Quem já passou os olhos por um jogo da Coreia do Sul, no Mundial 2022, não pode ter deixado de reparar em Kwon Chang-hoon: é o número 22, joga no meio-campo ofensivo e dá nas vistas por várias vezes durante o jogo bater a continência.

Fá-lo durante o hino, por exemplo, enquanto todos os outros colegas se abraçam. Mas fá-lo também quando marca um golo e até quando é substituído: trava junto à linha lateral, bate a continência e só depois cumprimenta o colega, para sair de campo. Seguramente vai voltar a fazê-lo esta tarde, quando a Coreia defrontar Portugal.

Mas porquê?

Muito simples: Kwon Chang-hoon está no Qatar a cumprir o serviço militar. O Mundial 2022 surge no meio do tempo de tropa do jogador, pelo que recebeu uma autorização para viajar com a seleção. O que não significa que possa ignorar as obrigações militares.

Bater a continência é uma delas.

«É um gesto de respeito. Serve para mostrar o espírito militar e para honrar os outros tropas. Nós, os coreanos, temos naturalmente um sentido militar.»

Na Coreia do Sul, recorde-se, a tropa é obrigatória para todos os homens.

Nesse sentido, os sul-coreanos que foram dados como aptos na inspeção têm de cumprir, antes de atingirem os 27 anos, o serviço militar durante um ano e meio: dezoito longos meses.

«É difícil explicar. A Coreia do Sul é dos poucos países em que o serviço militar ainda é obrigatório. Se concordamos com isso? Nós não pensamos na Coreia do Norte todos os dias, para nós é tranquilo e o que o governo deles faz tornou-se de certa forma normal aos nossos olhos, mas a verdade é que a guerra das Coreias ainda não acabou. Por isso os homens entendem que seja obrigatório ir à tropa», conta Lim Jihun, um coreano a residir em Portugal.

«Mesmo assim as coisas têm vindo a mudar. O meu pai tem 76 anos e na altura dele era obrigatório fazer três anos e seis meses. Agora são dezoito meses, é bastante menos.»

Ora por isso, ver um jogador bater a continência durante um jogo do Mundial pode parecer-nos estranho, mas é um motivo de orgulho para quem o faz.

Até porque são muito raras as exceções concedidas à obrigatoriedade de cumprir a tropa.

«Se um atleta ganhar uma medalha de ouro, prata ou bronze nos Jogos Olímpicos ou uma medalha de ouro nos Jogos da Ásia, fica livre de ir à tropa. Mas têm de ser campeões. Em 2018, por exemplo, a equipa de futebol ganhou a medalha de ouro nos Jogos da Ásia e essa equipa ficou livre», conta Lim Jihun.

«Por isso é que o Son, do Tottenham, ou o Wang, do Olympiakos, não vão fazer a tropa, porque estavam nessa equipa que ganhou a Taça da Ásia. O Kwon Chang-hoon não esteve, em 2018 teve uma grave lesão e ficou vários meses parado. Não ganhou esse regime de exceção. Mas, mesmo assim, esses que ficaram livres têm de fazer a recruta de cinco semanas. Isso é obrigatório para toda a gente sem exceção. O Son, por exemplo, fê-la durante a pandemia. Depois ainda têm de ir à Coreia cumprir horas de serviço comunitário.»

Ora no verão de 2021, Kwon Chang-hoon tinha 26 anos, quase 27, e era um dos coreanos mais destacados no futebol europeu. Mas não podia mais adiar a entrada na tropa.

O médio jogava na altura no Friburgo, da Bundesliga, que tinha pagado três milhões de euros para o contratar depois de três anos no Dijon, e pediu ao clube alemão que o libertasse para voltar à Coreia do Sul: tinha de cumprir as obrigações militares.

Durante seis meses foi jogar no Suwon Bluewings, o clube onde se formara, até que em novembro desse ano saiu a circular do governo a dizer que o alistamento tinha sido aceite.

«Todos os homens fazem exame médico a partir dos 20 anos e até aos 27 é obrigatório entrar de qualquer forma. Por exemplo, podem pedir adiamento quando vão para a faculdade, ou quando decidem ir tirar um mestrado. Tem de haver algum motivo. Mas até aos 27 anos têm de cumprir o serviço militar. Não podem adiar mais.»

Por isso em novembro de 2021 Kwon Chang-hoon recebeu a confirmação de que ficou alistado e durante quatro meses cumpriu a recruta no Centro de treino do exército de Nonsan.

No fim da recruta, e por ser um jogador destacado, internacional pelo país, Kwon foi aceite no Gimcheon Sangmu, o clube do exército coreano.

«Os bons atletas podem cumprir o serviço militar no Gimcheon Sangmu, após concluírem a recruta. Não só os futebolistas, mas os atletas de várias modalidades. Assim treinam todos os dias, participam em provas nacionais e internacionais, podem manter os níveis físicos altos.»

O empresário Lim Jihun diz, no entanto, que é difícil entrar no clube. Só os internacionais coreanos, ou pelo menos atletas que já tinham sido campeões nacionais, podem ser aceites.

O Gimcheon Sangmu não tem jogadores próprios. Todos os atletas chegam por empréstimo do clube detentor do passe e vão embora após cumprido o ano e meio de serviço militar.

Durante esse tempo, de resto, ganham o ordenado de um militar em início de carreira normal. O que no caso dos jogadores de futebol é um verdadeiro choque.

Kwon Chang-hoon, por exemplo, estava no Friburgo, onde seguramente teria um salário milionário. A obrigatoriedade de fazer a tropa fê-lo regressar à Coreia do Sul, ingressar no Gimcheon Sangmu e ficar com um ordenado de 500 mil wons (ou seja, 402 euros).

«O salário não é tudo. Nós coreanos temos um espírito militar que nenhum dinheiro pode comprar», justificou o próprio Kwon quando lhe perguntaram pelo dinheiro que ia perder.

«É como no Mundial de 2018, na Rússia, quando a Coreia do Sul venceu a Alemanha. O talento individual é muito importante, e a Alemanha tinha-o, mas num jogo de futebol o mais importante é o talento coletivo, que pode ser melhorada em todos os aspetos. Esse espírito militar que nós temos permitiu-nos que o nosso talento coletivo fizesse a diferença.»

Filho de uma família de padeiros, foi na padaria dos pais que conheceu um olheiro da equipa de futebol do Liceu Maetan, que tinha uma parceria com a equipa Suwon Bluewings. Depois de terminar o ensino médio, pediu ao olheiro que o levasse para o Liceu Maetan, onde se formou e começou a jogar futebol.

Aos 19 anos começou então a jogar na equipa sénior dos Suwon Bluewings e nunca mais parou. Nem agora que a tropa o chamou, e ele foi. Com um orgulho que é evidente.

Até maio de 2023, vai continuar por aí a bater continências.