Chegou à Serie A aos 55 anos e à Liga dos Campeões 25 anos depois de começar a treinar. Quando se sentar no banco do San Paolo para a receção do Nápoles ao Benfica desta quarta-feira será apenas o segundo jogo da sua carreira no grande palco europeu. Mas Maurizio Sarri, o homem que se diz feliz porque lhe pagam por algo que faria de borla, está preparado como poucos. «Podem ter a certeza que de qualquer jogador do Benfica ele sabe os pontos fortes e fracos.»

O aviso é de Mário Rui, português da Roma que trabalhou ao longo de duas épocas com Sarri no Empoli. «É um mestre do futebol, um professor», resume ao Maisfutebol o defesa, que não precisa de ir longe para dar uma medida do trabalho de Sarri.  «Todo o trabalho que fez comigo, a transformação que tive com ele, é o melhor exemplo. Eu sempre fui um lateral-esquerdo, tornou-me num defesa. Eu era um lateral-esquerdo que privilegiava mais a fase ofensiva. Quando tive oportunidade de trabalhar com ele, tornei-me um defesa completo, continuei a ter o mesmo rendimento na fase ofensiva mas consigo complementá-lo com o trabalho defensivo», diz, para acrescentar que deve a Sarri ter dado o salto para a Roma: «Se estou onde estou é devido ao trabalho que fez comigo.»

Sarri tem um percurso fora do comum e é uma personagem diferente. Trabalhou num banco, só aos 40 anos se dedicou em exclusivo ao futebol. Obcecado com o jogo, trabalha cada detalhe. «Se calhar em 24 horas ele passa 17 a pensar em futebol.» Bem vindo ao mundo maravilhoso do treinador do momento em Itália.

Sarri nasceu em Nápoles, mas mudou-se cedo com a família para a região de Florença, onde construiu a vida a e a carreira. O futebol era uma paixão e, sem talento como jogador e com vocação para estudar o jogo, cedo se dedicou ao treino. Nos tempos livres, porque a sua profissão era outra, bem diferente. Trabalhava num banco, o Monte dei Paschi, lidava com transações internacionais, uma experiência que o levou a viajar por vários países da Europa.  

Nunca quis desligar-se do futebol, por isso ao fim do dia vestia o fato de treino. Stia, Faellese, Cavriglia, Antella, Valdema, a rota dos clubes que treinou naquele tempo, sempre nos escalões regionais do futebol italiano. Até que, no final da década de 90, decidiu que queria mesmo era viver para o futebol. Debateu o assunto com a família, deixou o banco onde trabalhava e assumiu o risco. «Ele falava muito nisso. Dizia que que era a profissão que tinha e pronto, mas que o que gostava mesmo era futebol.»

Sarri diz que essa experiência no mundo das finanças lhe foi útil para o futebol. «Foi uma mais-valia. Aprendi o valor da organização e da capacidade de decisão», disse um dia numa entrevista ao «La Repubblica».

O primeiro clube em que pegou a tempo inteiro foi o Sansovino. Já então se distinguia pelo método e pela forma exaustiva como preparava treinos e jogos. Vem desses tempos uma alcunha que se lhe colocou até hoje. «Mister 33», uma alusão ao número de esquemas diferentes que preparava para cada lance de bola parada. Não serão assim tantos, mas são muitos. Mário Rui: «Foram muitos esquemas de bola parada, ainda hoje nao me consigo lembrar de todos. Eram muitos, surpreendíamos qualquer equipa com esses esquemas.»

Muito trabalho nos movimentos «bonitos de se ver»

Ao fim da primeira temporada no Sansovino, Sarri subiu à Serie D. Seguiram-se duas épocas no San Giovanese, já na Série C e, em 2005/06, a chegada à Serie B, com o Pescara. Já se distinguia pelo trabalho metódico, recorrendo muito ao computador, onde tem bases de dados com todo o tipo de informação sobre os jogadores que lhe interessam, os seus e não só. Até hoje. «Da Serie A à terceira divisão, ele consegue descrever qualquer jogador. Sabe quem são todas as equipas e todos os jogadores», diz Mário Rui.

