O professor de ginástica dos Pupilos do Exército quis levá-lo à força para o Benfica. Manuel Andrade, que à época tinha 14 anos e jogava com uma identidade falsa que lhe atribuía mais dois, para poder alinhar pelos juniores do Belenenses, nunca cedeu às intenções daquele adepto fervoroso do Benfica. Em troca da teimosia, levava pancada com folhas de palmeira. Alguns anos depois, em 1945/46, viria a sagrar-se campeão pelo Belenenses.
Manuel Andrade chegou de carro ao local combinado para a entrevista. No início fez questão de dizer que nunca teve paciência para jornalistas. Desta vez, teve e não foi pouca.
Ao longo de três horas, Andrade, de 87 anos, falou da infância, da mulher com quem namorava à janela e que o «atura há mais de 60 anos», de um mal-entendido que o tornou «persona non grata» entre a massa associativa do Belenenses e até de Cristiano Ronaldo, um jogador que não considera fora-de-série.
Tinha um padrinho que era adepto fervoroso do União [da Madeira]. Ele levava-me ao futebol, embora eu não percebesse nada daquilo. Lembro-me também de uma tentativa de revolução para a independência da Madeira em 33 ou 34. Uns 90 por cento das pessoas não sabe da existência disso. O meu pai, que era oficial do exército e estava do lado da revolução, foi recambiado para cá [Portugal continental] em 1935. Eu e a minha irmã mais nova viemos com ele, de barco. A viagem durou dois dias. Nunca saí do camarote e vomitei tanto que já não tinha nada para vomitar. Nem comia. Foi a pior coisa que passei na minha vida. Ainda hoje não gosto de andar de barco.
E a sua mãe?
Ficou lá com a minha irmã mais velha, que estava no liceu, e os meus dois irmãos gémeos, mais novos. Vivíamos em Cascais, dentro do quartel da Cidadela, onde havia casas para os oficiais. Poucos meses depois, a minha mãe e os meus três irmãos vieram ter connosco.
O que fazia a sua mãe?
No Funchal, era professora, mas não dava aulas porque tinha cinco filhos. Cá, fazia bordados da Madeira para a mulher do Presidente da República marechal Carmona. Eles também moravam dentro da Cidadela. De vez em quando ia lá a casa pedir-lhe para fazer bordados.
Viviam bem?
Não tínhamos vida de lordes, mas nunca nos faltou nada.
Lembra-se dos seus primeiros pontapés numa bola?
Foram em Cascais, onde hoje é a marina. Tinha uns dez ou 11 anos e ia para lá com outros miúdos. Jogávamos com bolas de trapo e até tínhamos de driblar uns pinheiros que lá estavam naquele tempo.
Estudou nos Pupilos do Exército. De que modo esse percurso o ajudou a moldar a sua personalidade?
Foi uma educação indispensável para a vida! Tenho uma paixão muito grande por aquela escola. Nunca disse uma asneira, nem mesmo no futebol. No máximo, um «vai à merda». Fui educado com homens durante sete anos e nunca dizíamos asneiras. Quando tínhamos notas abaixo de dez, estávamos proibidos de sair no fim-de-semana.
Educação inflexível?
Andava tudo na linha e a malta, por norma, cumpria. Quem prevaricasse, comia.
De que forma?
Se nos portássemos mal, íamos para a gaiola. Éramos separados.
Qual foi o pior castigo que teve?
Foi precisamente esse. Quando eu comecei a jogar futebol no Belenenses, ganhava dinheiro. Eu, juntamente com uns colegas que também jogavam no Belenenses, tínhamos uma vida diferente. Gastávamos o dinheiro em cigarros. Por coincidência, começaram a desaparecer umas máquinas de escrever. Quem é que pagou?
O Manuel Andrade?
