De Gelsenkirchen ao Lusail vão 16 anos e meio de uma história que chega ao fim no domingo. Lionel Messi vai continuar por aí. Mas esta será a última vez que veremos no Campeonato do Mundo o astro que paira sobre o relvado e banaliza o génio a cada jogo, a cada lance. Nesse dia, ele vai tornar-se o jogador com mais partidas de sempre na maior competição do planeta. Ao quinto Mundial, chega pela segunda vez à final. Tem a despedida que quis, a fechar um mês de sonho. Vai por uma última vez lutar pelo título que sempre lhe fugiu, aquele que colocaria o selo definitivo na sua carreira e no seu legado.

Messi estreou-se no Mundial 2006, aos 18 anos, com um golo e uma assistência. A história do pé esquerdo mágico no Campeonato do Mundo tem tudo, até uma passagem de testemunho direta pela mão de Diego Maradona. Tem ilusão, génio, frustração. Nesta década e meia ele ganhou tudo com o Barcelona, saiu para continuar a lenda no PSG, lutou para estar à altura da imensa expectativa com a camisola da Argentina, teve por duas vezes o impulso de abandonar a seleção, mas voltou sempre. Aos 35 anos, sabendo que para ele não haverá uma próxima vez, chegou ao Qatar mais determinado que nunca e carregou a esperança de cada argentino, fazendo de cada jogo no Mundial 2022 uma demonstração de génio, competitividade, génio, experiência e outra vez génio. Fez o seu jogo 1000 no Qatar, bateu recordes atrás de recordes. São até aqui 25 partidas, 11 golos, cinco Mundiais.

Pablo Aimar, o seu ídolo de infância, tão bom com as ideias como com os pés, diz que Messi está tão à frente que até decide onde sofre as faltas para bater um livre. E também que ele «joga uma coisa e os futebolistas outra». A jogar essa outra coisa, o 10 levou a Argentina até à final. Cinco golos e três assistências até aqui traduzem em números o percurso no Qatar, ainda que ele seja muito mais do que isso.

Antes de cair o pano sobre esta história, o Maisfutebol recorda 10 momentos que contam a lenda de Messi no Campeonato do Mundo.

A 19 na estreia do 10

 

16 de junho de 2006, Gelsenkirchen. O adolescente Leo já brilhava no Barcelona, tinha sido campeão do mundo de sub-20 um ano antes, mas estatuto é estatuto e a camisola 10 era de Riquelme, naquele Mundial onde também estavam Lionel Scaloni e Pablo Aimar, que haveriam de voltar para o fim desta história. Para Messi sobrou a 19. Também teve de esperar pela estreia. Chegou com problemas físicos ao Mundial e ficou no banco na vitória da Argentina sobre a Costa do Marfim. Ao segundo jogo chegou a hora. Entrou em campo aos 75 minutos, para render Maxi Rodríguez, quando a Argentina vencia por 3-0. Foi para a esquerda e passaram três minutos até centrar para oferecer um golo a Crespo. A dois minutos do final marcou o seu primeiro golo no Campeonato do Mundo, a avançar sobre a direita depois de um passe de Tevez. Um golo e uma assistência e ainda dois recordes num só jogo. Era o mais novo de sempre a jogar e a marcar pela Argentina num Mundial.

No banco, uma imagem que não se repetiria

Com a Argentina já qualificada, Messi jogou de início a última partida da fase de grupos no Mundial 2006, o nulo frente aos Países Baixos, e voltou a sair do banco nos oitavos de final frente ao México, que Maxi Rodríguez decidiu com um enorme golo no prolongamento. Completou 19 anos nesse dia. Para os quartos de final, Messi não saiu do banco. Foi daí que ficou a ver a decisão nos penáltis, que sorriu à Alemanha. Foi um jogo com muitos contratempos para a Argentina, que teve de trocar o guarda-redes por lesão e esgotou as substituições quando estava a tentar gerir a vantagem, antes do golo de Klose que levou a decisão para prolongamento. As críticas ao selecionador José Pekerman por não ter utilizado Messi prolongaram-se no tempo. Não voltaríamos a ver Messi começar no banco um jogo do Mundial.

