Quando alguém ousa fazer uma lista com os melhores jogadores portugueses de sempre, há nomes inevitáveis: Eusébio, Cristiano Ronaldo, Luís Figo, Mário Coluna, Paulo Futre…Raramente alguém colocará lá o nome de Pepe, o que, para muitos, é uma tremenda injustiça. Falamos do central do Real Madrid? Não. Do avançado do Belenenses.

José Manuel Soares ficou conhecido para o futebol pela mesma alcunha de Kléper Laveran de Lima Ferreira, mas tem contra si um gigante contra que o torna cada vez mais esquecido: poucos já serão os vivos que viram o primeiro Pepe, aquele de que trata este artigo, jogar futebol.

Esta segunda-feira, 24 de outubro, cumprem-se 85 anos desde a morte de Pepe, «provavelmente o melhor jogador português daquela altura». As palavras são de João Nuno Coelho, sociólogo e historiador na área do futebol, ao Maisfutebol, e encontram espelho nos relatos da época.

Pepe era um pequeno génio, figura incontornável da história do Belenenses. Nascido e criado na zona de Belém (há relatos que o ligam à Covilhã, também), numa família pobre, começou a jogar no Belenenses em 1926. Fê-lo até à morte, cinco anos mais tarde, com sucesso estrondoso. Com Pepe, o Belenenses venceu o Campeonato de Portugal (ainda não havia a prova, agora, conhecida por Liga) em 1927 e 1929, conquistando ainda o prestigiado, para a altura, Campeonato de Lisboa, em 1926, 1929 e 1930.

Era um Belenenses muito diferente do habitual, um clube que ombreava com os grandes da capital e do país porque, efetivamente, também o era. Os números provam-no.

Pepe (quarto a contar da direita) no Belenenses campeão de Lisboa em 1929. Foto do blogue 'Belenenses Ilustrado'

Quanto a Pepe, João Nuno Coelho apoia-se nos relatos da época para descrever a sua importância: «É o que há. O resto é feito com a imaginação de cada um…»

«Sabe-se que era um jogador baixo, franzino e genial com a bola nos pés. Muito criativo. Claro que isto tudo tem de ser visto à luz dos padrões da época. Mas era, efetivamente, tecnicamente muito superior aos outros. É preciso ver que nos anos 20, 30 e até 40 o futebol não era propriamente técnico», ilustra.

Era um futebol mais físico e também mais rudimentar. Pepe era uma das exceções. Marcava muitos golos e tinha na inteligência no jogo um dos seus pontos fortes. «Jogava como interior direito ou interior esquerdo, que eram os lugares destinados, na altura, aos jogadores mais habilidosos. Dos cinco avançados, o interior era o mais genial, sempre», explica João Nuno Coelho.

Pepe, que se estreou na seleção nacional logo com dois golos à França (o primeiro jogador de sempre a bisar na seleção), era o jogador da moda. O Cristiano Ronaldo do final dos anos 20, por assim dizer. Juntamente com o benfiquista Vítor Silva era aquele que mais paixões despertava entre os que começavam a aderir ao ‘foot-ball’, o desporto que caminhava a passos largos para se tornar no fenómeno que é hoje.

Herói do Belenenses, em ombros na seleção e uma morte trágica aos 23 anos

Pepe estreou-se em fevereiro de 1926, num jogo contra o Benfica. Tinha apenas 18 anos, algo muito pouco comum na época. Marcou, de penálti, o golo da vitória da sua equipa nesse jogo, um incrível 5-4, com recuperação de 1-4 até ao desfecho final. Nascia o mito.

Alimentado a cada jogo, a cada golo, a cada exibição. Quando começou a jogar, também, na seleção nacional, já não eram apenas os adeptos do Belenenses rendidos a Pepe. As crónicas da época falam de uma saída em ombros, na estreia, quando fez o tal bis à França. João Nuno Coelho lembra, também, a participação portuguesa no torneio olímpico de futebol de Amesterdão, em 1928. «Foi a primeira vez e os jogadores que lá estiveram ficaram na memória daquela geração», explica. Pepe foi um deles.

Três anos depois daquele torneio, veio a morte trágica, que adensou a lenda. Ainda hoje as causas não estão devidamente esclarecidas o que deixa a ideia de que, provavelmente, nunca serão.

Facto: a 23 de outubro de 1931, Pepe sentiu-se mal no trabalho (era torneiro mecânico, porque isto do profissionalismo no futebol ainda demoraria uns bons anos…) e foi levado para o Hospital da Marinha, com fortes dores abdominais. Morreu no dia seguinte.

A versão mais conhecida e que passou de boca em boca, fala de um erro trágico da mãe do jogador que trocou sal por soda cáustica na preparação do jantar. Pepe levara para o trabalho uma sandes de chouriço que sobrara da véspera, que ainda teria dado a um gato, que também falecera, pouco depois.

