«Com ele era só alegria, não tinha tempo ruim.» É Paulinho Cascavel a falar sobre Marinho Peres e é tanta gente a dizer o mesmo, na hora de recordar o treinador que o futebol português guarda no coração. Marinho Peres morreu nesta segunda-feira, aos 76 anos, e esta é uma viagem pela sua memória feita de histórias, daquelas que ele tanto gostava de contar. Do defesa que jogou ao lado de Pelé e Cruijjf e foi capitão do Brasil no Mundial 1974 ao treinador que chegou a Guimarães em 1986 e andou a lutar pelo título, venceu a Taça de Portugal com o Belenenses e levou o Sporting a uma meia-final europeia.

Antes de tudo isso, Marinho Peres foi jogador. Craque. Defesa, começou por se tornar referência da Portuguesa antes de chegar ao Santos, ainda de Pelé. Ou ao contrário, como ele gostava de dizer, no seu jeito cheio de graça: «O Pelé é que jogou comigo!»

Foi no Santos que se afirmou na seleção e ganhou a braçadeira de capitão no Mundial 1974. O Brasil caiu na última jornada da segunda fase, frente à Holanda, de Cruijff e do «Futebol Total» idealizado por Rinus Michels. E depois do Mundial eles levaram Marinho Peres para o Camp Nou.

À esquerda, com a braçadeira de capitão, Marinho Peres no Mundial 1974

A fuga de Barcelona de autocarro

A passagem por Espanha durou pouco mais de uma época, porque Marinho Peres teve de fugir do país. O facto de os seus pais serem espanhóis e de ele ter assumido a nacionalidade, para contornar o limite de estrangeiros no plantel, levou a que fosse chamado à tropa. «Só podiam jogar três estrangeiros na época, depois de um ano acabei sendo motivo de gozação, porque o Barcelona tinha contratado um cara para servir o exército. O Barcelona não imaginava, senão não teria me contratado. Era uma gritaria nos estádios, não deu para ficar mais. Tive de fugir, senão iria ter de trabalhar nos navios», contou Marinho numa entrevista ao Globoesporte: «Fui em um ônibus, cheio de gente que atravessou a fronteira na França. Me pegaram em Nice, me levaram a Paris para pegar o voo para o Brasil.»

De volta a casa, foi para o Internacional de Porto Alegre, onde seria campeão brasileiro. Jogou até 1981 e fez depois a transição para o banco pela mão de Telé Santana, nas seleções da Arábia Saudita. Apareceu então a primeira oportunidade de jogar em Portugal. «Esse trabalho deu-me prestígio e quando voltei recebi um convite do Vitória de Guimarães», contou Marinho Peres numa entrevista ao Maisfutebol em 2000

«Mais próximo dos suplentes que dos titulares» em Guimarães

Em Guimarães, liderou a equipa numa campanha histórica. O Vitória andou nos lugares da frente até ao último terço da Liga e acabou em terceiro lugar. Mais, chegou aos quartos de final da Taça UEFA, eliminando na caminhada o Atlético de Madrid. Paulinho Cascavel, o goleador da equipa naquela que, diz, «talvez tenha sido a principal época da história do V. Guimarães», recorda ao Maisfutebol como o sucesso nasceu da liderança de Marinho Peres. «Além de um grande treinador ele era um grande psicólogo. O grande mérito dele era saber fazer amizade, manter um balneário sempre bem disposto, ter o grupo sempre na mão», diz. «Eu acho que ele era mais próximo dos jogadores suplentes do que dos titulares. A gente até brincava que ele brigava mais com os titulares e os suplentes nunca erravam», sorri Cascavel: «Dava aquela moral para os suplentes que não estavam a jogar, sempre motivando o grupo todo e não os que jogam sempre. Ele sabia fazer essa junção de esforços para um bem comum.»

A «Mão do Diabo» de Paulinho Cascavel

Marinho Peres também não perdia a oportunidade de fazer uma piada. Naquela campanha na Taça UEFA, o Vitória eliminou o Groningen na terceira ronda com uma vitória por 3-0. O último golo é de Cascavel e ficou para a lenda. Um golo à Maradona. Não esse, o outro.

Cá estão as imagens

Marinho Peres gozou o prato até ao fim. «Ele falou que o Maradona tinha marcado na Copa do Mundo com a mão de Deus e o Paulinho tinha marcado com a mão do Diabo. Brincou e deu risada. Isso saiu nos jornais na época», recorda Cascavel. E já agora, Paulinho, foi mesmo com a mão? «Foi, em último recurso foi com a mão. Hoje pode falar, já passaram 40 anos… Ahahah… Eu vejo as imagens de vez em quando e é muito difícil falar se foi com a mão ou não, mas passou pela minha mão, sim.»

