O «Capita» – alcunha que se lhe colou à pele desde que capitaneou o inesquecível escrete de 70, no Mundial do México – foi traído pelo coração.

Faleceu ontem, aos 72 anos, no Rio de Janeiro, vítima de ataque cardíaco Carlos Alberto Torres, lenda do futebol desde aquela Copa de 1970 em que selou a caminhada triunfal do Brasil com o mais belo lance coletivo dos Mundiais, antes de levantar a Jules Rimet como quem coloca a coroa de consagração na cabeça do «rei» Pelé. O Estádio Azteca emoldurava o momento grandioso nessa tarde de sol na Cidade do México.

Mais do que as recentes funções de comentador televisivo, a incursão na política – vereador do Rio de 1989 a 1993 – ou a carreira de 22 anos como técnico de futebol, em que treinou no Brasil, México, Colômbia, Estados Unidos, tendo sido até selecionador de Omã e do Azerbaijão, Carlos Alberto foi acima de tudo um mago dos relvados.

Como futebolista, entre 1963 e 1982, vestiu as camisolas de Fluminense, Santos, Botafogo, Flamengo, antes de rumar ao soccer (onde representou o New York Cosmos e nos California Surf), tendo vestido a camisola da seleção brasileira por 53 vezes, marcando 8 golos.

Carlos Alberto ajudou a revolucionar a sua posição, tendo sido um dos pioneiros na transformação do defesa-direito em lateral.

Memórias de um pequeno-almoço

António Simões, que, antes de ser contemporâneo na North American Soccer League (NASL), se cruzou com ele em jogos particulares pelo Benfica e pela seleção portuguesa frente ao Santos e ao Brasil, respetivamente, recorda ao Maisfutebol um dos adversários diretos mais difíceis que teve pela frente.

«Em campo, lembro-me das dificuldades que eu tinha em driblá-lo. Cada jogada era 50/50. Posicionava-se muito bem e depois atacava como muito poucos laterais no nosso tempo. Era lateral, era médio, era avançado… Era tudo. Foi um dos pioneiros com essa multiplicidade de funções», conta Simões, numa visão compartilhada por José Augusto, seu antigo colega no Benfica e na seleção: «Carlos Alberto era tecnicista, fisicamente capaz e muito ofensivo. Subia no terreno, o que era não era comum na época para um defesa… Também por isso, marcou a nossa geração.»

Tal como o posicionamento em campo, para Simões era também pela postura de «simplicidade» fora dos grandes palcos que Carlos Alberto brilhava.

«Fomos ídolos naquele tempo. Não estrelas, porque isso não existia. Ele era gente grande, o capitão daquela que para mim foi a melhor seleção de todos os tempos. Um homem com espírito de liderança, personalidade forte e afetuosa. Os colegas tinham grande respeito por ele. Por isso é que o elegeram capitão da seleção do Brasil, em 1970», explica a antiga glória do Benfica, antes de revelar ao Maisfutebol um encontro entre ambos há menos de três anos no Rio:

«O meu irmão gémeo está a viver no Rio e é muito amigo dele. Mal o Carlos Alberto soube que eu estava lá, meteu-se no carro e veio ter comigo à Barra da Tijuca. Tomámos o pequeno-almoço juntos: falámos das diferenças do futebol do nosso tempo, de duelos do passado, de amigos comuns, como Pelé, Tostão, Eusébio… Ele perguntou-me pelo Torres. “Então, que é feito daquele grandote?” Não sabia que já tinha falecido. Recordámos histórias de quando jogámos na liga norte-americana e eu contei-lhe uma sobre o Pelé, que o fez rir muito, sobre quando chegou ao New York Cosmos e perdeu contra mim e contra o Eusébio (Boston Minutemen), por 5-0. No final do jogo, eu disse-lhe: “Pelé, essa sua equipa está muito fraca. Têm de ir buscar jogadores.” E ele, concordando, respondeu-me: “Eu dou-lhes uma bola, eles devolvem-me uma abóbora…” Nesse encontro, convidei o Carlos Alberto a vir visitar-me cá a Portugal e ele disse-me: “Vou fazer isso”. Obviamente, tal já não aconteceu. Fiquei muito triste com o seu falecimento. Já liguei ao meu irmão para fazer chegar as minhas condolências à família.»

Colega de equipa e de quarto de Seninho

Seninho, avançado internacional português que em 1978 graças a uma grande exibição frente ao Manchester United foi contratado ao FC Porto pelo New York Cosmos, teve uma proximidade ainda maior com o «Capita» ao longo da sua carreira.

Durante dois anos e meio ambos fizeram parte da constelação de estrelas nova-iorquina sustentada pela Warner Entertainment, já sem Pelé, mas com craques como Beckenbauer, Rivelino, Neeskens ou Chinaglia.

Seninho, que soube da notícia do falecimento pelo contacto feito pelo Maisfutebol, não escondeu a consternação. E recordou o amigo, antigo colega de equipa e até companheiro de quarto nas longas digressões aos quatro cantos do mundo.

Foto do arquivo de Seninho (segundo em baixo a contar da esquerda) com Rivelino, Beckembauer e Carlos Alberto no New York Cosmos

«Ele já estava no clube quando eu cheguei e ajudou a adaptar-me àquela realidade que era absolutamente diferente daquilo que eu tinha em Portugal. Lembro-me de partilharmos o quarto numa digressão asiática que durou mais de 40 dias. Passámos por Hong Kong, Singapura, Malásia, Indonésia e depois ainda fomos à Austrália… Éramos como globetrotters. Quando a época acabava partíamos pelo mundo. Chegámos a fazer também digressões na América do Sul, na Europa… E até a jogar nas Antas e em Alvalade; dois empates contra FC Porto e Sporting, em jogos que não foram muito competitivos e em que estivemos abaixo das expetativas porque o cansaço também já era grande», lembra Seninho, que de Carlos Alberto destaca «um jogador completo, com um posicionamento e técnica extraordinários», mas acima de tudo o «bom carácter».

«Ele foi o capitão da melhor seleção de todos os tempos, mas nunca usou isso como argumento de autoridade», conta o antigo jogador portista, que nos Estados Unidos além do New York Cosmos representou os Chicago Sting.

Já lá vão mais de trinta anos, mas puxando pela cabeça, Seninho recorda alguns episódios em comum. Lembra-se do convívio da sua mulher com a de Carlos Alberto, a atriz de novelas Tereza Sodré, que se juntavam em festas de amigos e durante as digressões nos Estados Unidos viajavam juntas para se juntarem aos maridos nos estágios num avião privado da Warner. Lembra-se também de ele e o seu parceiro brasileiro se juntarem no quarto a estudar inglês. E das palavras só usadas em Portugal que tanto divertiam Carlos Alberto.

«Ele não entendia e achava piada a expressões portuguesas que eu usava. Se estivesse bom tempo, por exemplo, eu dizia: “Está um sol bestial” E ele ria: “Bestial? Que é isso?”…»

Carlos Alberto faleceu ontem, aos 72 anos, num dia em que esteve um sol bestial.