Seria esse chouriço, preparado com um composto corrosivo, a causar-lhe a morte, sendo que vários familiares também foram internados, mas sobreviveram, o que comprovaria a tese de forte intoxicação alimentar.

O funeral de Pepe foi notícia de capa de jornal. A 1 de novembro , o semanário «Notícias Ilustrado» deu ao jogador todo o destaque da primeira página. «Morreu Pepe! Honremos a sua memória dignificando o football», escreveu.

Funeral de Pepe. Foto do blogue 'Aventar'

A revista «Stadium» também o lembrou, numa crónica de Joaquim R. Gonçalves, um ano após a morte: «O popular Pepe morreu e, com a sua morte, perdeu o Belenenses um grande desportista e o desporto um grande amigo. Pepe morreu, sim, mas a sua memória ficou vincada nos corações de todos os desportistas de Portugal e até do estrangeiro.»

Pepe tinha 23 anos. No ano seguinte à sua morte, o Belenenses ergueu um memorial no Estádio das Salésias, que viria, também, a receber o seu nome. Quando se mudou para o Restelo, em 1956, o memorial de Pepe foi, também, lá colocado.

Em todo esse período, um clube, o FC Porto, sempre homenageou o jogador, colocando uma coroa de flores antes de cada duelo com o Belenenses, tradição que vigora até hoje. Porquê? Foi o que tentamos saber.

Tradição sobreviveu porque o Belenenses perdeu poder?

A homenagem do FC Porto a Pepe na época passada

João Nuno Coelho relata que não há qualquer razão específica para a tradição portista da homenagem a Pepe antes de cada jogo. Pepe sempre jogou no Belenenses, não tinha qualquer ligação ao FC Porto, nem sequer, como erradamente foi propagado, faleceu antes de um jogo com os azuis e brancos.

«Era e é uma homenagem. Apenas isso», explica o historiador. «Era algo habitual naquele tempo e que se foi perdendo com o adensar das rivalidades. Aquela foi sobrevivendo, talvez porque, a partir dos anos 60, o Belenenses perdeu muita da força que tinha até então», continua.

Esse é um ponto-chave. João Nuno Coelho não tem dúvidas que a duração da tradição até aos dias de hoje está muito relacionada com a perda de poder do Belenenses no futebol português nos tempos mais contemporâneos.

«A competitividade aumenta o conflito. Na altura em que começou a ser feita, tudo o que rodeava o futebol era muito arcaico e não havia a mesma preocupação com rivalidades mesmo entre as equipas que ganhavam. A relação entre os clubes era muito melhor e propiciava este tipo de gestos. Atualmente Portugal falha muito a nível de cultura desportiva», lamenta.

Ou seja, pelos padrões da época, era perfeitamente possível que, apenas como gesto de cortesia, o FC Porto homenageasse um jogador do Benfica, por exemplo, mas João Nuno Coelho tem dúvidas que a mesma durasse até aos dias de hoje como acontece com Pepe, tantas foram as quezílias e rivalidades ao longo dos anos.

Aliás, diz mesmo que o FC Porto poderia não ser caso único: «Eventualmente mais equipas poderiam fazer o mesmo, mas não me recordo de encontrar algum registo sobre isso. E como o do FC Porto perdurou no tempo é o que todos sabem.»

Outro aspeto menos badalado é a «retribuição». Na verdade, o Belenenses cumpre, ainda hoje, a tradição de entrar em campo com a bandeira do FC Porto nos jogos fora, de modo a salientar as boas relações entre os clubes. «Talvez por vestirem os dois de azul», atira, entre risos, João Nuno Coelho.

O historiador lembra-se também de, ainda que não de forma recorrente, o Belenenses também coloca uma coroa de flores no memorial de Pavão, portista que faleceu em campo em 1973. «Na altura das Antas lembro-me perfeitamente que os jogadores do Belenenses também iam lá», recorda.

Atualmente, os memoriais de Pavão e Rui Filipe encontram-se no interior do Estádio do Dragão, na entrada principal.

A tradição, porém, vai certamente repetir-se nos próximos duelos entre as duas equipas. Mesmo que, como diz João Nuno Coelho, haja «cada vez menos gente que tenha visto o Pepe jogar à bola».

Pepe em ombros depois de bisar contra a França. Foto do blogue ' CF Belenenses'

«Atualmente, a importância do Pepe só é descrita pelos mais velhos ou então por adeptos do Belenenses. Ainda continua a ser um dos melhores jogadores da história do clube, juntamente com o Matateu, que é posterior, e o Artur José Pereira, que é anterior», considera.

E tem, até, uma certeza, para fim de conversa: «Até à morte do Pepe, o Belenenses ganhou dois Campeonatos de Portugal, tantos como Benfica e FC Porto e mais um do que o Sporting. A Liga, como hoje a conhecemos, foi criada três anos após a sua morte. Pepe teria 26 anos, estaria no auge. Provavelmente, se não tivesse morrido tão jovem, o Belenenses hoje não teria apenas um título de campeão.»