Esta é uma viagem no tempo. Para amortecer o choque, que tal entrar no espírito com este clássico?



Aterrámos em 2060, nesta galáxia. Não, não está a ver a dobrar. Neste jogo de futebol os jogadores são quase todos iguais. E tão certinhos. Passes na medida exata, entradas no tempo perfeito para o corte, livres milimétricos ao ângulo. Muitos deles não são pessoas, são andróides. Só que não é fácil distingui-los. Mas calma, ainda há gente de carne e osso a jogar. E mais: qualquer um de nós também pode ser um deles. Bem, talvez não qualquer um, alguns de nós por essa altura já nem por cá estarão. Mas não vamos deixar que uns detalhes estraguem o enredo. Neste tempo de que falamos, um adepto pode escolher o seu craque favorito, vestir a pele dele e jogar como ele. Bem vindo ao futuro.

Pode ser mesmo mais ou menos assim daqui por 45 anos, imagina Ian Pearson, engenheiro e futurólogo que previu tudo isto e muito mais no estudo «O futuro do futebol», feito para a empresa de telemóveis HTC e que pretende projetar como será a experiência de ver e jogar futebol nos próximos cinco a 50 anos.

Ele viu o futuro do futebol, escreveu sobre a sua visão e falou ao Maisfutebol sobre o que nos espera. Sobre o que já está a acontecer, o que pode vir a acontecer e o que queremos, ou não, que aconteça. Aperte o cinto, a partir daqui é  outra dimensão.

Para introduzir a conversa, um resumo da linha do tempo da evolução do futebol:

2020 Lentes de contacto ativas, com circuitos incorporados que permitem visualizar uma série de informações
2020 Câmaras embebidas no equipamento dos jogadores
2025 Ferramentas melhoradas de realidade aumentada para os árbitros
2030 Pequenas câmaras com dimensão de insectos que seguem os jogadores
2035 Sensores na pele permitem monitorizar dados vitais dos jogadores
2035 Dados fisiológicos dos jogadores transmitidos em tempo real ao treinador
2040 Os robôs tornam-se comuns no futebol
2040 Adeptos têm acesso em tempo real a dados fisiológicos dos jogadores
2040 Jogadores poderão usar em campo lentes de contacto ativas e ligações audio aos treinadores
2045 Adeptos poderão ver simulações em 3D ultra-reais
2050 Simulação sensorial apurada permite aos adeptos sentir como se estivessem a jogar
2055 Campeonatos virtuais com jogadores online a competir em jogos «reais»
2060 Equipas de andróides comuns, com campeonatos próprios
2060 Adeptos podem controlar diretamente andróides em campo

Antes de continuarmos, Ian Pearson responde à pergunta que o leitor estará a fazer. Não, isto não é tudo ficção científica, ou resultado de um delírio febril.

«Sou especialista, trabalho há 30 anos em investigação, tenho noção da velocidade a que a tecnologia evolui.» É por aqui que começa a conversa com Pearson, que trabalhou durante muitos anos na British Telecom como investigador (ou futurologista, na sua definição) e tem agora a sua própria empresa, a Futurizon, consultora de tecnologia e estratégias de futuro. «Estimo quando as coisas podem acontecer», explica, acrescentando que alguma da tecnologia de que fala já existe, em algum ponto de desenvolvimento.



Mais. Pearson garante que, em muitos casos, as soluções tecnológicas de que fala existirão antes do tempo que prevê no estudo, mas ele definiu um horizonte temporal maior para que o futebol as adote: «Em algo tão importante como o futebol, também tenho que dar tempo ao jogo para absorver as evoluções tecnológicas. Tem que ser analisado pelos organismos que tutelam o desporto. Toda essa negociação pode levar anos.»