A travessia de Sarri continuou por vários clubes, oscilando entre o segundo e o terceiro escalões do futebol italiano. Em 2012/13 chegou ao Empoli, na Serie B. Na primeira temporada foi ao play-off de acesso à subida, não conseguiu, na segunda deu finalmente o salto: estava na Serie A. Nessa altura já o mundo do futebol italiano olhava com admiração para ele e para o seu Empoli.

Os analistas maravilharam-se com pormenores do trabalho de Sarri. A forma como planeava as movimentações defensivas e o resultado harmonioso que se via em campo.

«É muito engraçado porque às vezes em casa punha-me a ver o jogo, os movimentos que nós fazíamos», recorda Mário Rui: «Era uma coisa bonita de se ver, muito bem trabalhada, conseguir fazer aquilo daquela maneira era fantástico.»

Outra marca distintiva do Empoli de Sarri era o comportamento da equipa nas bolas paradas. «Distinguimo-nos mesmo a nível internacional. Ele estudava também as equipas dos outros campeonatos. Naquela época o Empoli e o At. Madrid eram as equipas que mais marcavam de bola parada.»

Os drones e as superstições

E depois havia os treinos filmados por drones, para conseguir uma visão global de exercícios e movimentações. Já no Empoli, naquele tempo e àquele nível era novidade. «Ainda hoje é como se sentisse os drones por cima da cabeça», ri-se Mário Rui. «Era estranho porque era uma coisa nova, ao início. Filmava e depois chamava-nos, para vermos o que tinhamos de melhorar.»

Sarri distinguia-se também por uma atitude diferente. Na primeira época da Serie A, respondeu assim um dia, quando o confrontaram com o facto de ser o treinador mais mal pago do campeonato italiano: «Sou filho de operários. O que ganho chega e sobra. Pagam-me para fazer algo que faria à noite, depois do trabalho e de borla. Sou um felizardo.»

Além disso, é muito supersticioso. Durante muitos anos vestiu-se sempre de preto no banco, para dar sorte. E no Pescara chegou a pedir aos jogadores para pintarem as chuteiras de preto. Mário Rui ri-se quando aborda o tema. «Tem superstições e não são poucas. São muitas coisas, infinitas», diz, procurando recordar algumas: «Num período no Empoli em que as coisas não corriam bem, num treino em que estava muito calor ele levou um corta-vento vestido. Como as coisas começaram a melhorar, nunca mais o tirou.» E outra: «Nos treinos antes dos jogos, a certa altura decidiu que faziamos sempre os meinhos num ponto preciso do relvado, porque dava sorte.»

Também consegue ser politicamente incorreto. Antes de mais fuma, muito. E na época passada envolveu-se numa polémica delicada com Mancini, quando o treinador do Inter o acusou de lhe ter dirigido insultos homofóbicos. Sarri teve de se retratar.

Até já convenceu Maradona

Bastou uma época na Serie A, onde foi 15º com o Empoli, para Sarri despertar a atenção de clubes com mais ambição em Itália. Milan, Sampdoria, e no fim das contas Nápoles. Rafa Benitez saiu para o Real Madrid e o clube escolheu para seu sucessor o homem discreto do Empoli.

Demasiado discreto para muitos, incluindo Diego Maradona. «Respeito o Sarri, mas não é o técnico certo para um Nápoles vencedor. Para ele, estar no banco já é uma enorme prenda», disse «El Pibe» em setembro de 2015, depois de um arranque tremido do Nápoles com Sarri.

Sarri respondeu com humildade. «O que posso dizer sobre Maradona é que ele é uma lenda. Só espero fazê-lo mudar de ideia», disse. O peso de pegar no clube contra a vontade do ídolo eterno de Nápoles era enorme, mas Sarri esteve à altura. E passaram apenas dois meses até Maradona dar o braço a torcer. «Enganei-me sobre o Sarri, peço desculpa», dizia El Pibe em novembro.

Não começou bem no Nápoles, mas melhorou rapidamente. No final da época foi segundo na Serie A e regressou à Liga dos Campeões. «Uma das coisas em que ele esteve bem foi em perceber que os jogadores do Nápoles não eram iguais aos do Empoli. Nós jogávamos num 4x4x2 losango. Ele jogou assim no Nápoles nos primeiros três jogos, não correu bem e mudou», observa Mário Rui: «Mantendo os mesmos princípios em que insistia connosco, jogar a dois toques no máximo, mover a bola rapidamente, verticalizar o mais rápido possível a ação, saltar um setor, o que causa muitas dificuldades à equipa adversaria.»