Pois claro. Acharam que eu andava a ganhar dinheiro com o que tinha sido roubado. Nessa altura, tinha 14 ou 15 anos. Mais tarde descobriu-se quem andava a roubar. Era o barbeiro da Primeira Secção dos Pupilos. Se ele não fosse apanhado, continuávamos a pagar por aquilo.
Com 14 anos. Ganhávamos jogos em série e eu marcava quatro, cinco e seis golos por jogo. Chegámos a dar 12 ao Sporting. Eles tinham um guarda-redes chamado Marques, que era dos melhores juniores daquele tempo. Num dos remates que fiz, ele fracturou o braço, tal era o peso da bola.
Foi e não foi. Talvez estivesse mais ligado ao Sporting, porque o Peyroteo [n.d.r.: avançado dos leões na década de 40] fez tropa em Cascais. Conheci-o lá e torcia um bocadinho pelo Sporting. E muitos sargentos e oficiais também eram sportinguistas.
Qual era o seu jogador favorito?
O Pinga, que era um madeirense do FC Porto. Jogava na posição de interior-esquerdo. No Belenenses, o meu preferido era o Quaresma, um tipo que fazia as coisas com uma facilidade tremenda.
Lembra-se do seu primeiro ordenado?
Lembro-me. Recebi 1200 escudos e prémios de 200 em caso de vitória. Na primeira categoria! Porque nos juniores não tínhamos ordenado. Pagavam-nos o táxi nos dias dos jogos.
Não é nada como agora. Quando era sénior, treinava às terças e quintas de manhã. Dávamos voltas ao campo, fazíamos ginástica e, depois, jogávamos futebol. Quando os treinos terminavam, íamos para os nossos empregos.
Onde trabalhava?
Estive menos de 15 dias na lota de Santos, a entrar às quatro da manhã e a sair ao meio-dia. Disse que aquilo não era para mim. Entretanto, li num jornal que ia abrir em Lisboa uma companhia chamada Hidroeléctrica do Zêzere, que estava a fazer as obras da barragem de Castelo de Bode. Fui fazer uma prova de contabilidade e qual foi o meu espanto quando vi que o sub-chefe da contabilidade tinha sido meu colega nos Pupilos e que o chefe dos serviços era o senhor doutor Coelho da Fonseca, que tinha sido presidente do Belenenses e também aluno dos Pupilos. Comecei a trabalhar na hidroeléctrica a 11 de Junho de 1946. Nunca faltei a um dia de trabalho enquanto joguei futebol.
Quando conheceu a sua mulher?
Já jogava futebol e tinha 18 anos, mais quatro do que ela. Eu ia com dois amigos no comboio de Cascais para Lisboa e na carruagem estava um grupo de raparigas. Eles começaram a apontar para uma e eu disse que numa semana ela estava no papo. Nem sabia quem era. Eu gostava muito de andar nos bailaricos. Dos bombeiros daqui e de acolá. No Estoril e em Cascais. Eram festas decentes. Na semana seguinte, fui ao baile dos bombeiros no Estoril e vi-a. Fui buscá-la para dançar. Dançámos quase a noite toda. Depois, começámos praticamente a namorar. Mas foi um caso sério porque, na altura, o jogador de futebol era considerado escumalha. A maior parte nem sabia ler nem escrever.
Chegaram a namorar às escondidas?
Não. Víamo-nos no comboio. Ela estava a estudar e eu ia para Lisboa trabalhar ou para o treino. E conversávamos no baile aos sábados. Ela gostava de mim, tanto que já me atura há 60 e tal anos [risos]. Depois, comecei a ir lá a casa. Mas, de início, ficava lá fora. Namorávamos à janela. Era assim na época.
Nem pouco mais ou menos. Estava tal e qual como estou aqui a falar consigo. O Quaresma é que não me largava antes e durante o jogo, a dar-me indicações. Sempre tive uma grande admiração por ele. Era um bom homem. Nunca o consegui tratar por tu.
Que mais recorda desse jogo?