A passagem de testemunho de Maradona

Já era uma estrela planetária quando chegou ao Mundial 2010, o génio que encantava em Barcelona e que vencera a Bola de Ouro na época anterior.  Diego Maradona era o selecionador da Argentina e esse foi o Mundial da passagem de testemunho, mais do que simbólica, entre os dois astros. Messi, já com o 10 nas costas, jogou cada minuto da campanha da Argentina, que estava qualificada ao segundo jogo, depois de vitórias sobre a Nigéria e a Coreia do Sul. Maradona fez descansar vários titulares para a última jornada, frente à Grécia. Por sinal, o último adversário a que El Pibe marcou num Mundial, em 1994. Mas não só manteve Messi em campo como lhe entregou a braçadeira de capitão. A dois dias de completar 23 anos, seria o mais novo de sempre a usá-la num Mundial. Não foi um privilégio fácil de gerir para Messi. «Nesses dias vi Messi nervoso pela primeira vez», contou Verón, que partilhou quarto com Messi na África do Sul, na biografia de Messi do jornalista Leonardo Faccio: «Não era a responsabilidade de liderança que o incomodava. O problema para ele era o discurso que devia fazer para os companheiros.» Em 2019, Messi falou sobre esse momento à Fox Sports: «Na primeira vez que fui capitão custou-me falar no balneário. Não sou de falar muito, acho que cada um sabe o que fazer em campo e a importância do jogo que vai jogar. Sou capitão à minha maneira.» A Argentina venceu por 2-0, com Martin Palermo a selar a vitória, depois de Messi ter ficado várias vezes perto do golo. A braçadeira voltou para Mascherano no jogo seguinte, quando Messi assistiu Tevez para o primeiro golo da vitória sobre o México nos oitavos. Mas para Messi, Maradona e companhia, a caminhada terminaria em choque no jogo seguinte, quando a albiceleste foi cilindrada por uma Alemanha a consolidar as bases da equipa que seria campeã do mundo quatro anos mais tarde.

«Deem-lhe a bola e rezem»

Brasil 2014. Ao terceiro Mundial de Messi, a Argentina foi mesmo até ao fim, embalada pelo 10. Agora já capitão de corpo inteiro, ele mostrou o caminho desde o primeiro jogo, com o Maracanã como palco. Depois de um centro que resultou em autogolo da Bósnia, Messi marcou ele próprio o segundo golo. Mas foi o jogo seguinte que alimentou a lenda. A partida com o Irão de Carlos Queiroz esteve amarrada até ao fim. Todas as tentativas da Argentina se revelavam infrutíferas, até que Messi inventou no último suspiro o golo da vitória. Já passava dos 90 quando recebeu a bola de Di María. «Give it to him and pray», antecipava o comentador da BBC. E pronto. Sobre a direita, Messi foi avançando até descobrir o espaço de que precisava para fazer passar a bola, em força junto ao poste mais distante. No último jogo da fase de grupos, frente à Nigéria, Messi entreteve-se a fazer coisas de Messi, incluindo mais dois golos, o primeiro num ressalto e o segundo de livre. Nem o guarda-redes Enyeama evitou um cumprimento e um sorriso perante o génio do rival.