Ao fim de uma época, Marinho Peres rumou ao Restelo. «Ganhava 500 contos em Guimarães e no final desse ano recebi um convite do Belenenses para ganhar mil por mês», contou ao Maisfutebol.

Começou mal, uma derrota por 7-1 com o FC Porto na primeira jornada. É aqui que entra Baidek, o antigo defesa e agora empresário que fala com o Maisfutebol sobre o choque da morte daquele a que chamava amigo e que o evoca da melhor forma. Com histórias sem fim.

Depois de uma longa carreira no Grémio, onde foi recentemente homenageado, foi um telefonema de Marinho Peres que trouxe Baidek para Portugal. «Eu era para ir do Grémio para o Palmeiras e ele disse: ‘Baidek, vem me ajudar aqui que eu perdi com o Porto no primeiro jogo. Depois tivemos uma relação fantástica de amizade, de convívio familiar. O meu filho foi com 20 dias para Portugal e ele dizia: ‘Baidek, eu é que cuido do teu filho que eu já criei o meu, vou te ensinar como é que se cuida.’»

Baidek começou por perceber o impacto do que Marinho Peres tinha feito em Guimarães. «Quando nós fomos jogar a Guimarães em 86/87, na primeira vez que ele voltou, foi uma emoção quando entrou o Marinho Peres. Ele apareceu para atravessar o campo para ir para o nosso vestiário e todo o público o aplaudiu de pé. Foi inesquecível, o carinho que o torcedor do Guimarães tinha por ele.»

«Encontra o Marinho onde ele estiver nesse mundo»

Nessa época de 1987/88, o Belenenses chegou ao terceiro lugar no campeonato. Depois, Marinho Peres saiu. Com a esposa doente, voltou para o Brasil e foi treinar o Santos. Ao Restelo chegou John Mortimore. Mas ali pelo fim de janeiro as coisas não estavam a correr bem. Agora, a história é de Baidek. «Aí o presidente da altura, o Mário Rosa Freire, pediu-me: ‘Baidek, encontra o Marinho onde ele estiver nesse mundo. Temos de trazer ele de volta.’

«Eu mandei um recado, chegou até ele e ele me ligou de uma cabine telefónica em Cusco, no Peru. Ele estava no Peru jogando amistosos com o Santos. Ligou a cobrar: ‘Baidek, o que está se passando?’ Eu disse: ‘Marinho, pelo amor de Deus, vem nos ajudar aqui. O presidente, o torcedor, todo o mundo quer você de volta. Marcámos os horários, ele e o presidente se acertaram e ele logo uma semana ou dez dias depois chegou a Portugal.»

Marinho voltou para o banco e o resto é história. O Belenenses foi avançando na Taça de Portugal, até vencer a final no Jamor. «Eliminámos o Porto por 1-0, ganhámos 3-1 ao Sporting e depois vencemos a final com o Benfica, que tinha um time extraordinário, com Mozer, Ricardo, Valdo, Diamantino…», recorda Baidek: «Acho que foi a Taça de Portugal mais bem ganha. Nós ganhámos aos três grandes seguidos.»

«Pode comer à vontade, tu não vai jogar mesmo»

Baidek vai repescando da memória, umas atrás das outras, histórias de Marinho Peres no Restelo. «Não tinha quem não gostasse dele. O convívio, a forma de estar, as piadas… Eu nunca esqueço quando o Dudu, centro-campista, voltou para Portugal. Estava um pouco assim fora do peso. Ele perguntou-me como era o Marinho, eu disse que era espectacular. Só que na sala de convívio, ele chegou no Dudu e só disse: ‘Tudo bem e firme.’ E saiu. Aí eu fui falar com o Marinho: ‘Pô, olha como tu cumprimentou o Dudu’. E ele falou: ‘Baidek, como é que eu vou dar moral para o Dudu se ele está mais gordo do que eu?’»

Mais outra. «Teve uma situação em que nós fomos para o Hotel Altis e estávamos a almoçar, antes do jogo no Restelo. E aí o Carlos Ribeiro, lateral, disse: ‘Fala com o Marinho, a ver se eu posso comer mais batata e um pouco de arroz. E aí eu falei: ‘Marinho, o Carlos Ribeiro quer comer mais um pouco.’ Ele levantou da mesa dele e disse: ‘Carlos, quer mais arroz?’ ‘É, um pouquinho, mister.’ E ele falou: ‘Pode comer à vontade, tu não vai jogar mesmo.’

