Meias em baixo, o peso de uma pena, pele branca «como a de um gringo». O prazer de ter a bola no pé esquerdo, por entre asfixiantes nuvens de pó. Horas e horas, bola e mais bola, o desejo ininterrupto de ser especial na cancha das promessas do Newell's Old Boys.

Rosario, 1995. O frágil Lionel chega ao primeiro treino nas escolinhas do Newell's. É mais pequeno do que os outros. Passa despercebido, mas só até a bola começara rolar. Aos primeiros passes e dribles, o treinador Ernesto Vecchio percebe o que tem entre mãos.

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«Já o tinha visto a jogar na rua, por mera coincidência. Quando me apareceu no clube, fiz questão de o olhar com atenção. É notável como era diferente dos outros. Jogava de cabeça levantada e sempre com objectividade», recorda ao Maisfutebol o primeiro homem a orientar Lionel Messi.

Arte pura, sacra. Como domar a ingenuidade selvagem de uma criança de oito anos? Uma criança hiper-dotada, marcada com o cunho da genialidade. «Não dava, era impossível. Uma vez fomos para um jogo e ele estava a arder em febre. Não o queria deixar jogar, mas ele insistiu e cedi», relata Ernesto Vecchio.

«Aos dez minutos ainda não tinha tocado na bola. Não parecia o mesmo. Chamei outro miúdo para entrar e ia tirar o Lionel do jogo. De repente, nossa senhora! Passaram-lhe a bola, correu o campo todo a fintar adversários, passou pelo guarda-redes e marcou. Ficou no chão, exausto, quase desmaiado, branco e a dizer aos colegas que agora já podia sair.»

26 anos a trabalhar gratuitamente e um tal de Matías
O senhor Vecchio tem 58 anos e trabalha há 26 para o Newell's. Sempre gratuitamente. «Nunca ganhei um cêntimo.» Todas as noites, depois de passar dez horas na sua oficina de automóveis, chega ao mesmo relvado onde tentou «dar alguma organização» ao talento de Lionel Messi.

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«Sou apaixonado pelo que faço. Gostava de ser rico, mas um mecânico não nasceu para ser rico. Ainda assim, sinto-me um privilegiado. Treinei um rapaz que foi abençoado por um dom», desabafa, claramente emocionado, certo de que Messi é «único».

«Já treinei centenas e centenas de meninos. Nunca nenhum se aproximou do nível do Lionel, mas agora ando entusiasmado com o Matías», atira, num tom de voz mais grave. «Tem dez anos e joga muito, tem parecenças com o Lionel.

Provavelmente vai sair do clube no final do ano. O apelido? Peço desculpa, mas não sei. Chama-se Matías», insiste, quase constrangido.

A mágoa da ingratidão com o Benfica à mistura

Na despedida, mais seguro, o senhor Ernesto deixa alguns lamentos. O lamento de não falar com Lionel Messi «há mais de dez anos», por exemplo.

«Fui ao hotel onde estava a selecção antes do jogo com o Brasil. Mas só consegui falar com os pais dele. Gente humilde e simpática. No dia do jogo passou perto de mim e sorriu. É uma pena que os meninos esqueçam algumas coisas quando encontram o sucesso», esmorece o mentor do esquerdino mais famoso do mundo.

E não é que até o Benfica entra nesta onda de mágoa? «Em 2006 ele lesionou-se e não jogou contra o Benfica na Liga dos Campeões. Disseram-me que estava em Rosario e fui a casa dele, uma verdadeira fortaleza, matar saudades.

Disseram-me que não estava, mas é mentira. Vi-o ao longe a assistir televisão. Enfim, deve ter medo que eu lhe peça alguma coisa. O dinheiro muda um pouco as pessoas.»