Vinte anos de uma noite memorável – e eficaz – para o FC Porto e para Maniche, em Lyon. Este domingo completam-se duas décadas sobre a última qualificação de uma equipa portuguesa para as meias-finais da Liga dos Campeões.

Aconteceu no icónico Stade de Gerland – até janeiro casa da equipa feminina do Lyon – num duelo que terminou 2-2, mas com o agregado a favorecer os dragões (4-2). A turma de Mourinho dobrou o então bicampeão francês, meses mais tarde tricampeão, numa era que cessou em 2008, com o hexacampeonato.

Curiosamente, um ciclo, então renascentista, que atualmente parece medieval, tal como a arte que adorna Lyon.

A convite do Maisfutebol, Maniche encarrega-se de viajar no tempo, para regressar àquela noite de abril de 2004, escaldante até antes de a bola rolar.

«Sabíamos que guardávamos uma vantagem interessante (2-0), mas os adeptos fizeram de tudo para nos intimidar, até na chegada do autocarro. Isso lembrou-me da visita ao Marselha, na fase de grupos. Durante o aquecimento, o barulho era ensurdecedor. Foi impactante, não conseguia ouvir os meus colegas», começa por contar.

Como descreveu Olga Teixeira, então enviada especial do Maisfutebol a Lyon, os franceses, atrás na eliminatória, visaram a baliza de Vítor Baía desde cedo, e até marcaram, mas o árbitro auxiliar entendeu que Luyindula estava em fora de jogo, num lance que ainda hoje deverá suscitar acessos debates nas hostes do OL.

«Sabíamos que o Lyon tinha muita qualidade – com jogadores como Juninho, Diarra, Essien e Coupet – e o estádio estava cheio. Se os deixássemos crescer, o público iria catapultar a equipa. Mas, estávamos confiantes», detalha o antigo internacional português, de 46 anos.

Instruídos por José Mourinho para «não reter a posse no miolo, face à qualidade dos médios», os azuis e brancos procuraram a construção lateralizada, com Deco e Maniche a deambularem das respetivas posições. Numa das primeiras incursões, Deco – que havia marcado no primeiro «round» – descaiu para a esquerda, em auxílio a Carlos Alberto, e «disparou» para a direita, rasgando a defesa francesa. Sozinho, Maniche abriu o marcador, ao cabo de seis minutos.

«Quando o Deco baixava, eu surgia no espaço dele. Ele assistiu de onde eu costumava entrar para servir os avançados, ou até o próprio Deco. Era sistemático e fruto de conhecimento mútuo. Nem precisava de olhar para saber onde ele ia aparecer. Fruto do treino e da vida extra-futebol. Foi o melhor jogador com quem partilhei campo», conta.

Deco, o «cromo» que se extinguiu

Para Maniche, este «mágico», decisivo nos sucessos europeus do FC Porto, foi um dos últimos capítulos da posição «10», com liberdade para criar e definir.

«Dava a ideia de que iria perder a bola, mas, com um toque extra, tirava o adversário da jogada. Era inteligente e tecnicamente evoluído. O Deco era um mágico. Hoje, os treinadores – até pensando no próprio futuro – protegem-se, colocando um duplo pivô, acrescentando um médio, ou pedindo para que os alas cortem para dentro, a fim de tornar a equipa mais compacta. Antes, não era assim. Havia muito critério, definição e magia», argumenta.

Desafiado a identificar um jogador que, na Liga, poderia «calçar» nessa posição, o outrora médio admite dificuldades para renovar esse «cromo».

«O Marcus Edwards poderia ser esse elemento, mas é um jogador de ala, muito evoluído e forte no um para um. O Francisco Conceição é semelhante quanto ao controlo da bola. Mas, o "10" puro não encontro. O Rafa não é, joga disfarçado, porque é bom entrelinhas e tem muita velocidade», detalha.

Regressemos, então, a 2004 e ao Stade de Gerland.

«Mourinho não ficou satisfeito com o empate»

Ainda na primeira parte, o Lyon empatou. Aos 14m, Luyindula assinou o 1-1 (3-1). Conforme descreveu Olga Teixeira, a pressão dos franceses avolumou-se e apenas diminuiu quando Costinha «recuou para a zona central».

Na etapa complementar, logo ao segundo minuto, Deco e Maniche repetiram a receita do golo inaugural. De novo da esquerda para a direita, o «mágico» variou o flanco, e, no coração da área, encontrou o n.º 18, ao segundo poste.

A estocada na eliminatória coincidiu com o terceiro golo de Maniche e a quinta assistência de Deco nesta epopeia europeia do FC Porto.

«Jogávamos em 4-4-2 losango na Champions, algo que não fazíamos na Liga. Por isso, estávamos muito bem trabalhados. Essa confiança, aliada à qualidade e experiência, foi determinante. Quando a fase de grupos foi sorteada, não pensávamos em chegar às “meias”. Mas, no “mata-mata”, por que não? Quiçá chegar à final e ganhar», remata.

Assim, a expulsão de Edmilson, aos 73m, e o golo de Élber, para lá do minuto 90, foram apenas notas nesta noite marcante para a história dos dragões.

«A meia-final era uma realidade», reiterou Olga Teixeira.

Em todo o caso, José Mourinho torceu o nariz depois do apito final.

«Não gostou do empate, porque no FC Porto era como uma derrota, até naquele contexto, porque sabíamos que éramos mais fortes. O grande jogo que fizemos em Lyon reforçou a “chama” para o sonho», conta Maniche.

Além dos golos do médio, também o acerto de Deco e Ricardo Carvalho, na primeira mão, ajudam a narra o desenrolar da eliminatória com o Lyon.

«Os planteis do FC Porto em ’87 e 2004 eram só quase portugueses»

Antes da final em Gelsenkirchen, diante do Mónaco (3-0), o FC Porto superou o Deportivo Coruña (0-0 e 0-1), graças ao penálti convertido por Derlei no Riazor, na segunda mão. Nesta conversa com o Maisfutebol, Maniche aproveita para realçar alguns momentos dessa meia-final.

«Tivemos a felicidade de contar com a ajuda do Jorge Andrade, que foi expulso na primeira mão [risos]. Já sentíamos o peso da responsabilidade de vencer. Na Corunha soubemos sofrer, porque o Deportivo encostou-nos à defesa. O golo do Derlei foi decisivo, num jogo sofrível», recorda.

De regresso ao presente, e espreitando o futuro, o antigo internacional português guarda argumentos quanto à crescente dificuldade dos emblemas nacionais na Liga dos Campeões.

«O mercado dificulta a retenção de talento. Tanto em 1987 como em 2004, os plantéis do FC Porto eram quase só portugueses, em projetos de continuidade. Hoje, chegar aos “quartos” é como ganhar uma final. As grandes equipas europeias detêm o poder financeiro», conclui.

Para história fica a geração de 2003/04 do FC Porto, «outsiders» que no «mata-mata» ambicionaram elevar as conquistas da época anterior. Há 20 anos, em Lyon, os dragões confirmaram a presença nas meias-finais da Liga dos Campeões. Desde então, o futebol nacional não mais conheceu tal proeza.