A inventar atalhos até à desilusão final em 2014

Nos oitavos de final a Argentina defrontou a Suíça, que durante 118 minutos tapou os caminhos para a baliza. Mas então, o 10 voltou a inventar um atalho, avançando pelo centro a deixar suíços pelo relvado, até dar para a esquerda, onde apareceu Di María a fazer o golo que decidiu o jogo. No jogo seguinte, a vantagem da Argentina frente à Bélgica chegou cedo, num golo que começou numa recuperação de bola de Messi a meio-campo. Deu para Di María, que assistiu Higuaín para  o golo que levou a albiceleste até à primeira meia-final em 24 anos. O duelo com os Países Baixos fazia antecipar um clássico, mas foi um jogo amarrado, com ambas as equipas a tentarem evitar o erro. Decidiu-se nos penáltis e Messi foi o primeiro a avançar. Rematou para a esquerda, bateu Cillessen e passou desde logo aí a mensagem aos companheiros. O resto ficou a cargo de Sergio Romero, que defendeu dois penáltis. A Argentina de Messi voltava a reencontrar a Alemanha numa final. Mas, tal como acontecera com Maradona em campo em 1990, a vitória foi alemã, decidida num golo de Gotze. Messi tentou por todas as vias, mas não deu. Deixava o Brasil como vice-campeão do mundo e eleito melhor jogador de um Mundial em que marcou quatro golos, fez uma assistência e, para juntar mais alguns números, criou 13 ocasiões claras de golo e fez 46 dribles, dizem as estatísticas da FIFA. A imagem de desalento de Messi ao receber a Bola de Ouro, enquanto passava ao lado da Taça do Mundo, diz tudo. «A ferida do Brasil vai estar sempre presente», diria.

Magia no tudo ou nada em São Petersburgo

Depois da final perdida de 2014, a Argentina voltou a cair em duas decisões seguidas, na Copa América de 2015 e 2016. Foi o período mais difícil da relação de Messi com a Argentina. Um historial de críticas e o peso da desilusão, depois de um penálti falhado na final de 2016, levou Messi a anunciar o abandono da seleção, no calor do momento. Um mês mais tarde reconsiderou e decidiu voltar. «Amo demasiado o meu país e esta camisola.» Voltou a liderar a Argentina na corrida ao Mundial 2018, mas eram tempos agitados na seleção, depois de várias mudanças de treinador. E as coisas começaram mal logo de início na Rússia. Na estreia no seu quarto Mundial, o capitão falhou um penálti no empate com a Islândia. E tudo se complicou com a pesada derrota frente à Croácia, já de Modric (3-0). A terceira partida, com a Nigéria, era de tudo ou nada para a Argentina. E Messi assumiu a liderança, dentro e fora de campo. Aos 14 minutos, voltou a fazer magia. Dominou com a coxa um passe longo de Banega, deu mais um toque e apenas mais outro e fez o primeiro golo do jogo. A vantagem era curta, mas Messi não deixou de acreditar. O ex-sportinguista Marcos Rojo, que marcaria o golo da vitória a cinco minutos do fim, contou ao site da FIFA a forma como Leo incentivou a equipa ao intervalo: «Veio ter connosco e disse-nos para acalmarmos. Estávamos nervosos e essa mensagem ajudou-nos muito.»

Quando a estrela de Mbappé brilhou mais do que a de Messi

A Argentina estava nos oitavos de final do Mundial e tinha um duelo de luxo marcado com a futura campeã França, onde já brilhava a estrela de Kylian Mbappé, fenómeno para o futuro. Messi, uma vez mais, não conseguiu marcar numa eliminatória de Mundial. Esteve na origem de dois dos três golos da Argentina, nos passes para Mercato e Aguero, mas foi Mbappé a sair por cima, com dois golos que ajudaram a mandar a Argentina para casa nessa vitória da França por 4-3. Messi nunca tinha caído tão cedo num Mundial. Era o fim de um ciclo para alguns dos nomes de uma geração que esteve perto da glória, como Mascherano, Aguero ou Higuaín. Depois da Rússia, uma competição marcada por muita tensão, com quebra de confiança entre os jogadores e Sampaoli, Messi afastou-se da seleção por uns meses. Mas depois de digerir nova desilusão voltou, para liderar uma equipa em renovação, ao lado de velhos companheiros: Lionel Scaloni, que assumiu como selecionador, e Pablo Aimar, o ídolo de infância de Messi, que integrava a equipa técnica da albiceleste. O destino marcou para 2022 a reedição daquele duelo, agora em plena final.