Aos 15 minutos estávamos a perder por 2-0. Tive uns problemas com um defesa do FC Porto, o Guilhar, que estava a marcar-me. Era terrível, chamava-me nomes e dava-me beliscões. Mas demos a volta ao resultado graças a três golos meus.
Só para ter uma ideia, o primeiro jogador nosso a tocar na bola foi o Capela, que a foi buscar dentro da baliza. Um quarto de hora depois, estou a cerca de um metro e tal da baliza. O Rafael cruzou uma bola em direcção a mim, mas deixei de a ver por causa do sol. Fiz um calculo: «Deve estar a chegar e meto-lhe o pé.» A bola foi pelo mesmo caminho.
Começou mal.
Foi um caso sério. Toda a gente sabia que éramos obrigados a ganhar. Caso contrário, o Benfica era campeão. O Valadas [n.d.r.: autor do primeiro golo da história dos campeonatos nacionais], antigo jogador do Benfica, tinha ido treinar o Elvas durante uma semana para que, pelo menos, conseguissem empatar. E esteve quase a conseguir.
Chegaram ao intervalo a perder. O que falaram para corrigir o resultado?
Tenho a impressão que nem falámos. Entrámos surdos e mudos, todos amuados. Na segunda parte marquei um golo e o Rafael fez o segundo.
Como foi a festa?
Aí é que está o busílis! Toda a gente chorava na cabine. Eu era o único que não sentia nada. Era um puto com 18 anos. Se ganhasse, ganhava. Se perdesse, perdia. Viemos para Lisboa em carros particulares, mas não me lembro de nada da viagem.
E a chegada a Lisboa?
Chegámos à uma e tal da manhã. Estava bastante gente, mas nada que se compare com o que é hoje. Demos três voltas à estátua do Afonso de Albuquerque [n.d.r.: nos jardins de Belém]. Era uma tradição de vitória. Ainda foi pior. Toda a gente chorava. Eu dizia ao José Pedro: «As pessoas estão a chorar porquê? Deviam era estar a rir.» Festa não era para chorar.
Eu não costumava levar malas para os jogos. Como só passávamos uma noite fora, não precisava de levar mudas de roupa. Uma vez, o Amaro pediu-me para levar a mala dele. Dei uma gargalhada e disse-lhe: «Você deve estar a brincar comigo». Isto passou-se em 45/46. Se não levava a minha mala, porque é que havia de levar a dele? Foi a minha morte.
Então?
Mais tarde, quando o Scopelli chegou para treinar o Belenenses, foram-lhe apresentados os jogadores da linha principal, os suplentes mais utilizados e as reservas. Começámos os treinos e o Amaro, que tinha jogado com o Scopelli no Belenenses, aconselhou-o na constituição da equipa. Fizeram as equipas e eu fiquei de fora. Nem nas reservas tinha lugar. Perguntei ao mister se ele se tinha esquecido de mim. Pôs-me a defesa esquerdo. Num treino, sempre que recebia a bola virava-me para a baliza do Sério, que era o meu guarda-redes.
«Não devias era defender?» Eu disse-lhe que estava habituado a jogar a avançado-centro. Chutava sempre para a baliza que estava mais perto. Continuei a jogar e fiz três golos. Ele suspendeu o treino e perguntou-me se eu não tinha de ir trabalhar. Nunca mais joguei na primeira categoria pelo Belenenses. O Scopelli desmantelou o Belenenses. Saí eu, o José Pedro e o Capela.
Mas antes da época de Scopelli o Belenenses ainda viveu o ano mau. Terminou em terceiro lugar, longe dos dois primeiros, e o Manuel Andrade também se apagou.
Não jogava em todos os jogos e o ambiente também não era o melhor.
Li que os adeptos cobravam muito de si.
Ah, pois! Diziam que me metia nos copos. Que bebia muita aguardente e que ia bêbedo para o campo. Logo eu que nem bebia vinho.
