Quando Lilian Thuram estava ocupado a fazer história no França-Croácia da meia-final do Mundial 1998 e a dar toda uma nova dimensão ao conceito de herói improvável, Marcus tinha onze meses de idade. Hoje, 24 anos depois, ele prepara-se para jogar o seu primeiro Campeonato do Mundo. Marcus procura tornar-se o primeiro filho de um campeão a festejar também o título. Mas há muitos outros casos de pais e filhos que chegaram à maior competição do planeta e entre eles muitas histórias para contar.

Naquele dia 8 de julho de 1998, Davor Suker marcou logo no início da segunda parte, prolongando o sonho da Croácia na sua estreia num Mundial. Mas segundos depois aconteceu o impensável. Thuram, o lateral-direito que tinha hesitado na reação no golo croata, decidiu avançar numa saída de bola da França e, já em queda, marcou o golo do empate. Mais: aos 70 minutos, voltou a fazer de avançado e aí, como ele diz, «aconteceu algo de extraordinário» e rematou de pé esquerdo para o 2-1 final. A forma como festejou o segundo golo, de joelhos e com a expressão de quem se questiona como foi aquilo acontecer, diz tudo.

Thuram fez 142 jogos pela França e jogou em três Mundiais, de 1998 a 2006. É ainda hoje o jogador mais internacional de sempre pelos Bleus. Aqueles foram os dois únicos golos que marcou na vida com a camisola da seleção.

E onde estava Marcus naquela noite? «Acho que estava no berço, a dormir, como qualquer bebé da minha idade», disse aqui há uns anos o filho de Lilian à TF1. Só quanto tinha «oito ou nove anos» viu pela primeira vez imagens daquele primeiro Mundial que a França venceu.

Marcus nasceu em Parma, onde o pai jogava há duas épocas, depois de ter destacado no Mónaco e antes de rumar à Juventus e terminar a carreira no Barcelona, em 2008. Quando terminou a carreira, o antigo defesa de origem caribenha, natural de Guadalupe, tornou-se uma voz ativa na luta contra o racismo. Essa consciência já vinha de trás. O nome do seu filho mais velho é inspirado no ativista pan-africano Marcus Garvey.  

Agora, Marcus tornou-se o 26º jogador convocado por Didier Deschamps para o Mundial 2022, onde a França procura revalidar o título. O treinador tinha convocado apenas 25 nomes, mas acrescentou à lista o avançado de 25 anos que está a fazer uma grande temporada no Borussia Moenchengladbach, onde marcou 13 golos e fez quatro assistência em 17 jogos. É mais um avançado à disposição de Didier Deschamps, que perdeu Benzema e decidiu não substituir o atual Bola de Ouro.

Como jogador, Marcus, que joga na ala ou como segundo avançado, tem muito pouco em comum com o pai. E já construiu o seu próprio nome, ele que começou no Sochaux, jogou ainda no Guingamp, está na Bundesliga desde 2019 e representou as seleções francesas nos vários escalões, tendo sido campeão da Europa de sub-19 em 2016, ao lado de Mbappé. Não é o único Thuram a fazer carreira no futebol: o irmão mais novo, é médio, joga no Nice e aos 21 anos também já soma várias presenças nas seleções jovens francesas.

Blind, Schmeichel e Borges, só no Qatar

Marcus não é o único filho de um antigo mundialista neste Mundial. Aliás, há um pai e um filho que estarão juntos no Qatar. Os Países Baixos têm em campo Daley Blind, que já vai no segundo Mundial, depois de 2014. E que não esteve em 2018 porque a «Laranja» falhou a qualificação, quando foi liderada durante boa parte da campanha por… Danny Blind. O pai de Daley, também antigo defesa, representou os Países Baixos nos Mundiais de 1990 e 1994 e foi o selecionador responsável pelo início desse apuramento falhado, tendo sido afastado a meio do processo, em março de 2017, quando já se afigurava o falhanço que viria a confirmar-se. Hoje é adjunto de Van Gaal no Mundial 2022, faz portanto parte da equipa técnica que orienta o seu filho na competição. Até agora, Daley conseguiu melhor que o pai em Mundiais: foi terceiro, tendo marcado um dos golos da vitória sobre o Brasil no jogo de consolação.

Outro apelido que atravessa gerações e chega ao Qatar é Schmeichel. O pai, Peter, é ainda hoje o jogador mais internacional de sempre pela Dinamarca, cuja baliza defendeu em quatro Campeonatos da Europa e naquela que foi até hoje a melhor presença da seleção em Mundiais, quando atingiu os quartos de final do França 98. O filho, Kasper, prepara-se aos 36 anos para aquele que será o seu segundo e provavelmente último Mundial.  

Mas não fica por aqui. O médio Celso Borges, que aos 34 anos e com mais de 150 internacionalizações é uma referência eterna da Costa Rica, estará no Qatar no seu terceiro Mundial, ele que é filho de Alexandre Guimarães, que como jogador esteve no Itália 90 e como selecionador levou o país aos Mundiais de 2002 e 2006. E Gio Reyna, médio do Borussia Dortmund, é filho de Claudio Reyna, que esteve em quatro Mundiais com os Estados Unidos.

