Artur Jorge foi goleador, avançado elegante e requintado, cabeceador memorável que eternizou um pontapé de moinho lendário. Foi treinador, o primeiro português campeão da Europa e o primeiro campeão numa Liga estrangeira, foi selecionador. Foi ativista, fundador do Sindicato de Jogadores, político candidato a deputado nas primeiras eleições livres. Foi um homem de cultura, amante de livros e de música, que estudou letras, colecionou arte e escreveu poesia.

Artur Jorge morreu na madrugada desta quinta-feira aos 78 anos, rodeado da família mais próxima. Nas recordações que se sucederam ao longo do dia revive a memória de uma personalidade única, que se distinguiu de tantas formas. Até no modo como estava há muito longe do espaço público, ele que é figura maior na galeria eterna do futebol português.

Na vida de Artur Jorge cabem tantas vidas. Como estas, entre muitas outras.

Da bola na rua, a primeira das «coisas bonitas», ao FC Porto

Artur Jorge nasceu a 13 de fevereiro de 1946 no Porto e foi na rua, com os amigos, que descobriu no futebol uma das «coisas bonitas» da vida, a expressão que repetiu tantas vezes. «Não era futebol, jogávamos à bola, que são coisas completamente diferentes. Jogávamos todos uns com os outros, brincávamos uns com os outros e passávamos, eu e os meus amigos, o maior tempo do dia a fazer isso. Era uma coisa bonita», dizia numa entrevista à RTP em 1993. Foi pela mão de José Maria Pedroto que chegou ao FC Porto, onde seria campeão de juniores, além de se ter distinguido também desde logo na seleção, a brilhar na caminhada de Portugal até ao terceiro lugar no Europeu sub-18 de 1964. Estreou-se na equipa principal do FC Porto, lançado por Otto Gloria, em setembro de 1964, com um golo ao Peniche para a Taça de Portugal. Tinha 18 anos e só ficou essa época. Queria continuar os estudos e saiu, rumo a Coimbra.

Goleador-estudante a ganhar consciência política em Coimbra

Na Académica, foi goleador-estudante. Marcou 94 golos em 112 jogos ao longo de quatro épocas em que só ficou atrás de Eusébio, naquela Briosa que andava lá pela frente, vice-campeã nacional em 1967, duas vezes finalista da Taça de Portugal. Estudava Filologia Germânica, mas para lá do curso, que terminaria já em Lisboa, Artur Jorge respirou em Coimbra, nas tertúlias e no convívio na República onde vivia, o Ninho dos Matulões, o ambiente de uma geração que sonhava abrir horizontes, que lia, discutia e queria ver o país mudar. O espírito que teria ponto alto na final da Taça de 1969, transformada naquela que foi a maior manifestação pública contra a ditadura. Nesse dia em que a Académica entrou em campo no Jamor frente ao Benfica em passo lento, as capas dos jogadores sobre os ombros a simbolizar luto, não estava no entanto Artur Jorge. A cumprir serviço militar, ficou retido em Mafra. A tropa limitou também a sua influência nessa época, a última de Artur Jorge em Coimbra.

Algumas imagens de Artur Jorge na Académica

Goleador no Benfica à frente de Eusébio

De Coimbra para Lisboa, Artur Jorge chegou em 1969 ao Benfica, onde reencontrou Otto Gloria e se juntou a uma equipa de luxo, entre os consagrados Eusébio, Torres, José Augusto, Simões ou ainda Coluna e os jovens Nené, Humberto Coelho e Toni. Chegou com 23 anos e foi grande entre os grandes. Duas vezes melhor marcador do campeonato, em 1971 e 1972, foi quatro vezes campeão nacional e venceu duas Taças de Portugal. Apontou 104 golos em 131 jogos pelo Benfica, um registo mais notável ainda tendo em conta que as últimas épocas na Luz ficaram marcadas por uma sucessão de lesões. Foram os problemas físicos que condicionaram também o seu percurso na seleção, onde se estreou em 1967, ainda como jogador da Académica, e onde fez apenas 16 jogos, o último deles em 1977, no ocaso da carreira no Restelo.

