de esquecer todos os problemas que posso ter».