O treinador era o Cândido de Oliveira. Ainda fiz um jogo particular, em Bilbau.
Como era partilhar o balneário com aquelas figuras?
Completamente diferente daquele a que estava habituado no Belenenses. Havia grupinhos, mas dava-me bem com todos, especialmente com o Travassos porque tínhamos jogado um contra o outro nos juniores.
Driblava e chutava com os dois pés. Uma vez, quando ainda era júnior, um árbitro veio apertar-me a mão por ter marcado golos de pé esquerdo. Mas às vezes ponho-me a pensar que não sei se me adaptaria ao futebol actual. Corria o risco de ser expulso em todos os jogos.
Porquê?
Não admitia que me tocassem. O primeiro tipo que me tocasse de propósito levava logo. Tive um episódio com o Monteiro da Costa [do FC Porto] nas Antas, num jogo pelo Estoril. Um jogador nosso lesionou-se e o treinador perguntou-me se eu podia jogar a defesa esquerdo. Eu disse que não havia problema: passava a bola, não passava o jogador. O extremo-direito do FC Porto era o Vieira, um rapaz extremamente educado, um gentleman . Ele era bom demais e muito rápido: era sprinter de 100 metros. Agarrei-o várias vezes para que ele não passasse por mim e, num desses lances, em que nós estávamos no chão, levei um pontapé nas costas. Olhei para cima, levantei-me nas calmas, fui direito a ele e dei-lhe uma pêra. Parecia uma tábua a cair. Já não se levantou. O árbitro expulsou-nos. Quando estávamos a ir para os balneários, se não fosse um polícia a agarrar-me eu tinha desfeito o Monteiro da Costa. Nunca simpatizei com os tipos do FC Porto. Havia outro tipo chamado Nunes, que também jogou no FC Porto e depois foi para o Estoril. Num treino, eu ia a correr atrás dele e acertou-me propositadamente no joelho com o calcanhar: era useiro e vezeiro a fazer isso. Fui atrás dele, dei-lhe um toque no ombro e uma pêra. Andou 15 dias com óculos escuros.
Era danado...
O meu melhor amigo da altura era jogador de boxe. Chamava-se Guilherme Martins e era um tipo fino. Nem parecia jogador de boxe. Chegou a ganhar a um tipo que veio de Moçambique, chamado Beny Lévi, que era dos melhores que aí andavam. Eu costumava treinar com ele uma ou duas vezes por semana no Estoril Praia.
Nunca me senti um jogador de futebol a 100 por cento. Não gostava de jogar futebol. Mas, como tinha jeito, jogava.
O Belenenses ainda é o seu clube?
Continua a ser, apesar de já não estar muito ligado. Este ano liguei mais do que nos outros anos, porque o Belenenses andou aflito até ao fim.
Como encara as últimas décadas do Belenenses, que tem passado por graves problemas financeiros e desceu de divisão em várias ocasiões?
Estou fora do futebol nesse aspecto. Mas não percebo como é que à vezes joga tão mal. É uma miséria.
[Resposta imediata] Di Stéfano! Não tem comparação. Só o Mário Coluna que, mesmo assim, era inferior. O Coluna é, quanto a mim, o melhor jogador português de sempre. Marcava golos e era o patrão do Benfica e da selecção nacional. Mas longe de mim dizer que o Eusébio não prestava!
Quais são os jogadores que mais aprecia agora?
Gosto do Messi.
E Cristiano Ronaldo que, tal como o senhor, é madeireinse?
Não dribla nem dá bolas a marcar como o Messi. O Cristiano Ronaldo prefere rematar a passar a bola. E, muitas vezes, o Real Madrid não marca golos porque ele não passa a bola a quem está bem posicionado. Não deixa de ter valor, porque marca muitos golos, mas, para mim, o melhor jogador do Real Madrid é o Modric. De longe. Faz as coisas com souplesse. Toca na bola como quem toca numa pena.