O «melhor golo» do sindicalista Artur Jorge

Ainda no Porto, Artur Jorge já se tinha envolvido no movimento associativo, a formar uma consciência cívica que o levaria, em 1972, à linha da frente da luta dos jogadores por uma carreira digna e à fundação do Sindicato de Jogadores, de que foi o primeiro presidente. Ao lado de nomes como Eusébio, António Simões, Fernando Peres, Rolando ou Pedro Gomes, com o então jovem advogado Jorge Sampaio a redigir os primeiros estatutos, Artur Jorge liderou a reivindicação pelo fim da Lei de Opção, que prendia os jogadores aos clubes enquanto estes quisessem. «Nós só exigíamos justas condições, com cláusulas nos contratos, mais previdência e assistência obrigatórias profissionais. Mas isso era muito. Foi uma luta tremenda. É claro que adorava marcar golos, mas o melhor golo foi este, o da idealização de uma profissão de futebolista igual à dos outros», disse numa entrevista a Rui Miguel Tovar.

Jogador e candidato a deputado

A Revolução de 25 de abril de 1974 garantiu que a luta laboral dos jogadores seria ganha. Artur Jorge continuou a liderá-la mas não ficou por aí. Em 1975, aceitou ser deputado pelo partido de esquerda MDP/CDE às eleições para a Assembleia Constituinte. «Achei que a ideia era interessante, pensei que me devia integrar num momento de trabalho de participação, de luta em favor dos trabalhadores», disse numa entrevista ao jornal A Bola em que falava sobre a sua tripla condição de jogador, sindicalista e político. A consciência cívica esteve sempre em primeiro lugar, dizia: «Quando fui para Coimbra, nunca pensei em ingressar no futebol profissional. Ainda por cima fui encontrar o ambiente de que gostava, com que me identificava. Considerava então o futebol como um meio útil para acabar o curso. O mundo dá muita volta e penso que nem há necessidade de explicar porque tive necessidade de vir para o futebol profissional.» Também reconhecia que a sua militância cívica, a partir do envolvimento no Sindicato, nem sempre era compreendida nas bancadas da Luz: «Quando eu marcava um golo era um golo do Benfica, quando eu falhava um golo, falhava o presidente do Sindicato.» O MDP/CDE elegeu cinco deputados, Artur Jorge não foi um deles.

O fim da carreira e o diploma em Leipzig

Por essa altura Artur Jorge já ponderava terminar a carreira, estando o contrato com o Benfica a chegar ao fim. Mas ainda continuou. Rumou ao Belenenses, onde terminaria a carreira aos 32 anos, depois de mais uma lesão grave, uma perna partida. Pelo meio, viveu uma experiência nos Estados Unidos. Foi curta a passagem pelo Rochester Lancers naquele projeto que procurou dinamizar uma Liga norte-americana repleta de estrelas planetárias, mas estreou-se frente ao Cosmos de Pelé, como recorda o áudio-documentário O Rei Artur, do Podcast Matraquilhos. Penduradas as chuteiras, Artur Jorge foi estudar Futebol e Metodologia de Treino na Universidade de Leipzig, na então RDA, curso que completou com nota máxima. Voltou a Portugal com o diploma e começou por trabalhar ao lado de Pedroto, como adjunto no V. Guimarães. Depois, o Belenenses chamou-o para o início de um percurso como treinador principal que o levou ainda a uma passagem de duas épocas pelo Portimonense.

Rei nas Antas até à glória europeia

Tirou um ano sabático em 1983, até chegar o convite do FC Porto. Com Pedroto já muito doente, foi Artur Jorge a aposta para suceder ao Mestre. Tinha 38 anos e o resto é história. Foi campeão nacional em duas épocas consecutivas e na terceira temporada completou a obra. Viena, 27 de maio de 1987. O dia que fica marcado a ouro na história do FC Porto e do futebol português, aquele que foi mais recordado na hora da despedida a Artur Jorge. A épica final com o Bayern Munique, as baixas de Fernando Gomes ou Jaime Pacheco, o golo sofrido na primeira parte, a palestra no balneário e a frase de Artur Jorge que todos os jogadores recordam: «Vocês têm 45 minutos para entrar na história.» Depois, os golos de Madjer e Juary, o FC Porto campeão europeu e no fim Artur Jorge a recordar Pedroto e a falar na noite mais feliz da carreira.

Rei também em Paris

Depois da conquista europeia, Artur Jorge deixou as Antas para rumar a França e treinar o Matra Racing, uma primeira aposta de criar um super-clube em Paris. A experiência durou época e meia, até voltar às Antas, para mais três temporadas e mais um título nacional no FC Porto. Regressaria em 1991 a Paris, agora para treinar o PSG, já a tornar-se um projeto ambicioso na luta pela hegemonia no futebol francês. Conquistou uma Taça de França e foi campeão francês em 1994, numa equipa que tinha os ex-benfiquistas Valdo e Ricardo Gomes, mais nomes grandes como Raí, Ginola e Weah.

