A situação em Kiev está explosiva. De um lado a lei e ordem do Governo, do outro os manifestantes insatisfeitos com o estado do país. A Praça da Independência transformou-se em zona de batalha, dezenas de pessoas morreram e o mundo seguiu os acontecimentos com a mesma atenção que prestou à revolta da Praça Tahrir, no Cairo.

O povo está cansado de tanta corrupção, ouve-se repetidamente. E muitos pedem para que a aproximação à União Europeia seja uma realidade, permitindo que o país se liberte finalmente do espartilho russo, sempre presente enquanto o gaz natural vier daquelas paragens.

A revolta para já está centrada na capital, mas existe o receito que alastre rapidamente a outras cidades, nomeadamente na zona ocidental. Também o futebol foi afetado, com a UEFA a reconhecer que não havia condições para realizar do Dinamo Kiev-Valência desta quinta-feira, a contar para a Liga Europa. O jogo estava marcado para o Estádio Olímpico, mas acabaria por ser transferido já esta quarta-feira para Nicósia, no Chipre.

Como é possível conferir neste mapa
(passe com o rato por cima da imagem para saber mais informações sobre os locais-chave), a proximidade dos confrontos e a instabilidade geral vivida na cidade impediu que se realizasse um evento que naturalmente iria concentrar muitos milhares de pessoas. Uma situação potencialmente explosiva.



«Imperou o bom senso», como reconheceu o presidente do Valência, que conversou por telefone com o presidente da Ucrância, Víktor Yanukóvich. «Disse-me que não podia haver futebol em Kiev e que informasse a UEFA», explicou Amadeo Salvo aos jornalistas.

O Dinamo Kiev, por outro lado, tentou até à última hora que o jogo se realizasse no Olímpico pois já tinha vendido 30 mil bilhetes. Os dirigentes do clube estão vinculados às reivindicações dos grupos pro-europeístas e nunca quiseram reconhecer que o jogo podia ser adiado, preferindo aguardar pelas comunicações oficiais da UEFA e da federação ucraniana.


Mesmo que seja muito inconveniente mudar o local de um jogo na véspera torna-se demasiado evidente que não havia condições para realizar o Dinamo-Valência em Kiev. Embora o jogo fosse no Olímpico, um estádio um pouco mais afastado do epicentro do conflito, as imagens não mentem. Veja-se como estava a rua Grushevskogo, junto à entrada para o estádio Lobanovsky, casa do clube da capital.

O cenário de guerra, com trincheiras no meio das ruas, prova que a situação no país é insuportável. No Dinamo Kiev joga Miguel Veloso, mas no clube todos mantêm o silêncio, pelo que não foi possível falar com o português.

Esta quinta-feira vai realizar-se na Ucrânia um outro jogo da Liga Europa, mas em  Dnipropetrovsk, a quarta maior cidade, que dista algumas centenas de quilómetros da capital. O Dnipro-Tottenham terá Bruno Gama em campo e os adeptos já foram aconselhados a ter cuidados especiais. 

Muitas das equipas ucranianas estão em estágio na Turquia, aproveitando a paragem de inverno, e só regressam na próxima semana para reiniciarem o campeonato. É aí que poderá surgir mais um problema, uma vez que logo no dia 2 de março há um sempre explosivo Dinamo Kiev-Shaktar Donetsk. A equipa B, orientada pelo português Miguel Cardoso (ex-adjunto de Domingos Paciência), também tinha jogo agendado para esse dia em Kiev e para o estádio Lobanovski, mas já existiram contactos para que fosse transferido para a academia do Dinamo, que fica fora da cidade.

No Shaktar todos são aconselhados a manter silêncio sobre a situação, até porque o presidente Rinat Akhmetov é amigo próximo de Yanukóvich e não convém estragar as relações, sempre altamente lucrativas.

Situação diferente vive Nuno Pinto, jogador do SC Tavriya, que também está a cumprir estágio na Turquia, mas tem razões para estar mais tranquilo, uma vez que a cidade onde trabalha é Simferopol, capital da Crimeia, bem no sul do país, em pleno Mar Negro. Os milhares de quilómetros de distância conferem-lhe alguma tranquilidade. «Tenho falado com alguns ucranianos e eles dizem que a situação no país está horrível e parece uma guerra autêntica, mas que é só mesmo no centro de Kiev e que não vai passar para mais nenhuma cidade», contou ao Maisfutebol. Os treinos não têm sido afetados, mas o regresso à Ucrânia está agendado para esta quinta-feira e só no terreno será possível perceber qual a situação real.

Igualmente na Turquia está Serginho, jogador do Metalurh de Zaporizhya, que só regressa à Ucrânia na próxima semana. O contacto com os seus colegas tem-lhe permitido sentir a situação. «As pessoas estão cheias de medo, principalmente em Kiev, mas na equipa não estão muito preocupados, porque muitos também querem que as coisas mudem», contou, explicando que a ideia que passa é que «o povo está a ganhar força e o governo sabe que está a perder o terreno, passando a usar a força».

Todos os portugueses com quem conseguimos falar, em on ou em off, transmitiram a mesma ideia: a corrupção na Ucrânia é assustadora e existe uma sensação de impunidade por parte dos políticos e alguns empresários que leva o povo a reagir. O país não tem infrastruturas suficientes, nomeadamente fora das grandes cidades, o sistema de saúde não funciona e a população é geralmente muito pobre, enquanto florescem alguns multimilionários. A corrupção está tão entranhada que apesar da batalha de Kiev a capital continua a funcionar, porque é preciso que tudo continue a seguir as lógicas instituídas. Até que tudo exploda.