Em pouco mais de três anos Nélson Semedo foi do Sintrense à Seleção Nacional, o que veste toda esta história de contornos sedutores. Há contos de fadas que demoram mais tempo: calcula-se, por exemplo, que o príncipe tenha precisado de mais do que isso para colocar o sapato de cristal no pé da gata borralheira.
 
Por isso é que a história de Nélson Semedo acaba por ser uma novela especial.
 
Nascido em Lisboa e criado no bairro de Mira-Sintra, no Cacém, jogava futebol apenas na rua, com os amigos, quando um dia decidiu que queria mais. Por isso foi bater às portas do Sintrense, levado precisamente por um desses amigos do bairro.
 
Tinha 16 anos, era juvenil de último ano e toda a gente o conhecia por Nelsinho: na família, entre os amigos, era só o Nelsinho. Um rapaz tímido e introvertido. Tão tímido e tão introvertido que até parecia mentira. As pessoas, pelo menos, desconfiavam.
 
Filipe Pedro, por exemplo.
 
«Eu era treinador dos juniores do Sintrense e estava sozinho, nem tinha adjuntos. Em duas semanas tive de construir um plantel. Chamei então os jogadores juvenis do ano anterior e fiz uma reunião individual com cada um deles para decidir quem ficava.»


 
«A verdade é que o facto de o Nelsinho ser tão tímido me deixou com dúvidas. Eu sabia que ele tinha qualidades, mas era demasiado pacato. Curiosamente ele também não estava à espera de continuar no clube... Mas no fim decidi que acabaria por ficar com aquele miúdo.»
 
Começou a época no banco, saltou para a titularidade à quarta jornada e nunca mais parou. «Teve uma evolução tremenda. Foi claramente o melhor jogador da equipa.»
 
Filipe Pedro, que agora é adjunto do Estoril, trabalhou vários anos na formação do Sporting e por isso tinha bons conhecimentos no clube leonino. À boleia desses conhecimentos, levou Nélson Semedo a treinar em Alcochete no final da temporada.
 
«Estava a ver o treino e a verdade é que os responsáveis, particularmente o Jean Paul e o treinador Telmo Costa, ficaram muito bem impressionados com ele.»
 
A temporada terminou, Telmo Costa foi substituído por Sá Pinto, veio uma nova época e um telefonema. Queriam que voltasse a Alcochete. Nélson Semedo ficou uma semana na Academia, mas ao terceiro dia já havia veredicto: Sá Pinto disse que era para contratar.
 
O Sporting, no entanto, torceu o nariz à compensação pedida pelo Sintrense, prometeu avançar sem nunca o fazer, o tempo foi passando e o negócio não se concretizava.


 
Nelsinho voltou aos juniores do Sintrense, mas por pouco tempo. Nessa altura já estava referenciado por Pedro Torrão, empresário da Eurofoot BV. O futuro sorria, portanto.
 
«Era júnior e jogava nos seniores. O Luís Loureiro era o treinador dele e falava-nos que tinha lá um miúdo que valia a pena trabalhar, que tínhamos de o ir ver, enfim. Fomos então ver um treino dele e a verdade é que fez um trabalho extraordinário.»
 
Pedro Torrão não perdeu tempo.
 
«Fomos a casa dos pais, onde ainda vive, em Mira-Sintra. Jantámos, conversámos e assinámos contrato. Era um miúdo muito calado, mas trabalhador», conta o empresário.
 
«Vivia num apartamento com os pais, a irmã e um sobrinho. Era uma família humilde, mas unida e com um bom ambiente. Notava-se que havia uma harmonia muito grande entre ele, os pais, a irmã e o sobrinho. Uma vontade muito grande de melhorar a vida.»
 
Não demorou muito tempo. Luís Loureiro tinha-o chamado a fazer a pré-época com a equipa sénior, agradou e nunca mais saiu. A partir daí Pedro Torrão mexeu os cordelinhos: foi falar com o Benfica e convidou os responsáveis a ver o miúdo.
 
O Benfica enviou então Abel Silva para observar um jogo do Sintrense. O observador, curiosamente um antigo lateral, gostou do que viu e avisou Jorge Jesus, que pediu a dois homens de confiança - Raúl José e Miguel Quaresma - uma nova observação. O relatório dos adjuntos foi novamente muito favorável.

Jorge Jesus deu então luz verde e SAD encarnada respondeu com os argumentos que faltaram ao Sporting: rapidez. Era janeiro e avançou de imediato para a contratação do jovem de 18 anos, num contrato com efeitos a partir da época seguinte.
 
Até final da temporada, Nélson Semedo ficou no Sintrense, e na III Divisão, na época seguinte mudou-se então para o Seixal. Mas não se mudou sozinho: levou com ele Manuel Liz, um avançado que partilhava com ele balneário e que era ligeiramente mais velho.


 
«O Abel Silva foi ver o Nelsinho, mas eu fiz um grande jogo e contrataram-me também. Assinámos os dois, no mesmo dia, e fomos apresentados juntos», refere Manuel Liz.
 