Depois da conquista da Taça de Portugal com o Belenenses, Marinho Peres regressou ao Brasil. Ao fim de passagens discretas por vários clubes, foi o Sporting a chamá-lo de volta a Portugal. Em Alvalade, Marinho Peres foi igual a si próprio. Como conta Litos. «Era uma pessoa que tratava com carinho todos os jogadores, que tinha o grupo de trabalho sempre bem disposto e alegre, a retirar pressão nos momentos da competição», recorda o antigo médio ao Maisfutebol.

Da relação entre treinador e jogadores, Litos deixa a sua própria história. «Quando era necessário mexer no jogo ele lançava-me e algumas vezes quando o jogo estava mais adormecido e o próprio Marinho Peres também, eu estava constantemente a chateá-lo a perguntar se me tinha mandado aquecer, se era para eu aquecer ou não. Ele brincava muitas vezes comigo e dizia: ‘Porra, chato, vai aquecer!’»

Tá Lento ou Talento?

E deixa ainda outra. «Há uma fase em que o Careca não estava tão bem em termos físicos e ele disse ao Careca que estava muito pesado, que estava muito lento. E o Careca respondeu-lhe: ‘Marinho, você está confundindo Tá lento com Talento!’

Naquela época de 1990/91, o Sporting teve uma entrada de leão no campeonato, com 11 vitórias consecutivas. E chegou à meia-final da Taça UEFA. Caiu frente ao Inter, numa derrota por 0-2 em Milão depois de um nulo em Alvalade. A memória que Litos guarda da preparação dessa meia-final é a serenidade que Marinho Peres mantinha, mesmo nos jogos grandes. «Era habitual no Marinho era passar essa tranquilidade, provavelmente até insistindo, como era seu hábito, que o Inter estava assustado era connosco. Era normal nesses jogos de grande ansiedade ele passar essa mensagem ao grupo. Brincava muito connosco nessas alturas para criar esse ambiente mais tranquilo.»

A roupa que já andava sozinha em Alvalade

Mas pelo sim pelo não, também tinha as suas superstições. Muitas, como recordam todos os que se cruzaram com ele. «Enquanto fomos ganhando não mudava a roupa em dia de jogo. Quando tivemos a fase de vitórias consecutivas no campeonato ele usou sempre a mesma roupa. Muitas vezes nós brincávamos com ele que aquela roupa quase já andava de pé sozinha», sorri Litos.

«Foi uma pena não termos chegado a essa final, o Marinho Peres merecia, porque naturalmente iria marcá-lo como treinador, tal como a todos nós», conclui Litos.

A conversa com Cruijjf sobre Figo

No Sporting, despontava por essa altura Luís Figo. E a amizade de Marinho Peres com Cruijff acabou por tramar o treinador dos leões. Ele contou a história ao Maisfutebol: «O Cruijff conversou comigo um dia antes de jogar com o Benfica para a Liga dos Campeões. Ele estava em Portugal e até ligou para o Sporting, porque não tinha o meu número, e disse-me que estava num hotel no Estoril e que me esperava lá. Jantei com ele, estava também o Rexach, que tinha sido da nossa equipa, e eu perguntei: ‘Você quer saber como joga o Benfica? O Veloso é o defesa-direito, tem o Ricardo atrás...’ E ele respondeu: ‘Não, isso já sei.’ ‘Ah, então você quer dar-me um abraço?’ ‘Não. Quero é saber desse miúdo que você tem aí, se é tudo o que se diz dele.’ Aí eu falei, ‘Cara, você quer acabar com o meu time.’

Marinho Peres deixou o Sporting a meio da temporada seguinte. Ainda voltou ao Vitória, desta vez para uma passagem curta, como foi também a experiência no Marítimo, em 1996/97. Em 2000 regressou a Portugal uma última vez, para o Belenenses. Conseguiu um sétimo e um quinto lugar na Liga e saiu a meio da terceira época, para o ponto final de uma história que o ligará para sempre ao clube do Restelo.

A memória de Marinho Peres evoca um sorriso a todos os que se cruzaram com ele. Foi essa capacidade de sorrir que ele trouxe ao futebol português. É isso que vale a pena lembrar sempre. Como diz Baidek: «Nós temos um grupo de ex-atletas do Belenenses. Quando transmiti do falecimento dele foi um choque para todo mundo. Mas eu disse no grupo que nós temos de relatar e lembrar das coisas boas, a alegria de trabalharmos com o Marinho.»