E a Arábia Saudita gelou a «Scaloneta»

A vitória na Copa América de 2021 virou uma página. Aos 34 anos, Messi festejava finalmente um título maior pela Argentina e sacudia o peso de tantos anos de frustrações com a camisola celeste e branca. O sucesso da «Scaloneta», uma seleção renovada no banco e em campo, com Messi como líder surpremo, alimentou a ambição do 10 e de todo o país para o Mundial. A Argentina chegava ao Qatar sem perder há 36 jogos, embalada pelo fervor de uma nação. Tudo parecia seguir de acordo com o guião na estreia frente à Arábia Saudita, depois de Messi inaugurar o marcador logo aos 9 minutos, de penálti. Seguiu-se um festival de desperdício da Argentina, que teve três golos não validados por fora de jogo na primeira parte. Mas depois a Arábia Saudita virou o filme ao contrário. Um golo, depois outro, consumaram o escândalo. No fim, Messi falou para dentro. «Somos um grupo unido e agora é altura de estarmos todos juntos. É preciso mostrar que somos fortes», disse, embora tenha admitido depois como essa derrota foi dura: «O meu filho Mateo chorava e fazia contas.» No jogo seguinte, frente ao México, Messi falou em campo. A Argentina tardou a impor-se, mas aos 64 minutos ele inventou a solução. Tinha falado um minuto antes com Di María, a dizer que tinham de aproveitar o facto de os adversários estarem muito concentrados na área. E esperou ali, ao centro. Quando o passe chegou, decidiu numa fração de segundo. Aimar a soluçar no banco depois daquele golo era a imagem de toda a Argentina. Ao primeiro de Messi seguiu-se outro golaço do benfiquista Enzo Fernández e a vitória que relançou a Argentina no Qatar. No final, Messi deixou o aviso: «Hoje começou outro Mundial.»

Do golo à Austrália ao «Qué mirás, bobo»

Ao terceiro jogo, a Argentina venceu a Polónia e seguiu em frente, mesmo depois de Messi falhar o seu segundo penálti num Campeonato do Mundo. Seguia-se o jogo 1000 de Messi, quis o destino que fosse em pleno Mundial. E mais uma vez foi ele quem encontrou o caminho. Arrancou da direita, combinou com Mac Allister e Otamendi e disparou por entre uma floresta de pernas australianas. Ao 23º jogo, foi o seu primeiro golo em fases a eliminar do Mundial. Mas foi sobretudo mais um golo e uma exibição para a lenda, que lançou o apuramento da Argentina e marcou um clássico para os quartos de final. O jogo com os Países Baixos foi uma batalha que mostrou o génio, mas também a face mais dura de Messi. Fez o passe de sonho para Molina marcar o primeiro golo e voltou à marca de penálti para não falhar desta vez, festejando na direção de Van Gaal, a trazer à memória uma velha quezília por causa de Riquelme. Depois a Argentina permitiu o empate, num bis de Weghorst. A tensão foi crescendo, ao longo do prolongamento, depois nos penáltis. Voaram cartões e provocações. No desempate, Messi foi o primeiro a bater e a Argentina levou a melhor. Depois festejou na cara dos adversários e Messi levou a enorme tensão do campo para a flash interview, expressa nas críticas a Van Gaal e no olhar de gelo no «Qué mirás, bobo?» dirigido a Weghorst.

De que planeta veio?

Para a meia-final, Messi reservou o seu momento maradoniano. Mas isso mais foi lá para a frente. Antes entreteve-se a bater recordes. Quantos querem? Pelo simples facto de entrar em campo, igualou o recorde de Lothar Mathäus. 25 jogos em Mundiais, ninguém tem mais que eles. E a final de domingo deixará Messi sozinho na frente. Depois, ao marcar de penálti o primeiro golo, tornou-se o argentino com mais golos de sempre em Mundiais: passa a 11, um a mais do que Gabriel Batistuta. A seguir, deve ter sorrido, como todo o mundo, com o golo a ganhar a lotaria de ressaltos de Julian Alvarez. E fechou a noite com aquela arrancada pela direita a fazer gato-sapato de Gvardiol, a banalizar um central de elite, que rematou com o passe para a «Araña» Alvaréz marcar o 3-0. Depois da vitória sobre a Croácia, ele confirmou o que o mundo sabia, mesmo que estivesse em negação: este é o seu último Mundial. O último ato está marcado. Domingo, 15h00, Argentina-França.