Quando os filhos são campeões do mundo

Há vários filhos de antigos mundialistas que foram campeões do mundo. Entre eles Youri Djorkaeff, companheiro de Lilian Thuram na seleção francesa que foi campeã do mundo em 1998 e da Europa em 2000. O antigo médio ofensivo é filho de Jean Djorkaeff, defesa com origens na Mongólia que representou a França no Mundial 1966.

Depois, há Xabi Alonso e Pepe Reina. Os dois fizeram parte da seleção espanhola que dominou o mundo na transição da primeira década do século: campeã do mundo em 2010, bicampeã da Europa em 2008 e 2012. Xabi, uma das referências dessa equipa, é filho de Miguel Ángel Alonso, conhecido como Perico, também antigo médio que jogou na Real Sociedad e no Barcelona e fez cinco jogos pela Espanha no Mundial 82. O filho jogou três Mundiais, de 2006 a 2014, entre eles todos os jogos da caminhada da Espanha até à conquista do troféu em 2010.

Pepe Reina também seguiu as pisadas do pai, o antigo guarda-redes Miguel Reina, que esteve entre os eleitos da Roja no Mundial 66, sem ter sido utilizado. Pepe, que continua a jogar aos 40 anos, no Villarreal, esteve em quatro Mundiais, de 2006 a 2018. Era o suplente de Iker Casillas, tendo jogado apenas uma partida, no Brasil 2014.

E quando jogam por seleções diferentes

Há muitas histórias nestas ligações. Até há filhos que jogaram o Mundial por uma seleção diferente do pai. Thiago Alcântara, formado no Barcelona, optou por representar Espanha e foi com a camisola da Roja que esteve no Mundial 2018. O atual jogador do Liverpool, de 31 anos, ficou fora das escolhas de Luis Enrique para o Qatar, depois de ter estado no Mundial 2018, bem como no Euro 2016 e no Euro 2020, pelo que não poderá voltar a tentar repetir o feito do pai, Mazinho, campeão do mundo com o Brasil em 1994. O outro filho de Mazinho, Rafinha, escolheu o Brasil mas tem apenas duas internacionalizações e nunca esteve numa grande competição. Curiosamente, joga atualmente, aos 29 anos, no campeonato do Qatar.

Mas o primeiro caso de pai e filho que jogaram em seleções diferentes foi muito anterior. Martí Ventolrà foi um avançado que se destacou no Barcelona e representou a Espanha no Mundial 1934, onde a Roja chegou aos quartos de final. Nacionalista catalão, republicano e de esquerda, quando começou a Guerra Civil no país aproveitou uma digressão do Barcelona ao México para se exilar e por lá ficar, impedido de voltar ao seu país quando o regime franquista se impôs. Foi lá que nasceu José Ventolrà, o seu filho, que se tornou jogador e representou o México no Mundial 1970.

Depois há os filhos que jogaram num país novo, nascidos da desagregação daquele onde cresceram os seus pais. Vladimir Weiss, que começou a carreira no Manchester City, joga atualmente no Slovan Bratislava e é filho e neto de antigos jogadores, participou naquela que foi a única presença da Eslováquia no Mundial, em 2010. O selecionador era o seu pai, também Vladimir, que como jogador tinha representado a Jugoslávia no Mundial 1990. Um caso semelhante a Ján Kozák, pai e filho: o primeiro jogou o Mundial 1982 pela Jugoslávia e foi também selecionador da Eslováquia, que levou à fase final do Euro 2016. O filho jogou o Mundial 2010.

Maldini, cinco Mundiais em campo (e mais dois no banco)

Esta história começou bem cedo, como se vê. Muito antes de Thuram ou Djorkaeff, a França teve Roger Rio, que jogou o Mundial 1934, 44 anos antes de o seu filho, Patrice Rio, jogar o Mundial 1978. No Brasil, o talento de Domingos da Guia, defesa mítico que brilhou na caminhada até ao terceiro lugar no Mundial 1938, foi secundado pelo filho, Ademir da Guia, lenda do Palmeiras que jogou o Mundial 1974.

Entre os muitos apelidos famosos que ficaram ligados em mais de uma geração ao Mundial há o caso especial dos Maldini, pai e filho que somam em conjunto cinco presenças por um tetracampeão do mundo, mas nunca festejaram o troféu. Cesare Maldini, antigo defesa, representou a Itália no Mundial 62 e foi selecionador da «Azzurra» no Mundial 98, tendo ainda liderado o Paraguai quatro anos mais tarde. Em França orientou o filho Paolo, também ele uma lenda do futebol italiano, mas que nunca conseguiu vencer um Mundial, apesar de ter participado em quatro edições, de 1990 a 2002. Paolo Maldini foi vice-campeão do mundo em 1994, na final perdida para o Brasil. Quatro anos mais tarde, quando ainda jogava no Milan mas já se tinha retirado da seleção – abandonou após o Mundial 2002, com aquele que era então um recorde de 126 internacionalizações -, a Itália foi finalmente campeã do mundo.