A partir daí tornaram-se os melhores amigos. Andavam sempre juntos, aliás.
 
«Eu sou da Ericeira, ele de Mira-Sintra, por isso como já conduzia e tinha carro, passava todos os dias por casa dele para o levar para o Seixal e deixava-o no bairro no regresso.»
 
Por essa altura Luís Loureiro deixa o Sintrense, muda-se para o Fátima e pede ao Benfica o empréstimo dos dois jogadores: Nelsinho e Manuel Liz. A SAD encarnada responde que sim, que empresta os dois atletas, até porque na II Divisão B poderiam jogar mais.
 
«Era um rapaz diferente do comum. Muito introvertido fora de campo, mas totalmente diferente no relvado», conta Luís Loureiro. «Com a bola nos pés estava no território dele e não tinha medo de nada. Por isso fez uma excelente temporada no Fátima.»
 
Manuel Liz lembra-se de outras coisas.
 
«Partilhávamos o quarto em Fátima e ficávamos muito tempo juntos. Víamos televisão, jogávamos ténis de mesa e o FIFA na Playstation. Geralmente eu ficava com o Real Madrid e ele com o Barcelona, mas quando jogávamos com equipas portuguesas ele queria ser sempre o Benfica. Não era nenhum craque, mas pronto. Pior era no ténis de mesa: aí era péssimo. Depois foi melhorando, mas no início era muito mau mesmo», sorri Manuel Liz.
 
«Lembro-me que quando vínhamos a Lisboa nos organizávamos para voltar juntos num carro. Quando o Nelsinho tirou a carta e comprou carro, também quis entrar no nosso esquema. Mas conduzia muito mal, sempre a sair da estrada, a ir para a berma, enfim, um desastre.»


 
O amigo não se esquece, de resto, do dia em que Nélson Semedo ia a conduzir o Seat Ibiza acabado de comprar, e que ainda hoje mantém, e alguém lhe disse que se pusesse o carro em ponto morto nas descidas gastava menos gasolina.
 
«Às tantas ouvimos uma aceleração brutal. Vruuuuuuuuuuuu. Todos olhámos para trás a pensar que vinha um Ferrari ou um R8 a passar. Mas não, não vinha nada. Ficámos sem perceber o que se passava. Até que um de nós repara que era o Nelsinho que ia a acelerar como um louco com o carro em ponto morto. Nelsinho, o que vais a fazer pá? Como lhe tínhamos dito que em ponto morto gastava menos, ele acelerava sem meter mudanças. Gargalhada geral, claro.»
 
Pedro Torrão lembra-se bem do Seat Ibiza de Nelson Semedo: já não representa o jovem, mas lembra-se do carro, até porque foi ele que o ajudou a comprar.
 
«Quando foi para o Benfica não percebia nada de contas, bancos, nunca tinha tido muito dinheiro. Por isso era tudo uma novidade e eu ajudava-o», conta o empresário.
 
«Um dia diz que quer comprar um carro e eu fui tratar do crédito para obter um empréstimo. Ligo-lhe para lhe perguntar quem é o gestor da conta e responde-me ele: O gestor?  Sou eu. Na minha conta eu é que mando


 
Torrão lembra-se porém de outro episódio que o marcou.
 
«No dia em que assinou pelo Benfica, estava a falar com o presidente Luís Filipe Vieira e ele disse-me que havia qualquer coisa de especial naquele miúdo. Um ano depois, estava em cima da mesa a possibilidade de ele ser novamente emprestado, fomos à Luz falar com o presidente e ele diz-nos que não, que o Nélson Semedo é para ficar», refere.
 
«Impôs-se porque gostava dele e obrigou as pessoas a ficarem com ele.»
 
Foi uma decisão que mudou para sempre a carreira de Nelson Semedo. No Benfica, sob orientação de Hélder Cristóvão, foi adaptado a lateral direito e arrancou para um ciclo admirável. Curiosamente foi outra vez Jorge Jesus a ter um papel fundamental, sugerindo a adaptação por ver né Nelsinho coisas de Miguel: outra adaptação à lateral feita na Luz.

Na primeira época até jogou pouco, mas com a saída de Cancelo impôs-se.
 
«Comigo o Nelsinho foi sempre médio centro. Era a posição dele desde que chegara ao Sintrense», refere Luís Loureiro. «Mas ele tem características que lhe permitem adaptar-se a outras posições com grande sucesso. Tem uma qualidade técnica muito maturada.»

Foi tudo muito rápido, portanto. Começou a jogar com 16 anos, transferiu-se para o Benfica aos 18 e chegou à equipa principal aos 21 anos.
 
Esta segunda-feira abriu um novo capítulo: cruzou as portas da seleção nacional. Para quem há pouco mais de três anos estava no modesto Sintrense, e numa terceira divisão, não pode deixar de ser admirável. Há contos de fadas que demoram mais tempo a juntar o príncipe e a gata borralheira.