Ver o que não está lá

Vamos então ao futuro. As lentes de contacto ativas, por exemplo, um dos principais conceitos do exercício de Pearson. Estamos a falar de dispositivos oculares que nos permitem ver coisas que na realidade não estão à frente dos nossos olhos. «Como vemos nos filmes de ficção científica, ou de investigação policial, em que eles movimentam janelas no ar», explica Pearson. Estamos lá perto, acrescenta: «Já existem protótipos de lentes de contacto ativas, companhias como a Google já trabalham com isto. Podemos esperar tê-las no mercado nos próximos cinco ou dez anos.»

Isto pode permitir várias coisas, dentro do princípio da realidade aumentada. Para os adeptos, ver imediatamente informação adicional sobre o jogador. «Um visor HUD ou lentes de contacto permitem disponibilizar uma série de dados interessantes sobre o campo quando se assiste a um jogo. Cada jogador pode ter uma bolha de dados sobre si próprio», diz o estudo: «Esta será uma experiência quotidiana em 25 anos, mas em 50 anos vai estender-se a um dispositivo sensorial de pele apurado, que permite experimentar sensações virtuais remotamente.»

Aos jogadores, as lentes de contacto ativas podem dar informação útil em tempo real. O exemplo de Ian Pearson: «Quando o jogador pontapeia a bola, pode ter à disposição um gráfico que mostra em que direção deve ir a bola.»

E aos árbitros, permitem ver tudo, de vários ângulos. Citando de novo o estudo: «Os árbitros podem ver a ação de qualquer ângulo e fazer zoom à sua vontade. (…) Também seriam mostradas em tempo real imagens 3D de grande qualidade, combinando inputs de várias câmaras e de outros sensores, para garantir uma visão 3D de grande qualidade de todo o campo.»

Tudo isto pressupõe, estima ainda Ian Pearson, que a capacidade de captação de imagens do jogo venha a ter uma multiplicidade de opções adicionais. Câmaras minúsculas retráteis no relvado, câmaras do tamanho (e eventualmente também aparência) de insectos a seguir cada movimento, e câmaras embebidas no equipamento dos jogadores. Uma série de novas experiências para os adeptos, que vão até à visualização do jogo numa representação a três dimensões muito próxima da realidade.



O outro conceito-chave na teoria de Ian Pearson é o de «active skin». Fala de uma camada de estimuladores sensoriais no corpo, que permitirão monitorizar e, no limite, controlar sensações e movimentos. «Inventei o conceito em 2001, hoje em dia já começar a acontecer. As pessoas já podem usar membranas muito finas aplicadas na pele para monitorizar variações do organismo, por motivos de saúde. Está apenas a acontecer em formas muito simples, mas vai evoluir.»

A eletrónica direta ao corpo

Falamos de algo que pretende poder fazer coisas como melhorar a técnica de um jogador, induzindo-lhe uma sensação positiva se estiver a fazer o movimento correto, e negativa se estiver a executar mal um exercício.

«A eletrónica direta ao corpo», diz ele: «Podemos monitorizar através da pele sinais elétricos dos nervos, sensações, como parte do processo de treino. Agora os treinadores usam vídeos para dizer aos jogadores o que querem. Mas se tiverem um input direto no nervo, que passe uma sensação de conforto quando o corpo faz o movimento correto e de desconforto quando não o faz, poderão fazê-lo diretamente.»

Usos mais diretos: monitorizar em tempo real os sinais vitais, logo a saúde do jogador. E passar também informação concreta ao treinador: se aquele jogador está muito cansado e precisa de ser substituído, por exemplo.

Estamos a falar de sensações, não de emoções. Aí a intervenção é mais complicada. Pearson: «Pode-se ver sensações, emoções são mais difíceis. Sensação é um sinal no nervo. Emoção é mais química, é mais difícil. Interagir com o cérebro é mais difícil. Mas pode vir a acontecer.»

E é aqui, estendendo o conceito de active skin, que entra a ideia de que qualquer pessoa pode vir a vestir a pele do Messi ou do Cristiano Ronaldo desse tempo: «Quando se conseguem gravar as sensações, podemos «copiar» esse jogador e um adepto, se usar a active skin, pode sentir que é aquele jogador.»

