Adaptado de um artigo publicado em 2004

O melhor guarda-redes de que possivelmente nunca ouviu falar morreu nesta sexta-feira. Chamava-se Bernd Carl Trautmann, que em alemão quer dizer «homem de confiança». Nasceu em Bremen, em 1923. E se o lugar-comum manda dizer que certas vidas davam um filme, esta ultrapassa a norma e multiplica-a por três.

Os primeiros tempos tornam-no num herói improvável: Trautmann foi um dos milhões seduzidos pela retórica de Hitler e fez-se militante da juventude hitleriana. Alistado como pára-quedista, apresentou uma folha de serviços que misturava coragem, inconsciência e rebeldia.

Com a farda nazi, algumas semanas depois de escapar a um julgamento por sabotagem, o jovem soldado Trautmann ganhou uma Cruz de Ferro na terrível batalha de Arnhem (Holanda), após a qual esteve três dias soterrado nos escombros de um celeiro.

O seu percurso na II Guerra faz lembrar os filmes de Steve McQueen: capturado pelos russos, evadiu-se de um campo de prisioneiros. Seguiu-se a Resistência francesa e depois os americanos sempre com o mesmo desfecho. À quarta foi de vez. Como nos filmes, os soldados ingleses receberam-no de espingardas apontadas e, segundo Trautmann, com um caloroso «Olá Fritz, vai uma chávena de chá?».

O futebol aparece mais tarde. Com a Guerra a terminar, no campo de prisioneiros de Ashton-in-Makerfield, Trautmann encontrou a paz. Jogava à bola com outros presos e, aos poucos, integrou-se na comunidade. Libertado em 1948, tornou-se agricultor, e começou a jogar na baliza de um clube amador, onde foi detetado por um caçador de talentos de Manchester.

Sem experiência profissional, Trautmann só precisou de meia dúzia de treinos para convencer os técnicos do City. Ágil, louco, destemido, era um predestinado. Faltava o mais difícil: convencer os adeptos, nos anos em que ser alemão era sinónimo de marginalização. Uma manifestação de milhares vincou o desagrado pela contratação, mas foi Alexander Altmann, o rabi de Manchester a sair em sua defesa: «Nenhum homem pode ser julgado em nome de um povo inteiro». Os adeptos ouviram e aceitaram julgá-lo em campo.

Segue-se um «fast forward» de sete anos de exibições miraculosas que lhe deram a reputação de melhor guarda-redes da Liga. Até ao dia 5 de Maio de 1956, em Wembley, em que o City, pela segunda vez consecutiva, tentava conquistar a Taça.

Nessa tarde, diante do Birmingham, Trautmann, que britanizara o nome para Bert, fez o jogo da sua vida numa vitória por 3-1. Mas mais do que as incontáveis defesas, o que ficou para a história foi o diálogo com o príncipe Filipe, que entregou taça e medalhas: «Por que jogou os últimos minutos com a cabeça de lado?». «Não sei, Alteza, não consigo mexer o pescoço», respondeu impassível. Radiografado no final do jogo, Bert descobriu ter jogado a última meia hora com o pescoço partido em dois sítios.

Seguiram-se meses de recuperação, o estatuto de herói atribuído pelos jornais e a adoração do povo, mas também a tragédia: a morte de um filho, atropelado quando brincava na rua, a que se seguiu um penoso divórcio e uma depressão profunda.

Com 34 anos parecia acabado para o futebol. Mas foi nas balizas que voltou a equilibrar a vida: contra todas as expectativas, o regresso a Maine Road, em 1957, acentuou a lenda de indestrutível, e permitiu-lhe atingir o impressionante número de 545 jogos pelo City, até à despedida, em 1964, com 40 anos. 60 mil assistiram ao seu jogo de homenagem. Bobby Charlton chamou-lhe então o melhor guarda-redes de todos os tempos. Poucos o contestaram.

Nem a reforma foi igual às outras. Depois de curta passagem pelo Portsmouth, como treinador, tornou-se observador da Federação Alemã, que o fez correr mundo, em especial África, à procura de novos talentos. Só perto dos 80 anos o homem do pescoço partido assentou de vez, regressando à Alemanha. Morreu nesta sexta, aos 89 anos, deixando memórias suficientes para encher três vidas.