Três gerações diferentes de mundialistas

Também já houve mundialistas de nada menos que três gerações diferentes. Muito antes de Javier Hernández representar o México em três campeonatos do mundo, já o seu avô vestia a camisola da Tri. Tomás Balcázar era avançado e jogou o Mundial 1954. Era também sogro de Javier «Chicharo» Hernández, que jogava a médio e esteve no Mundial 86, dois anos antes de nascer o seu filho, também Javier, o mais bem sucedido dos três. Chicharito, com uma longa carreira no futebol europeu, jogou os Mundiais de 2010, 2014 e 2018, tem 12 jogos e, com quatro golos, é o maior goleador do México na competição. Aos 34 anos, joga no LA Galaxy e foi um dos melhores marcadores da MLS, com 18 golos, mas está há muito fora das contas do selecionador Gerardo Martino, por motivos que nunca foram totalmente esclarecido.

A Suécia tem outro caso singular. Roy Andersson, antigo defesa, jogou o Mundial 1978 e os seus dois filhos também chegariam ao maior palco de todos. O central Patrick Andersson somou mais de 80 internacionalizações e chegou já veterano ao Mundial 2002, onde não foi utilizado, tal como Daniel Andersson, médio e 68 vezes internacional, que esteve ainda no Mundial 2006. Nesses dois Mundiais jogou ainda Tobias Linderoth, médio que foi referência da Suécia e é filho de Anders Linderoth, ex-internacional que esteve no Mundial da Argentina, em 1978.

Muitos apelidos famosos e uma ligação portuguesa

Na lista de apelidos familiares a dobrar em Mundiais está ainda Manolo Sanchis, lenda do Real Madrid que jogou o Itália 90 e é filho do antigo defesa Manuel Sanchis, que também representou a Espanha no Mundial 66. Ou mais recentemente o agora retirado avançado Diego Forlán, que jogou três Campeonatos do Mundo pelo Uruguai (2002, 2010 e 2014), depois de o seu pai, o antigo defesa Pablo Forlán, ter representado a Celeste Olímpica nos Mundiais de 1966 e 1974. Ainda no Uruguai, Montero Castillo fez parte da equipa que chegou ao quarto lugar no Mundial 1970 e jogou ainda a competição em 1974, enquanto o seu filho, Paolo Montero, antigo central que fez uma carreira de sucesso em Itália, na Atalanta e na Juventus, esteve no Mundial 2002.

A Roménia teve Nicolae Lupescu, defesa que jogou o Mundial 1970, 20 anos antes do filho, Ioan Lupescu, jogar no Itália 90. Na Bélgica, o avançado Gert Verheyen jogou os Mundiais de 1998 e 2002, tendo ganho maior notoriedade que o pai, Jan Verheyen, que esteve no Mundial 70, sem ter sido utilizado. E na Coreia do Sul há um nome de lenda que também teve sucessor. Cha Bum-Kum, um dos melhores jogadores asiáticos de sempre que se fez grande no futebol alemão, jogou o México 86 e foi treinador da seleção em França, em 1998. O seu filho Cha Du-ri, que nasceu na Alemanha, representou a seleção no Mundial 2002, quando a Coreia, a jogar em casa, chegou às meias-finais. Quem nunca conseguiu chegar a um Mundial, mas tem dois filhos como referências da seleção foi Abedi Pelé, um dos melhores jogadores africanos de sempre. Se no seu tempo o Gana nunca conseguiu qualificar-se para o Mundial, vê agora Andre Ayew preparar-se para jogar o terceiro Campeonato do Mundo, enquanto Jordan Ayew estará pela segunda vez na competição no Qatar. E ainda há o irmão mais velho, Ibrahim, que esteve no Mundial 2010, sem ter sido utilizado.

Não há portugueses nesta lista. Há vários casos de pais e filhos que representaram a seleção nacional, mas nenhum em que ambos tenham estado em Campeonatos do Mundo. Por pouco. Em 1986, António Veloso, que já tinha estado no Euro 84, não foi ao Mundial por causa de um controlo anti-doping positivo. A contra-análise deu negativo, mas não deu para apanhar o avião para o México. O seu filho, o médio Miguel Veloso, representou Portugal em dois Mundiais, 2010 e 2014.

Mas há uma ligação a Portugal nesta história. Na Polónia, Wlodzimierz Smolarek foi figura da caminhada até ao terceiro lugar no Mundial 82 e jogaria ainda no México, quatro anos mais tarde. Quando em 1981 nasceu o seu filho, deu-lhe o nome de um ídolo que crescera a admirar: Eusébio da Silva Ferreira. Euzebiusz Smolarek, o futuro avançado que recebeu o nome da lenda portuguesa, foi 47 vezes internacional e esteve no Mundial 2006. Em outubro desse ano, marcou dois golos a Portugal, numa vitória da Polónia por 2-1 na corrida ao Euro 2008.

Artigo atualizado