Para quê?

E depois há o Santo Graal da futurologia: robôs, andróides, máquinas parecidas connosco. Mais uma vez, já há caminho percorrido nesse sentido, diz Pearson, mas ainda muito a percorrer: «Agora ainda não se pode fazer um andróide inteiro. Há alguns problemas de engenharia a resolver. Mas não tenho dúvidas de que lá chegaremos, de que num futuro próximo teremos robôs a andar entre nós, tão parecidos com os humanos como quisermos.»

E aí abre-se a porta para aquele cenário que leu no início do texto. Andróides em campo, andróides teleguiados por adeptos, campeonatos de andróides. «Podemos fazer mesmo um andróide que replica como se comportam os jogadores», diz Pearson: «É possível fazer andróides cinco ou dez vezes mais fortes que os humanos. Usarão músculos muito similares, mas muito fortes, de gel polímero.»

É neste ponto que Pearson introduz um ponto de interrogação. «Mas pode ser caro, e podemos perguntar-nos, para quê?»

Podemos. E aqui, se até agora as dúvidas estavam apenas no campo das possibilidades tecnológicas, abrimos a janela para todo um outro tipo de questões. Éticas, de lógica desportiva. Pearson: «Se tivermos andróides muito fortes e rápidos, o futebol será sempre mais lento. Se um dia quisermos misturar jogadores e andróides temos de restringir o que os andróides poderão fazer.»

«A Fórmula 1 é um bom exemplo. Podem fazer-se carros muito mais rápidos, mas a Fórmula 1 é um campeonato forte e competitivo porque os limita. A habilidade tem que sobressair. É o mesmo com o futebol. Se o jogo for muito rápido, com os andróides a correr como loucos, não só será demasiado rápido para as pessoas acompanharem, como não será muito interessante. Talvez os queiramos limitar.»

Se o futebol vai querer adotar algumas destas inovações tecnológicas é a questão mais difícil de responder. «As ligas vão andar a ver o que é que os adeptos preferem. E isso é mais difícil de prever.» A estimativa de Pearson é que não fará sentido que o faça, pelo menos sem reservas.

«Quando as tecnologias existirem, as ligas vão ver aquilo que podem acrescentar ao jogo. Nem todas as tecnologias melhoram o jogo. Algumas podem até torná-lo mais aborrecido», observa Pearson: «Se todos os jogadores forem perfeitos não tem piada. Parte da piada está na imprevisibilidade, no facto de os jogadores terem dias bons e maus. Não queremos livrar-nos disso tudo. Estar sujeito à variedade humana é o que o torna o desporto interessante. Temos de olhar para as tecnologias que podem desenvolver o jogo, mas também as diferenças. Os jogadores habilidosos serão sempre os mesmos, a tecnologia não deve sobrepor-se a isso.»

Mas, de acordo com a convicção de Pearson, a tecnologia estará lá, e mesmo que o jogo não a absorva, pode ter muitas aplicações. Pode servir para experiências lúdicas de adeptos, ou para ajudar candidatos a futebolistas, se passarem a dispor de uma série de ferramentas para melhorar a sua técnica: «Pode ajudar jogadores medianos a tornar-se melhores jogadores.»

Aqui, Pearson recorre ao seu próprio exemplo, de alguém que nem é adepto fanático de futebol. «Nunca fui muito bom. Não sou bom em desportos de equipas. Mas uma das razões porque não me interessei muito era porque não era muito bom. Com esta nova tecnologia podia ser. Seria muito mais divertido.»

PS: Se chegou até aqui, talvez lhe interesse este tema. Nesse caso, pode ler aqui o estudo completo. E já agora, uma outra abordagem ao futuro do desporto, num trabalho profundo do jornal francês LÉquipe. Uma viagem aos Jogos... Biolímpicos, em 2064.