Benfica, «a engrenagem que não funcionou»

Depois de Paris, Artur Jorge voltou a Portugal, agora para treinar o Benfica. Foi um período atribulado, desde logo pela forma como foi conduzido o processo do afastamento de Toni, pondo em causa uma amizade antiga. Pouco depois do início dessa época de 1994/95, uma doença grave afastou Artur Jorge da equipa, antes de uma visita a Split para a Liga dos Campeões. Foi operado a um tumor na cabeça, voltou a assumir o banco, numa época em que, com muitas mudanças no plantel, o Benfica terminou em terceiro lugar no campeonato. Ainda começou a temporada seguinte, mas saiu ao fim de três jornadas. Foi uma experiência que deixou marcas profundas. «Não gosto muito de falar disso», disse na entrevista a Rui Tovar: «Para mim, uma equipa precisa de tempo e organização. O FC Porto deu-me isso. Havia jogos em 1984 ou 1985 em que pressentia que aquela equipa ia ser imbatível a todos os níveis, como aconteceu em 1987. O Benfica pediu-me isso, para ontem. Quis fazer uma equipa e comecei pela baliza. Trouxe o Preud’homme, mas a engrenagem não funcionou. Há pessoas boas e más. Há dirigentes competentes, outros nem tanto. Há os que remam para a mesma direção e os da contracorrente. Enfim.»

Duas passagens pela seleção, nenhuma feliz

Artur Jorge treinou a seleção em dois momentos diferentes, nenhum deles feliz. Em 1990, aceitou o convite para acumular a seleção com o cargo de treinador do FC Porto, com Toni como adjunto. Foram apenas oito jogos, até surgir no verão de 1991 o convite do PSG, numa passagem cuja principal marca foi o lançamento dos primeiros jogadores da geração campeã do mundo de sub-20. Foi pela mão de Artur Jorge que se estrearam Vítor Baía, Fernando Couto e Paulo Sousa. Também seria ele a lançar Sérgio Conceição, na sua segunda passagem pela seleção. Voltou a assumir a equipa das quinas em 1996, já depois de ter liderado a Suíça na fase final do Euro 96. Voltou a não correr bem. O mau arranque na corrida ao Mundial 98, a agressão de Sá Pinto, a expulsão de Rui Costa frente à Alemanha, tudo junto resultou na última grande competição falhada por Portugal e na inevitável saída de Artur Jorge.

Treinar pelo mundo, com regresso «pro bono» a Coimbra

A passagem pelo Benfica e depois a segunda experiência na seleção representaram um ponto de viragem no percurso de Artur Jorge treinador. Não voltou ao topo, ainda que tenha corrido mundo. Treinou o Tenerife e o Vitesse, esteve na Arábia Saudita. Em 2002, um último regresso a Portugal. Uma escolha de coração, quando se dispôs a treinar a sua Académica. Pro bono, como recordou a Briosa nesta quinta-feira. Depois de Coimbra, voltou a emigrar. Na Rússia, na seleção dos Camarões, no Kwuait, de novo em França, no Creteil Lusitanos. Parou em 2007 e esteve sete anos longe dos bancos. Até voltar, uma última vez, em 2014, para treinar na Argélia. «Neste período não treinei, mas não deixei de ter vontade de treinar», disse então ao Maisfutebol.

Poesia e arte, para lá do futebol

Foi a última experiência no banco do homem que voltou tantas vezes ao futebol, mas nunca viveu só para ele. Que disse um dia que o futebol na televisão devia ser visto a ouvir música clássica. Artur Jorge escreveu um livro de poesia, editado em 1983, a que chamou Vértice da Água. E cultivou sempre outros gostos. Colecionou arte, juntou um importante espólio com obras de Picasso, Dali, Kandinsky, Warhol ou Basquiat. Tinha alguns desses quadros nas paredes, em casa, junto com muitos livros, muitos discos de jazz e música clássica. E nenhum troféu de futebol, como notava uma reportagem do Público em 2010, quando Artur Jorge promoveu uma exposição e um leilão de parte do seu espólio. «O meu filho é que tem as taças e essas coisas todas. Ficam melhor no quarto dele do que aqui», disse.