No defeso o Nápoles perdeu Gonzalo Higuain para a Juventus, mas até ver não vacilou. Segundo na Serie A a um ponto da Juventus, entrou na Liga dos Campeões a vencer em Kiev.  Não perde há 10 jogos, com Sarri ainda não sofreu uma derrota em casa para a Serie A e vai numa série de nove vitórias consecutivas no San Paolo.

O que pode esperar o Benfica

«O Nápoles teve um grande crescimento, em futebol jogado é uma das grandes equipas de Itália. Se não me engano a quipa ainda está a fazer mais golos, apesar de não ter o Higuaín», nota Mário Rui, comentando também a forma como o avançado polaco Milik, contratado ao Ajax, tem estado à altura do desafio:  «Está a adaptar-se bem, ainda para mais vem de um campeonato muito diferente.»

Agora, segue-se o Benfica. Um confronto que se adivinha difícil para os «encarnados», que voltam ao San Paolo pela primeira vez desde a época 2008/09, então para a Taça UEFA. Uma eliminatória que levaram a melhor, mas depois de perderem 3-2 em casa dos italianos.

«O que o Benfica pode esperar é uma equipa super organizada e saber que foi de certeza muito estudada pelo treinador. Uma equipa que vai tentar ter muito a bola e vai criar dificuldades ao Benfica», antecipa Mário Rui, que no entanto não dá favoritismo óbvio ao Nápoles. «Não sei se diria que são favoritos. O Benfica também lhes pode criar dificuldades.»

O ambiente no San Paolo, esse, será intenso, mas Mário Rui lembra que para os jogadores do Benfica não é novidade. «O estádio é tipo o estádio da Luz, um bocado mais antigo, com as bancadas ligeiramente mais afastadas. Um ambiente que não será novo, o Benfica também tem sempre calor quando joga.»

No balneário e na festa com Totti, «à frente do Papa»

Mário Rui analisa de fora, por estes dias. Contratado no defeso pela Roma, primeiro por empréstimo antes de uma opção de compra obrigatória, contraiu num treino, em final de julho, uma lesão grave no ligamento cruzado anterior do joelho esquerdo. Agora segue a recuperação e os sinais são positivos:  «O joelho está a reagir muito bem. Apesar do azar, tive alguma sorte por estar a correr tão bem. O prazo nestes casos é de quatro a seis meses, mas depende sempre de cada atleta. O joelho está a reagir bem, não incha, reage bem nos treinos.»

O português partilha balneário com Francesco Totti. Que vive um momento especial. O «Imperador» cumpre 40 anos nesta terça-feira e começou a celebrá-los no domingo, marcando o seu golo 250 na Serie A, homenageado no estádio, apesar da derrota frente ao Chievo.

Como é conviver com um mito como o avançado italiano? «O Totti no balneário é muito fácil. Como eles dizem em Itália, é um campeão. Um jogador de classe mundial», diz Mário Rui. «É muito fácil falar dele, tem uma humildade e uma tranquilidade fora do normal.»

Não tem sido pacífica a gestão de Totti feita pelo treinador Luciano Spalletti, a polémica já vem desde a época passada e voltou a ser alimentada agora pela mulher do jogador, Ilary Blasi, que chamou a Spalletti «um homem pequeno».

«Não é fácil gerir. O Totti é o Totti. É o rei de Roma. Não quero ofender ninguém mais religioso, mas em Roma se calhar até está à frente do Papa», diz o defesa português, garantindo no entanto que o relacionamento entre treinador e avançado não é tão frio como se diz: «A ideia que passa para fora não é a realidade. São duas pessoas que dialogam e apenas defendem a Roma.»

Seja como for, por agora é altura de celebrar para Totti. E a festa vai ser de arromba, na noite desta terça-feira. «Organizámos uma coisa, um presente especial para ele. E ele vai ter uma festa onde vai estar Roma em peso.»